segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

2º Poema da Infância

Do alto deste outeiro eu vejo o mar,
infinito em seus mistérios.
Aquele menino, de olhar em brasa,
via barquinhos vencendo as marés.
Aquele menino, o sol não domava,
tampouco a chuva.
Ele tinha o mundo na cabeça
e as idéias iluminadas por vaga-lumes.
Para aquele menino a vida não teria serventia
se não pudesse ser o vento na vela
tangendo as caravelas para além do imaginável.


15.02.08

domingo, 27 de dezembro de 2009

1º Poema da Infância

O menino que eu fui não é mais
e esse é um grande acontecimento
na vida de quem ouve o silêncio das borboletas.
O menino que eu fui e os seus pertences
ficaram entalhados na memória,
também ficaram os acontecimentos:
a ‘badogada’ que eu dei numa pomba
e que para aliviar meu remorso não morreu;
as brincadeiras de ‘ana mula’ e ‘mãe da rua’;
as disputas de bilboquê
e o ‘paredão’ com bolinhas de gude.
Era teimoso aquele menino!
Não comia se houvesse uma bola por perto
ou se um primo quisesse brincar;
Não dormia enquanto houvesse vento
e uma pipa para ‘empinar’.
Aquele menino desgastou-se no tempo!
O menino que eu fui não é mais.


08.01.2008

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Acabo de ouvir o programa SUPERTÔNICA, do Arrigo Barnabé, com a presença de Neuza Pinheiro. O programa foi gravado muito naturalmente, improvisando, relembrando histórias. Tudo muito bom!
Arrigo apresenta PELE & OSSO, livro da Neuza, vencedor do Prêmio Nacional Lúcio Lins e
o trabalho musical autoral Olodango.

Pra quem quiser ouvir a qualquer momento:
www.radarcultura.com.br/node/33741

Jiddu Saldanha novamente

Dessa vez com um Haiga impecável. Diz ele que fez questão de fotografar e criar o poema de modo que traduzisse o sentimento que pretendia transmitir.
Atentem para as formigas sobre o arame
(clique na imagem para vê-la maior)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Saiu o resultado do Concurso Literário Bahia de Todas as Letras - 4ª Edição

O concurso é realizado pelas editoras Via Litterarum e Editus (Editora da UESC), com patrocínio para os primeiros colocados da Fundação Chaves. Ano após ano, a boa remuneração para os primeiros colocados vem aumentando o interesse por esse concurso.
Tive a grata felicidade de ser premiado em duas categorias: Poesia e Literatura de Cordel. Esta última em parceria com meu amigo Piligra.

RESULTADOS

POESIA
(Cada autor inscreveu três trabalhos, sendo avaliado o conjunto)
Vencedor: Gustavo Felicíssimo
Obras: “Procura”, “O credo de Don Juan” e “Monólogo de Don Juan”

LITERATURA DE CORDEL
Vencedor:
Gustavo Felicíssimo e Lourival P. Piligra Júnior
Obra: “A peleja virtual entre dois poetas arretados”

ENSAIO LITERÁRIO
Vencedora: Maria José de Oliveira Santos
Obra: “Um caso de amor na Cidade de Salvador da Baía de Todos os Santos”

CRÔNICA
(Cada autor inscreveu três trabalhos sendo avaliado o conjunto)
Vencedor: Manoel Souza das Neves:
Obras: “Mentiropédia”, “Eu tenho medo de mulher” e “Auxílio – Funeral”

CONTO
(Nessa deu empate)
Obra: “Amaro”, de Tiago Santos Groba
Obra: “O mergulho”, Denize Ravizzoni

Mais informações no site da universidade:
http://www.uesc.br/editora/index.php?item=conteudo_concurso.php

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

belíssimo haikai de Jiddu Saldanha

sentada no ninho
a sabiá e os filhotes
bela manjedoura

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Três poemas de natal

Evidente, cada ser sente o natal à sua maneira. Reuni três poemas de autores de tempos distintos, que veem a data sob prismas diferentes. Um deles é de minha autoria. Os outros são de Vinícius de Morais e Fernando Pessoa. Em Vinícius encontramos o binômio nascer/morrer, em síntese. Já em Pessoa há um quê de nostalgia, de melancolia, de solidão. Naquele que compus há um estranhamento frente à realidade do nosso tempo.

Poema de Natal
Vinícius de Moraes

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.


Poema de Natal
Fernando Pessoa

Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!


Poema de Natal
Gustavo Felicíssimo

Dezembro é o cruel mês do natal,
hoje, a sua véspera,
além disso, faz um calor insuportável.
Há grande descontentamento no país,
enormes congestionamentos nas cidades
e as pessoas parecem felizes.
A miséria continua no seu galope
e as pessoas parecem felizes,
inclusive os miseráveis.
Esses se abundam nas calçadas
e mendigam com seus filhos
e com os filhos de outros desgraçados.

Negócio promissor...
Vou sair pra ver o mar!

Renga para o Rio Cachoeira

A renga é uma forma poética japonesa largamente praticada por Bashô (ilustração ao lado), o grande mestre, e que, desde o século XVII, realça a arte da transição ao encadear, respectivamente, estrofes sasonais de três e dois versos escritos por dois ou mais autores. Originalmente, uma renga é composta de 36 estrofes, em homenagem aos 36 poetas imortais do Japão. Também é chamda de Kasen, poesia dos sábios.
Eu e o poeta George Pellegrini compusemos uma, da qual trago as cinco primeiras estrofes. Os tercetos são de minha autoria, os dísticos, evidentemente, são do meu parceiro. Esperamos que gostem!


