sábado, 5 de fevereiro de 2011

Mínimos máximos haikais de Nelson Savioli


            Recebi ontem (06/01/11), logo nas primeiras horas da manhã, o livro Insistente Aprendiz, do Nelson Savioli, um haijin bastante conhecido no meio haikaístico brasileiro. A obra, editada pela Qualitymark, possui um projeto gráfico simples, porém bastante harmonioso, com a ilustração da capa feita por Renata Figueiredo que se inspirou na obra de Katsushita Hokusai, grande mestre gravurista e pintor japonês do período Edo (nasceu em 1760 e faleceu em 1849), muito admirado ainda pelo mundo todo. A obra em questão é Cachoeira de Onu.
Savioli segue no rastro do tradicional haikai[i], seu estilo, o defendido e difundido por mestres brasileiros do porte de Paulo Franchetti e Teruko Oda, onde viceja a linguagem ao nível da fala comum em tentativas de captação de mínimos instantes, máximos momentos proporcionados pela natureza concreta, gerando poderosas imagens sem nunca suscitar quadros definitivos, mais sugerindo que determinando; sensorial ao invés de palpável:

Mãos calejadas –
a andorinha de papel
parece voar.

Leio esse haikai com a mesma alegria e estado de espírito com que li e me apaixonei por um famoso poema de Arakida Moritake:

A flor que caiu
alça vôo de volta ao ramo:
uma borboleta.

Gosto tanto desse haikai de Moritake que, na segunda edição do meu livro Silêncios, em um haibun dedicado à minha filha, Flora, procuro inverter a ação sugerida pela imagem, oferecendo um contraponto e ao mesmo tempo uma mudança de perspectiva, se lidos em sequência:

Borboletas são flores
que afinal foram voar –
voa, minha flor!

Nos três haikais o centro dos poemas está na ação, no ato de voar, sejam borboletas, folha desprendida do galho ou a andorinha materializada pela habilidade de um mestre em origami, a arte japonesa de dobrar o papel dando a ele a forma ou a representação de seres ou objetos, sem cortes ou colagens.
Como o haikai tradicional tem a natureza por berço, Insistente Aprendiz está disposto em quatro capítulos, cada um determinado por kigos que indicam a estação do ano em que ele foi escrito. Desse modo, o haikai da andorinha, mostrado anteriormente, está no capítulo da primavera, pois por ser uma ave migratória, é sempre nessa estação, quando temos o início do período de calor, que a ave retorna aos seus locais de costume e ficam até o final do verão.
Aqui, um haikai de verão, cujo kigo (estação chuvosa) está bem fácil de identificar:

Na ponta da bota,
a manchete do jornal.
Estação chuvosa.

Aqui, um de outono, cujo kigo (vento) também está bem fácil de identificar:

Lavoura deserta.
O vento é música nas
franjas do espantalho.

Agora, um haikai de inverno, cujo kigo refere-se a uma planta (azaleia) que floresce no inverno:

Enfim amanhece.
O vigilante e a azaleia
sem trocar palavra.

Além desses quatro capítulos, um outro, composto de senryus, forma o livro. E o senryu nada mais é que uma variação do haikai tradicional. Ambos possuem a mesma estrutura, três versos, mas tratam de temáticas diferentes. Enquanto o haikai tem a natureza como berço, o senryu trata de questões unicamente humanas, em tom irônico ou satírico. Abaixo, uma boa ilustração para esse exemplo:

Fogos de artifício
brilham no olho do bandido –
bateram a sua carteira.

Todos esses haikais aqui expostos são acompanhados de notas explicativas sobre a natureza e concepção dos mesmos, descortinando o efêmero, o transitório que os mantém sob véus que possibilitam ao leitor uma espécie de co-autoria. Esse artifício, no meu modo particular de ver, substitui no haikai o que seria seu título, recurso desnecessário e que, como afirma Paulo Franchetti[ii], fracassa “pela atitude que explica quando os lemos com o título”.
Podemos exemplificar a questão recorrendo à própria nota que desvenda para o leitor que aquela andorinha é fruto das “mãos calejadas” de um artista do origami, enquanto que, sem a nota explicativa, eu mesmo teria muita dificuldade de identificar a ação ou sensação que proporcionou ao Savioli a criação. Diz ele na nota: “O origami é a simplicidade materializada, com peças que tocam nossa sensibilidade. Assistir à destreza do artista, dando vida ao papel, é um bônus para o apreciador dessa arte”.
Sem a explicação, minha imaginação peregrinaria por várias, inúmeras possibilidades na tentativa (possivelmente vã) de desvendar os segredos, uma vez que na sua tradição de cantar a natureza, o haikai apenas sugere. Desse modo, a minha andorinha poderia ser qualquer outra coisa: desenho, escultura e outras tantas, diversas coisas, menos um origami, talvez.
Vale ressaltar que os haikais e senryus de Insistente Aprendiz podem, ou devem, ser lidos primeiramente sem se tomar pé das suas notas explicativas, ocasião em que o leitor buscará desvendar contemplativamente a obra. Após, se a curiosidade falar mais alto, os bons haikais de Nelson Savioli poderão ser descortinados em suas notas.


[i] Utilizo a escrita haikai com a letra “K”, por ser essa a forma como foi introduzido no Brasil por Afrânio Peixoto; do mesmo modo como em francês.
[ii] Franchetti, Paulo. O haicai no Brasil. Alea, Dez 2008, vol.10, nº2, p.256-269.

3 comentários:

Cinema Possivel disse...

Sem dúvida o "Insistente Aprendiz" de Nelson Savioli é um belo livro. Vejo nesta resenha de Gustavo Felicíssimo um reconhecimento daquele que é um dos melhores haijins de nossa geração.

Alvaro Posselt disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
BAR DO BARDO disse...

Boníssima resenha!