terça-feira, 30 de junho de 2009

Haicais dos Pescadores

Neste último dia 29 de junho foi comemorado o Dia de São Pedro, o apóstolo pescador que, justamente por isso, é o padroeiro dos pescadores. Ao invés de contar histórias, alguns haicaístas fizeram poemas em comemoração à data.


1.

Dia do pescador
Entre uma história e outra
o anzol sem peixe

(Alvaro Posselt)

2.
às margens do rio
ou à mesa do jantar -
sofre o pescador.

(Gustavo Felicíssimo)

3.
A garça ignora
a esmola do pescador.
Palavrões ao vento.

(Nelson Savioli)

4 .
reflexo na água
na linha do pescador
peixes prateados

(Jiddu Saldanha)

5.
Gritos ritmados.
Pescadores puxam a rede
cheia de peixe-espada.

(Benedita Azevedo)

Convido os amigos a conhecerem uma entrevista sobre haicai que concedi ao poeta e ator carioca, Jiddu Saldanha. A matéria se encontra no seguinte endereço: http://haigatos.zip.net/

segunda-feira, 29 de junho de 2009

O Sol (Bernardo Linhares)

Ao Poeta Ruy Espinheira Filho

Depois da noite em chamas,
cantando nas espumas,
o mar ainda é rubro,
ouriçado de escamas.

Feito uma concha, rosa
secreta sob as ondas,
a lua fecha os olhos
e oculta a própria sombra.

No céu surge outra chama,
na chama vários tons,
nos tons todas as gamas.

O sol, concha amarela,
transforma a aurora escura
num céu de madrepérola.

domingo, 28 de junho de 2009

Novo livro de João Filho

clique na imagem para vê-la em tamanho maior

A P55 Edições, no próximo dia 07, terça-feira, das 19 às 22 horas, na Livraria Tom do Saber, Salvador (Rio Vermelho), fará o lançamento dos mais novos livros e autores da coleção “Cartas Bahianas”, são eles: Aninha Franco (As receitas de Mme. Castro), Marcos Dias (Ananke) e João Filho (Ao longo da linha amarela). Confesso que dos três, conheço apenas João Filho, meu amigo e muito bom poeta. Por isso, e por questão de espaço, destacamos aqui apenas o seu livro.

João Filho nasceu em Bom Jesus da Lapa, Bahia. Segundo release da editora, publicou em 2004, “Encarniçado”, Editora Baleia. Em2008, “Três sibilas”, poesia, Dulcinéia Catadora. Participou das antologias: “Os Cem Menores Contos”, Ateliê Editorial, “Contos Sobre Tela”, Edições Pinakotheke, “Terriblemente felices, Nueva narrativa brasileña”, Emecé Editores, “35 segredos para chegar a lugar nenhum”, Bertrand Brasil, “Travessias singulares – Pais e filhos”, Casarão do Verbo.
Moral e metafísica no asfalto com algum fundo policial, eis a receita dos contos inseridos em “Ao longo da linha amarela”. É desta forma que João Filho vê este seu novo livro. “Há uma fluência, como um trânsito sem engarrafamento, no estilo, porém com diminuições de marcha em certos pontos narrativos. No conto ‘O que se desloca’ é o sujeito que pensa enquanto anda, já o ‘Aprender pela forja’ o avô narra o conflito de gerações entre pai e filho; em ‘Edifício Favela’ o personagem rouba e tenta negociar os originais manuscritos do poeta Castro Alves; ‘Cicerone cego’, como o próprio título já diz, um guia cego se oferece para guiar pessoas pela cidade, o que resultará em desastre; ‘Filoctetes’ dialoga de perto com ‘Edifício Favela’, o roubo visado agora são telas de Picasso, para a produção de cópias falsificadas; ‘Carros invisíveis atropelam transeuntes distraídos’ possui um clima fantástico com sua lógica cruel; em ‘Seguir nem sempre é avançar’ há uma cidade íntimo-externa do narrador que faz seu auto-exame de consciência enquanto atravessa o centro. Contudo, “Ao longo da linha amarela” é acima de tudo linguagem.

Cinco perguntas para João Filho

P55 - Há algum significado nesta coleção e neste seu livro? Algum objetivo?
João Filho
- Em relação à coleção: significativa por propiciar a publicação de jovens autores baianos, em edições curtas, pode se dizer de bolso, charmosas, bem trabalhadas e baratas. Quanto ao livro, é meu segundo livro publicado. O primeiro foi o Encarniçado em 2004. São cinco anos sem publicação individual, e ao contrário do caminho que tomei no Encarniçado, de experimentações com a linguagem e a estrutura e muito negativismo, neste novo livro, “Ao longo da linha amarela”, trabalho dois temas muito caros para mim: moral e metafísica no asfalto, com outra visão sobre a linguagem.

P55 - Sendo cartas, é difícil encontrar correspondência do que se quer dizer em palavras? Correspondência não só na linguagem, mas também leitor? Vamos lembrar que correspondência está na raiz de cartas. Cartas Bahianas.
João Filho
- Creio que o sentido maior dessa "correspondência" é a metáfora da mensagem na garrafa lançada aos quatro ventos. O leitor que a encontrar em sua ilha-solidão urbana, é quem decidirá se a acolherá ou não.

P55 - Escrever é conseqüência de sua vida – pensamento, sentimento, sensações, olhares, atos, etc, ou o que é esta realidade para sua escrita? Ou que realidade é esta que vocês estão escrevendo? E nesta escrita há uma construção ou reconstrução disto que chamam realidade? Ou da escrita? E a Bahia nisto?
João Filho
- Escrever é consequência de estar vivo. É evidente que eu poderia não escrever, e é um embate que retorna sempre: escrever para quê? Às vezes tenho a resposta, às vezes não. A literatura nunca conseguirá captar a realidade em toda a sua complexidade, e esta é uma questão muito antiga. Sendo a realidade móvel, inapreensível, como pode ser capturada numa forma estanque? O máximo que se consegue, quando se consegue, é um pequeno vislumbre do real. Porém a literatura cria realidades paralelas sem as quais o mundo, isto é, a própria realidade, ficaria menor. No caso de “Ao longo da linha amarela” usei temas antigos (moral e metafísica) territorializados na cidade de Salvador no tempo atual. Todos os contos tentam seguir o fluxo da própria cidade.

P55 - Algo mais geral: Escrever é criação ou artesanato?
João Filho
- As duas coisas. Talento somente não resolve. É preciso estudar muito. Ler, ler e ler. E, no caso, escrever se aprende escrevendo. Ou seja, errar muito antes de acertar.

P55 - Enfim: O que é este seu livro? O que espera ou não há mais esperança?
João Filho
- Quem poderá dizer com mais precisão serão os leitores. Espero ser lido. Se isso não acontecer, terei falhado em meu propósito.

Blog do João Filho:
www.verbeat.org/blogs/hiperghetto

sábado, 27 de junho de 2009

O poeta Jotacê Freitas

Jotacê Freitas é excelente cordelista, um mestre, dos melhores que temos na Bahia, tendo publicado quase uma centena (ou mais) de folhetos que ele mesmo edita de maneira artesanal. Aliás, foi participando de uma oficina de Literatura de Cordel, ministrada por ele, que comecei a aprender alguma coisa sobre versificação. Jotacê, que também foi um dos fundadores do SOPA (tablóide literário baiano do qual fui editor), manteve em todas as edições uma coluna dedicada ao cordel.
Mas muitos ainda não conhecem o verso livre do poeta de Senhor do Bonfim. Jotinha possui um senso lírico invejável e seus poemas, bastante influenciados por Leminski, Oswald e Mário de Andrade, muitas vezes se aproximam mesmo do poema piada. Aliás, pelo menos um dos seus poemas está entre aqueles de minha preferência.
Os poemas abaixo são do livreto “entrelinhas”.

deQuandoEuEraPequeno

O meu maior sonho
era usar calça comprida
para fazer pose
para as meninas crescidas.

Caminhava muito
pela estação do trem
e de vez em quando batia a cabeça
nos postes dos telégrafos.
Minha mãe bradava
que eu só podia
ter minhoca na cabeça.
Meu pai amenizava:
deixa o menino, mulher,
quem sabe ele terá
mente fértil?


daJuventude

tudo imediato
pra já

tudo a jato

como se o tempo
não se acumulasse
passo a passo


daPreservação

saindo da toca
um lagarto
se abisma com a destruição
seu lar
seu ninho
sua casa
é canteiro de construção
com as unhas
na pedra cravadas
lamenta
a própria extinção.

Recado pro Jota:
cadê aquela rabada com agrião e cachaça, poeta?

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Dois poemas de Carlos Anísio Melhor

O tempo e a memória

Fica-te aí parada na memória.
Reveste de outono a luz da face
Oh Sempre Adormecida, que a vitória
Do Amor é conservar consigo a face.

E, assim, vencer o tempo na memória
E atingir o eterno no traspasse
Fatal. Trazendo adiante na memória
A visão emblemática da face.

Na ilha de agosto faze tua morada,
E em setembro hás de surgir do Nada,
Se extática ficares na memória.

Que nunca apareceste na jornada,
Ou houveres sido, existirás Amada
Se ficares presente na memória.

Sanatório Bahia
22.03.1960


Elegia para Hart Crane

Escuro é o espaço em que vivemos,
Onde as formas não conseguem penetrar
Ocultamente, a noite dos sentidos
Não revela o esforço de se amar.

Desolado em seu ermo, ninguém penetrará
O estreito círculo de poucas sensações;
Pois a ninfa é muda, esquecida a Palavra
Com que Hermes nos faz ressuscitar.

Os que amaram os dias já perdidos
E nesse escuro poço buscam o devenir,
Fugitivos do Aqui e do Agora
Oh tristes marinheiros
O porto é navegar.

Luz somente à superfície o sol
E, jacentes, abandonados fomos sob o mar,
Entre véus de coral — palavra oculta
Nos beija os lábios esquecidos de beijar.

Todo o fundo do mar é tão cruel,
Como o esquecido lugar de nossa origem.
Apenas um filho consegue retornar
Ao seio da Mãe que simboliza o Mar.

1959.

NOTA:
Ruy Espinheira Filho, em referência ao livro “Canto Agônico”, Civilização Brasileira, 1982, disse: "Autores de livros de poemas existem em número incontável, mas os poetas são raros, raríssimos – e entre estes está, seguramente, Carlos Anísio Melhor. Por isso, este não é apenas um livro de poemas. É mais, muito mais: é um livro de poeta."
Carlos Anísio Melhor escreveu a maior parte da sua obra internado em sanatórios na Bahia por problemas com o alcoolismo.

terça-feira, 23 de junho de 2009

CONFISSÃO

A minha alegria /é não possuir nada
Carlos Anísio Melhor

Sou meu próprio canto, o que me conduz.
Trago de longe uma calça jeans,
uma camiseta desbotada
e esse velho chapéu que já não serve pra nada.
Trago também um olhar disforme
para as coisas do mundo.
Não tenho a intenção de ser profundo.
Se meu canto perpassa o que sou
é porque abraço o que tenho e preciso:
o silvo de algum pássaro distante
e algumas elegias sobrepondo-se ao tempo.
Convivo entre ardências e texturas,
no entanto sou saudade e permanência,
ordem e contenda.
Nas esquinas maltrapilhas me arranjo.
Por isso essa imagem desbotada,
essa espada na minha cabeça
apesar da claridade na janela.
A despeito do meu olhar extravagante
os pássaros me recebem sorrindo.
Sou o espelho da minha ilusão.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Walter Ruy: um haicaísta guilhermino

Encontramos referência ao nome do poeta Walter Ruy nas páginas iniciais de “Gravuras no Vento”, de Oldegar Franco Vieira. Ali, o haijin maior da Bahia faz referência ao livro “Álbum de Outono”, Imprensa Oficial da Bahia, 1966. Imediatamente saímos a procurar o aludido livro e, por um grande lance de sorte, conseguimos. Em suas páginas iniciais o poeta afirma que até os 37 anos jamais havia composto sequer um poema, e que, paradoxalmente, um enfarte do miocárdio trouxe-lhe a poesia. A partir daí teria exercido intensa atividade literária, tendo traduzido poemas de autores ingleses, estadunidenses, franceses e espanhóis. Também produziu alguns ensaios literários e contos, grande parte publicados em jornais e revistas da Bahia, principalmente no Jornal A Tarde, tendo em vista que este era amigo de Hélio Simões, a quem o poeta faz um agradecimento especial na página 07 do livro.
“Álbum de Outono”, como o próprio título e biografia do autor sugerem, é o livro de um autor tardio, na idade madura, tendo publicado-o com aproximadamente 47 anos de idade. Não é um livro composto apenas por haicai. Ele se divide em duas partes, a primeira delas, “50 cantos de poucos encantos e muitos desencantos”, é composta por poemas de formas diversas; a segunda, a que interessa ao nosso estudo, “100 haicais do meu tricórdio”, é composta por haicais filiados à tradição Guilhermina, sendo os poemas compostos por título, rimas e métrica (5/7/5). Em nota que antecede esse capítulo, o poeta afirma que tais poemas se justificam pelo grande amor que devota à síntese, e evoca Manuel Bandeira para explicar que “o haicai é um gênero difícil, não pela forma em si, mas por exigir um pouco daquele milagre da gota de água que é o de em sua exiguidade refletir todo o universo”.
A intenção do poeta é válida, mas a afirmação de Manuel Bandeira nos parece um tanto desligada da realidade que cerca o haicai, pois este, na verdade, não “busca refletir todo o universo”, mas “captar um instante em seu núcleo de eternidade”, é o que consta nos “Dez mandamentos do haicai”, elaborados a partir de definições comuns entre os praticantes do Grêmio Haicai Ipê, provavelmente o mais importante do Brasil, sob a orientação do Mestre H. Masuda Goga.
No haicai busca-se dizer apenas uma parte daquilo que realmente é, por vezes, a menor delas. Sua finalidade é dar apenas uma sugestão, para que o leitor perceba ou vá além da imagem projetada pelo autor. Esta é, provavelmente, a razão maior que leva Paulo Franchetti a afirmar que “parece fracassar o haicai com título[1]”, pois o título no haicai determina seu entendimento e nos faz “reencontrar os limites da nossa própria tradição[2]”.
Dentro da tradição japonesa, os poemas de Walter Ruy precisariam, na verdade, serem chamados de Senryu, pois tratam não das questões ligadas à natureza, sua sazonalidade, mas, basicamente, do cotidiano da vida humana, dos sentimentos, costumes, atos e necessidades do homem na sociedade, como vemos em “Amor de carnaval”:

Só no carnaval
perdura a louca aventura...
Desejo carnal.

Entretanto, como defendem algumas correntes, essa seria uma questão superada, pois o haicai teria sido totalmente aclimatado ao gosto ocidental. Caso contrário, o soneto seria, até hoje, apenas italiano; a poesia concreta, apenas brasileira. Independente de escolas ou vertentes, no caso brasileiro, o que se evidencia é a vontade dos que ansiavam pela naturalização do haicai. Afinal, hoje, mesmo os haicaístas mais tradicionalistas se inspiram em temas como o dia de Santo Antônio, São João, Casamento caipira, Bolo de fubá, e outros temas vivenciais tipicamente brasileiros. Walter Ruy, no poema “Aridez”, canta o sofrimento de se viver na sequidão do sertão:

A pobre viúva
definha. Terra maninha
por falta de chuva.

Também em “Vingança”:

Ao ver a caatinga
adusta, pouco me custa
crer que Deus se vinga...

Em “Provocação” se aproxima do poema piada:

Está morta a pomba
da paz: beliscou demais
o estopim da bomba...

Por fim, resta-nos lamentar profundamente o esquecimento que incidiu sobre a obra de Walter Ruy. A falta de referências à sua poesia se dá tanto no “Dicionário de autores baianos”, quanto até mesmo em sites de busca na internet, sinal que a obra do poeta não conseguiu a sua devida e merecida valorização. Uma pena, pois vemos seus haicais como elementos de valor tanto estético, como histórico, muito útil até para a iluminação dos caminhos do haicai na Bahia.

Mais alguns haicais de Walter Ruy:

Tabagismo

Que importa o pigarro?
Esquece tudo, espairece
se fuma um cigarro...


Solteirona

Postada à janela,
espera. Não desespera
o coração dela...


Poeta

Tem no pensamento
estrelas. Dispensa vê-las
no firmamento.


Marinha

Vela branca em mar
turquesa. Quanta tristeza
vem me despertar...

[1] Franchetti, Paulo. O Haicai no Brasil. Alea, Dez 2008, vol.10, no.2, p.256-269.
[2] idem

sábado, 20 de junho de 2009

BLUES PARA MARÍLIA

Ao modo de Carlos Drummond de Andrade
Penso todos os dias em Marília.
Sobretudo penso em tudo que deixei por lá:
os companheiros de infância, minha mãe,
o pão caseiro feito pela Tia Vilder,
as férias em Panorama.
Penso principalmente no cheiro do café
(tenho cem por cento de café no sangue),
café bom das lavras da Fazenda Cascata
que já não existe mais.
Marília são flashes na memória:
os passeios pela Praça São Bento,
as visitas ao Paço Municipal.
Por isso esse velho Blues,
esse reverso n’alma,
o silêncio que revolve a voz
e o olhar demorado para as coisas sem sentido.
Marília é tudo que ainda sangra.

Ilhéus
2009. IX

quinta-feira, 18 de junho de 2009

O haicai do poeta Sérgio Marinho

O poeta Sérgio Marinho, assim como Leminski - que em seu livro “Bashô”, recomenda àqueles que quisessem entender o zen a matricularem-se na mais próxima academia de artes marciais -, é um orgulhoso faixa-preta. Sua obra anda dispersa e pouco publicada em nossos veículos especializados, pois ao que nos parece, o poeta é uma exceção. Avesso às publicações, sequer tem o cuidado de catalogar seus poemas que ficam guardados exclusivamente na memória. Também são raras as oportunidades de vê-lo recitar em público.
São de sua lavra os seguintes haicais:

todos os meus ais
cabem
num hai-kai

ao olhar do travesti
confesso:
não resisti

E ainda:

em matéria de vôo
tira de letra
a borboleta

Além de ser um profundo conhecedor dos elementos que compõe o haicai, uma peculiaridade a ser observada nos poemas de Sérgio Marinho é o seu cuidado artesanal com a linguagem, o uso da rima, ora entre o primeiro e o terceiro verso, ora entre o segundo e o terceiro sem perder a espontâneidade.
Se por um lado percebemos uma ressonância marcadamente concretista na poesia de Sérgio Marinho, por outro, o que nos chama a atenção é certo eco melancólico que o poeta encobre ao mesmo tempo que o difunde, mesmo sem se propor.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

VERBO

James Vasconcellos de Lima

Vai pelos canteiros da tua esperança
buscar o restante de orvalho impresso
sobre as pétalas de tua vida, que,
exausta, cantarola o luto opaco

de um santo que empenhou-se em ser somente
a brisa que se deita sobre o corpo
encurvado de quem sofreu por tudo
e, no fim, morreu ao seu pobre nada.

Daí aspira o pó atordoante
do inverno cruel dos teus pólos nortes,
porque a cura requer a mutilação

dos carvalhos levantados nos vales
do teu ser, os quais, quando vem a noite,
assombram as lâmpadas dos teus sonhos.

Nota: James Vasconcellos de Lima, como puderam ver, é um talentoso poeta. Também é músico e reside em Feira de Santana.

terça-feira, 16 de junho de 2009

lobo solitário

Geraldo Lavigne

andar pelas campinas e pelos lajedos
a serra, a superfície rechã
à beira dos muros, passos curtos
como os coiotes, como as hienas abandonadas
os olhos espertos, os olhos sagazes
passos céleres, garras gastas

um meio-fio, assento impreciso
se o uivo já ecoou
em todos os quartos
e as alcovas permaneceram apagadas
sob a luz fria ou a luz quente
– os dois tempos do mundo –

a solidão subsiste
na ânsia da individualidade

Geraldo Lavigne é natural de Itabuna, Bahia, nascido em 1986. Radicado em Ilhéus, cursa Direito na UESC. Poeta, apresenta seus trabalhos em jornais locais. Promoveu uma exposição de poemas no Teatro Municipal de Ilhéus e foi convidado a remontá-la no museu do Instituto Nossa Senhora da Piedade, como programação do Ano Ibero-Americano de Museus.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O poeta Antônio Brasileiro, merecidamente, na Academia de Letras da Bahia

Por Silvério Duque

O poeta Antônio Brasileiro Borges foi eleito, na última segunda-feira, por unanimidade, para ocupar a cadeira de nº 21, que pertenceu a Jorge Amado e, por conseqüência de pensão-alimentícia, à Zélia Gattai, na Academia de Letras da Bahia (ALB), tornando-se o primeiro imortal, desta Instituição, não nascido nem radicado em Salvador. Doutor em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, e professor de Teoria da Literatura na Universidade Estadual de Feira de Santana, o grande fundador, e, certamente, o melhor representante do grupo Hera, que tem mais de 25 títulos publicados entre poesias, ensaios, romances e contos, mas nunca fora agraciado com uma publicação por uma grande editora – uma injustiça que, eu espero, solucione-se em breve –, entre os quais A estética da sinceridade & outros ensaios (Imprensa Universitária da UEFS, 2000), Antologia Poética (Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, 1996) e Dedal de areia, que venceu a edição de 2004 do Prêmio Durval de Morais, da ALB, é, sem dúvidas, uma escolha acertada em todos os pontos pelos membros da ABL e que lhe dá diversidade e qualidade... A indicação de Antônio Brasileiro para tal instituição pode até ser tardia, mas merecidamente necessária.
Eis um dos melhores exemplos da poesia de Antônio Brasileiro:

QUE DEUS GUARDE MEU PAI...

Não passar. Ficar para semente.

Não era isto que meu pai queria?
Sentava-se na rede e adormecia
julgando ter domado a dama ausente.

E sonhava talvez. Talvez menino
montando burros bravos, nu, ao vento;
um homem é a sua ação sobre o destino.

Meu pai então fazia um movimento
e a rede, a adormecer, estremecia:
pequenos sustos no tempo, era só isto.

E escancarava os olhos duramente
para mostrar que se Ela o procurava
era de cara a cara que a encarava.

Que Deus guarde meu pai. Eternamente.

NOTA: Poema extraído de Poemas Reunidos, de Antonio Brasileiro, poeta brasileiro radicado em Feira de Santana. O livro foi editado pelo Selo Letras da Bahia, em 2005.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

200 anos de Edgar Allan Poe

Edgar Allan Poe, escritor de cadiz gótico, é homenageado neste momento pela passagem dos seus 200 anos de nascimento. Seu poema mais conhecido é “O Corvo”. O clássico poema de Poe, resumidamente, se passa em um ambiente solitário e triste. O protagonista, que havia acabado de perder sua companheira Lenore, encontra-se no único quarto iluminado de uma enorme casa. No meio de uma tempestade, à meia-noite, enquanto estuda, o narrador escuta baterem à sua porta. Abre-a e nada encontra. Em seguida a batida é à janela e, abrindo-a, entra um corvo, a ave do mau agouro, que pousa sobre um busto de Atena, a deusa da arte e da sabedoria. O narrador, triste e melancólico pela morte da amada, chega a achar graça do acontecido. Em tom de brincadeira, pergunta ao corvo como se chama, ao que este, para espanto daquele, responde: “Nunca mais”. A partir daí lança-se a perguntas sucessivas e desesperadas ao corvo sobre se irá um dia rever sua amada, ao que o corvo responde sempre o seu nefasto “nunca mais”.
Quanto à estrutura do original, “The Raven” é composto por 18 estrofes idênticas, todas com seis versos. Cada um desses tem sempre as mesmas características: os versos 1 a 5 têm 14 sílabas, com cesura; já o sexto é um heptassílabo. Dentro dessa estrutura, durante todo o poema, é perceptível o intenso uso de aliterações e assonâncias, rimas e repetições homófonas, o que dá ao texto uma cadência e um “clima” sonoro dos quais decorre grande encantamento, configurando-se num ótimo desafio para os tradutores.

Aliás, muitos foram os tradutores que se lançaram nessa aventura em língua portuguesa, de Machado de Assis a Alexei Bueno, passando por Fernando Pessoa. Especialistas em tradução, como Ivo Barroso, apontam a de Milton Amado como a mais completa e genial.

O corvo superou o discurso meramente emotivo pelas suas qualidades poéticas intrínsecas e se tornou um exemplo de texto de análise para ser meditado.

O CORVO (TRECHOS)
Tradução de Milton Amado

Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro
E o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.
Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda
Algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora-
Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
E nome aqui já não tem mais.
(...)
A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,
Arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.
De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia
E a sossegá-lo eu repetia: "É um visitante e pede abrigo.
Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.
É apenas isso e nada mais."

Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:
"Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;
Mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,
Que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,
Assim de leve, em hora morta." Escancarei então a porta:
Escuridão, e nada mais.

Sondei a noite erma e tranqüila, olhei-a a fundo, a perquiri-la,
Sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,
Só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: "Lenora!"
E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: "Lenora!"
Depois, silêncio e nada mais.

Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,
Mais forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais.
"É na janela" - penso então. - "Por que agitar-me de aflição-
Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,
O vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.
É o vento só e nada mais."

Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
É um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto,
Adeja e pousa sobre o busto - uma escultura de Minerva,
Bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
Empoleirado e nada mais.

Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,
Desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.
"Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular" - então lhe digo -
"Não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo!"
Qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!"
E o Corvo disse: "Nunca mais."
(...)
"Profeta!" exclamo. "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
Fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,
Verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,
Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!"
E o Corvo disse: "Nunca mais!"

"Seja isso a nossa despedida! ? ergo-me e grito, alma incendida. -
Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!
Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!
Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu vôo dessa porta!
Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!"
E o Corvo disse: "Nunca mais!"

E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
Sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
E a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,
Não há de erguer-se, ai! nunca mais!


Não deixem de assistir esse vídeo:

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Hoje é o Dia de Camões, de Portugal e das comunidades portuguesas

Nada melhor, então, que um soneto do grande mestre.

Busque Amor novas artes, novo engenho,
Para matar-me, e novas esquivanças;
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei porquê.

Saiba mais sobre as origens do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades na perspectiva de Conceição Meireles, especialista em História Contemporânea de Portugal em: http://jpn.icicom.up.pt/2004/06/09/o_10_de_junho_nasce_com_a_republica.html

terça-feira, 9 de junho de 2009

O primeiro poeta brasileiro

Como diz a canção “Toda menina baiana”, de Gilberto Gil, “Deus entendeu de dar a primazia/ Pro bem, pro mal, primeira mão na Bahia”. Salvador, cidade fundada por Tomé de Souza, é primeira em tudo. Primeira capital brasileira, foi sede do Governo-Geral por mais de 200 anos (1549-1763). Foi também o primeiro mercado de escravos do Novo Mundo. O envio de milhares de escravos africanos às plantações de cana-de-açúcar convivia lado a lado com a edificação de espaços públicos notáveis: Praça Municipal, Caminho de São Francisco, Largo do Pelourinho, entre outros.
Nesse ambiente nasce o primeiro poeta brasileiro a publicar em livro. Manuel Botelho de Oliveira, natural de Salvador (1636 – 1711), em 1705 publica “Música do Parnaso”, reunindo poemas em português, espanhol, italiano e latim. Também foi o primeiro poeta a cantar a exuberância da natureza do Brasil.
Abaixo, um dos poemas do citado livro.

Persuade a Anarda que ame

Anarda vê na estrela, que em piedoso
Vital influxo move amor querido,
Adverte no jasmim, que embranquecido
Cândida fé publica de amoroso.

Considera no sol, que luminoso
Ama o jardim de flores guarnecido;
Na rosa adverte, que em coral florido
De Vênus veste o nácar lastimoso.

Anarda pois, não queiras arrogante
Com desdém singular de rigorosa
As armas desprezar do deus triunfante:

Como de amor te livras poderosa,
Se em teu gesto florido e rutilante
És estrela, és jasmim, és sol, és rosa?

Fonte: Poetas da Bahia, do Século XVII ao Século XX (2001), Editora Imago. Organização de Ildásio Tavares. Notas Bio-bibliográficas de Simone Lopes Pontes Tavares.

domingo, 7 de junho de 2009

Vinte anos sem Paulo Leminski

Hoje, 07 de Junho, faz exatamente vinte anos que Paulo Leminski nos deixou. Sou fã desse controverso poeta paranaense desde que li seus primeiros poemas por influência do amigo e também poeta Jotacê Freitas. Profundo conhecedor das tradições e ao mesmo tempo um grande iconoclasta, Leminski dizia ler Cabral apenas por ofício e que os maiores poetas brasileiros estavam na música popular. Será?
Particularmente, discordo dele, mas admiro sua obra poética, neo-barroca, e também seus ensaios, tanto que, há uns dois anos atrás, após ler grande parte de sua obra, escrevi essa retranca que segue abaixo e da qual gosto muito. Viva Paulo Leminski!

LEMINSKI

Era um poeta iconoclasta
beijando os barrocos umbrais,
um samurai à brasileira
medindo o vôo dos pardais;

era como se não bastasse
e como se em si não coubesse:

hoje canta e vive na praça,
na plenitude da palavra,
nos bares, nos becos da raça,

na luta de classes, nos livros:
anjo louco, poeta vivo.

Mais sobre Leminski em:
http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=4027

sexta-feira, 5 de junho de 2009

HAICAIS PARA O RIO CACHOEIRA

Neste Dia Mundial do Meio Ambiente, lamento demais a triste situação da cidade onde moro, Itabuna, Bahia, que despeja todo o seu esgoto in natura no belíssimo Rio Cachoeira, matando peixes e destruindo a natureza. Por isso esses meus haicais encadeados, como uma forma de protesto, ainda que nenhum político, nenhum pseudo-ambientalista nos ouça ou leia.

I
madruguei chorando -
silenciou-se o grande rio
ao me ver nascer.

II
e seguiu seu curso -
infinito em suas curvas
terno em meu olhar.

III
silente e calado
ele desfez os mistérios -
canções ao luar.

IV
puro em sua nascente
desce o rio cortando o campo
espalhando vida.

V
e vai todo em brasa
dentro da noite ferida
onde os sonhos erram.

VI
vai feroz e louco
abrindo as portas do peito
galopando a dor.

VII
não é o rio da aldeia
mas o rio de todos nós -
Cachoeira o seu nome.

VIII
eu sigo o seu curso
sem lume, sem remo ou âncora -
triste e indignado.

IX
pois rio sem carinho
quando avista arranha-céus
vê-se a fenecer.

X
não morre de vez
porque é valente esse rio -
tinhoso e audaz.

XI
nada singra mais
as correntes deste rio -
só a lama humana.

XII
perdeu o vigor
e jaz de um modo indevido -
na forma de esgoto.

XIII
pois repousa agora
pousado em sua fortuna -
com febre e com frio.

XIV
lá vai o Cachoeira
faminto pelo caminho -
descendo pro mar.

XV
se querem um rio
para chamá-lo de seu
que venham salvá-lo

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Três haicais de Oldegar Franco Vieira

importante haijin brasileiro
Na rua quieta,
a flauta de um vagabundo
– músicopoeta.

***

Um fruto maduro
pendente, precisamente
na linha do muro.

***

Natureza morta.
Frutos, caça, vinhos? Não.
Maletas de couro.


Breve biografia do autor:
Oldegar Franco Vieira foi dos primeiros poetas a publicar haicai no Brasil, o segundo em livro, tendo ocupado uma cadeira na Academia de Letras da Bahia.
Em 1940, Oldegar traz a público o seu primeiro livro, “Folhas de Chá”, Cadernos da Hora, São Paulo, com ilustrações e capa de Anita Malfatti, cujo prefácio do próprio autor teve, inclusive, uma primeira publicação no primeiro número da revista de cultura Cadernos da hora presente, São Pulo, em Maio de 1939, págs 104 a 111. Esse livro teve uma segunda edição em 1976. Após, em 1994, o poeta lança “Gravuras ao vento”, pelas mãos do editor Massao Ohno em co-edição com a Aliança Cultural Brasil-Japão.
Ainda publicou dois pequenos compêndios ensaísticos: em 1975, lança “O haicai – exclusivamente japonês?”, Editora Cátedra, Rio de janeiro, ensaio sobre a aclimatação do haicai no Brasil, e “Uma notícia – breve e cautelosa – da poesia japoenesa” prêmio Kawabata de 1978, promovido pelo Pen Clube do Brasil e Fundação Japão.

Nota: “músicopoeta”: tema de Shiki (1866 – 1902).

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Azulírico: novo livro de Ivan Maia

Caríssimos,

O poeta Ivan Maia, “baiano de Pernambuco”, está lançando informalmente o seu livreto de poemas, AZULÍRICO, que ocorrerá na próxima sexta-feira, 05/06, Dia Mundial do Meio Ambiente, em Salvador, a partir de 21hs, no Sebo Praia dos Livros, Porto da Barra. O local fica próximo ao Instituto Mauá.
O evento ocorrerá com performances poéticas e artísticas. A livraria dispõe de cerveja e vinho para vender. Evoé Baco!
Lamento muito não poder ir, pois Ivan Maia, além de uma pessoa maravilhosa, também colaborou conosco no tablóide literário SOPA.
Apareçam, Ivan Maia e sua poesia merecem!

Três haicais de Benedita Azevedo

Premiadíssima haijin brasileira

Dentro do balaio
Enroscados uns nos outros
Filhotes de gato

***

Início da noite.
Uma outra visão da praia
no poente de outono.

***

Dia da mentira –
Convite para o almoço,
e ninguém no local.

Site da autora:
http://www.beneditaazevedo.com/

terça-feira, 2 de junho de 2009

Anibal Beça: Tropicalmente Oriental

Há poucos dias recebi alguns livros do poeta amazonense Anibal Beça. Entre eles destaco “Folhas da Selva”, o único que pude ler até o momento, um livro todo constituído por formas de origem japonesa, onde se inserem inúmeros haicais, forma poética pela qual tenho especial interesse e venho estudando faz alguns anos, mais detalhadamente há pouco mais de seis meses. O fruto desse nosso estudo será a publicação de um livro-ensaio sobre o haicai na Bahia, previsto para vir a público ainda neste ano de 2009.
Mas nosso interesse aqui é o livro de Anibal. “Folhas da Selva”, no primeiro momento, nos impressionou pela quantidade de páginas, 358 no total, divididas em doze partes, e o que percebemos é uma poesia vibrante e equilibrada, totalmente alinhada ao cânone japonês, onde o poeta imprime imagens impressionantes, fruto de uma percepção e técnica aguçadas pelo total respeito e amor à natureza, berço do haicai. O poeta adota a espontaneidade em sua poesia, o karumi, aspecto cujo expediente resulta em fazer parecer que não há arte em sua arte, apesar desse recurso ser conseguido apenas ao custo de muito talento, extrema elaboração e anos de prática.
Como o haicai está intimamente ligado à vivência pessoal do poeta, nada mais natural que a natureza amazônica permeie recorrentemente todo o livro. E como apenas desse modo poderia ser, Anibal canta o que lhe é tão caro:

Vento de candura –
vai no vôo leve a lã
da sumaumeira.

ou ainda

De repente folhas
caminham em fila na trilha –
formigas tucandeiras.

“Folhas da Selva” ainda é composto por outras formas, uma delas é a renga, ainda pouco conhecida no Brasil. A estudiosa Rosa Clement define a renga como uma “forma de poesia que realça a arte da transição ao encadear, respectivamente, estrofes sazonais de três e dois versos escritos por dois ou mais autores”. Anibal Beça quebra essa regra ao compor uma renga solo: “Renga-solo de verão”, capítulo composto por sete poemas. Vejamos um deles, de forte apelo social, o segundo da série:

Sol do meio-dia –
o caramujo se abriga
sem pressa na concha.

Noite e dia ao relento
sob a marquise os sem-teto.

Anibal ainda cultiva o haibun, haicai precedido por prosa poética, destacada por José Marins como “um texto breve, enxuto, sem rebuscamentos, ao qual se acrescenta o haicai ou os haicais, no máximo três”; também o senryu, que nada mais é que um haicai de contornos cômicos, irônicos ou satíricos, trata do cotidiano, dos hábitos e atribulações do homem; poetrix, uma forma brasileira não original, totalmente devedora ao haicai, e que ainda não compreendemos; e ainda uma forma de haicai aclimatado ao modo de Guilherme de Almeida, um dos principais divulgadores do haicai no Brasil. Nesse modo de compor, o primeiro verso rima com o terceiro e ainda há uma rima interna entre a segunda e sétima sílabas do segundo verso, como neste:

Quando o gongo bate
é hora que aflora a espora
do galo em combate.

Por fim, resta-nos discorrer sobre o que no livro nos chamou mais a atenção, as excelentes rengas compostas a quatro mãos entre Anibal Beça e José Félix, poeta angolano radicado em Portugal. Falamos de “Chá das quatro”, compostas por “Palhas de outono”, “Galhos de inverno”, “Talos da primavera” e “Ramas de verão”, respectivamente, enfeixadas, cada uma, por 36 poemas, conforme proposto por Basho, em homenagem aos 36 poetas imortais do Japão.
Também chamadas de kasen, a poesia dos sábios, é marcada por uma sutil transição dos poetas, alternando a construção das estrofes. Um dos poetas faz o haicai 5/7/5 sílabas e o outro o seu link, o complemento, com 7/7 sílabas. Na transição, os poetas se referem ao link imediatamente anterior, o terceiro verso da primeira estrofe. Uma vez que um aspecto de certo tema foi usado, o poeta seguinte muda para outro aspecto desse mesmo assunto. É tudo tão sutil que impressiona. No poema a seguir, a primeira estrofe é de Anibal Beça e a segunda de José Félix:

Silêncio no lago –
o vento frio vai levando
o que voa leve.

A pétala de jasmim
desliza na borla da água.

E neste os poetas se invertem na construção:

Indo para a igreja
a beata olha para o céu –
Cruzeiro do Sul.

Na madrugada de outono
sons de sinos e cigarras.

Ficamos nós, que já conhecíamos alguma coisa da poesia de Anibal Beça mais alinhada ao cânone ocidental, maravilhados por conhecer essa sua outra face, a de haijin. Entretanto, observamos apenas que, para um livro ainda mais acessível, um glossário de termos e expressões amazonenses poderia vir a somar e ser muito útil à obra e ao leitor, ausência que não chega a prejudicar o belíssimo “Folhas da Selva”.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Haibun sabático

Seguindo de Itabuna ao litoral, poucos quilômetros margeando o Cachoeira, chegamos a Ilhéus. Na Baía do Pontal, um barquinho, por vinte minutos, Rio do Engenho acima, entre manguezais bem conservados, atinge seu destino, um pequeno sítio à sua margem.
No caminho, fauna e flora. O mangue fomenta um ecossistema rico e frágil ao mesmo tempo. Enquanto o homem não interfere de modo mais drástico, permanece equilibrado e viril.

Um barco no rio
e um avião no céu –
felizes brindamos

***

Paira sobre o rio
como o beija flor na flor –
Martin pescador

***

No manguezal
atento a todo momento –
caranguejo azul

NOTA SOBRE O HAIBUN:
Edson Kenji Iura

o haibun se caracteriza por ser composto por um ou mais poemas precedidos por uma prosa. Bill Higginson, autor de “The Haiku Handbook”, Ed. Kodansha International, lista suas características da seguinte forma:

1- Texto em prosa, concluído com um ou mais haicais.
2- O texto é curto.
3- Sintaxe simplificada. Economizar partículas gramaticais, e às vezes até verbos.
4- A prosa não explica o haicai. O haicai não sintetiza a prosa. E a ligação entre os dois é sutil como no renga.
5- Predominância de imagens. Pouca abstração. Pouca generalização.
6- Objetividade. O escritor se mantém distante, até quando fala de si mesmo.
7- Humor. Leveza.

Após citar exemplos, japoneses e ocidentais, o autor faz a sua conclusão: "A concisão do haibun traz outro benefício. Esta linguagem precisa e esticada cria uma distância estética que solapa nossa tendência a auto-satisfação ou auto-indulgência. O escritor focaliza o ato de viver, em vez de mirar o "vivente". Trazer a escassez da poesia de haicai para a prosa é juntar o melhor da auto-biografia e do ensaio - as ações, os eventos, as pessoas, lugares e lembranças da vida vivida - sem o peso do sentimentalismo, talvez o maior inimigo da arte e da vida".