I
madruguei chorando –
silenciou-se o grande rio
ao me ver nascer

o lusco-fusco da aurora
descortinou as estradas

II
e seguiu seu curso
infinito em suas curvas
terno em meu olhar

espelho d’água revela
outro rosto ensimesmado

III
silente e calado
ele desfez os mistérios:
canções ao luar.

os gritos da acauã
faziam o coro na mata

IV
puro em sua nascente
desce o rio cortando o campo
espalhando vida.

e na calma dos remansos
a morte sobe fecunda

V
e vai todo em brasa
dentro da noite ferida
onde os sonhos erram

os pesadelos comandam
a saída para o mar

domingo, 13 de dezembro de 2009

O primeiro livro brasileiro de haikai

Que Deus entendeu de dar/ A primazia/ Pro bem, pro mal/ Primeira mão na Bahia/ Gilberto Gil
Para Carlos Verçosa, autor de “Oku: viajando com Bashô”, coube ao poeta, romancista e crítico baiano, Afrânio Peixoto (foto ao lado), não apenas o mérito pioneiro de introduzir e divulgar o haikai no Brasil, em 1919, apresentando o haikai como um epigrama lírico, em “Trovas populares brasileiras”. Peixoto também teria sido o primeiro brasileiro a publicar um livro de haikai.
Em Missangas, 1931, no capítulo X, após o ensaio “O haikai japonês ou epigrama lírico”, Peixoto publica 52 haikais de sua autoria. Diz Verçosa que se trata de um "autêntico livro inserido em um outro livro". Desse modo, o escritor baiano não só deve ser considerado o precursor do haikai no Brasil, como também o primeiro poeta a publicar um livro de haikai no nosso país. Até então, esse mérito era de Siqueira Júnior, com o livro "haikais", publicado São Paulo, no ano de 1933.
Polêmicas à parte, segue alguns haikais da lavra de Afrânio Peixoto:

Na poça de lama,
Como no divino céu,
Também passa a lua.

***

Um aeroplano
Em busca de combustível...
Oh! é um mosquito.

***

O sabiá canta,
Sempre numa mesma canção:
O belo não cansa.

Novo livro de Carlos Pronzato

Comemorando 20 anos de baianidade, o meu amigo Carlos Pronzato, escritor, diretor teatral e cineasta argentino, no dia 14 de dezembro, segunda feira, às 18 horas, lança na Fundação Casa de Jorge Amado, Centro Histórico de Salvador, o livro “Jorge Amado no elevador e outros contos da Bahia” (84 páginas, Editora A, Rio de Janeiro). O livro é composto de onze contos que transitam no universo mágico da Bahia, perfazendo um itinerário literário que pretende também ser uma homenagem a um dos maiores escritores do Brasil, Jorge Amado, que empresta o seu nome ao conto que dá titulo ao livro.

Aproveito a deixa para republicar uma micro entrevista que fiz com Pronzato.

Gustavo Felicíssmo – Meu caro Pronzato, como o cinema influi na sua poesia, ou, se preferir, como ambos se unem, se conectam, em sua obra?
CP
- Há inúmeros filmes que com o seu instrumental técnico e narrativo específico se aprofundam em universos poéticos imagéticos, com maior ou menor sucesso, segundo as expectativas do diretor. Penso em Bergman, em Fellini, em Tarkovski, em Resnais, por exemplo, cujas explorações da subjetividade criaram mundos cinematográficos imaginários, poéticos. Esses universos criados a partir da sensibilidade do artista cinematográfico estariam em condições de influenciar, de aceder, ou, melhor dizendo, de ocupar – já que uma ação involuntária – o território do poeta? Acho que sim, no meu caso, já que, por força do meu trabalho diário nos dois suportes, a criação constante de pontes entre Terpsícore e a criação póstuma de Dionisios, é inevitável. Apesar de o documentário ter preeminência na minha obra, se essa conexão existe, penso que a influência se dá num percurso de ida e volta, de retroalimentação, fragmentário e anárquico que consegue construir um diálogo na sua inerente incompletude. Assim, imagens registradas pelo nosso olhar num filme, articuladas no seu discurso de conjunção de elementos técnicos, cenográficos, interpretativos e musicais, podem disparar novas imagens no seu caminho ao papel impresso e retornar ao filme acrescido de poesia. É um processo complexo, como a própria criação poética, nunca definitiva, cujos mecanismos de elaboração – ainda bem - ignoramos, e por tanto de infinitas possibilidades.

GF - Hoje, a poesia no cinema estaria mais na atitude do cineasta frente ao seu próprio tempo ou não?
CP
- Sempre tomando como base o cinema de compromisso social, com toda certeza sim. Hoje e sempre. Se houver apenas uma única pessoa que enxergue emoção movilizadora nas imagens de uma rebelião – e isto se estende a todo tipo de luta travada pela emancipação humana, individual ou coletiva -, de um ato de coragem e valentia frente aos poderosos e saqueadores de sempre, ou inclusive, num estágio posterior, num processo de construção social igualitária, haverá poesia, haverá algo além de uma feliz combinação de palavras num papel. E, levando em conta a penetração massiva que o cinema – e os seus derivados televisivos e internéticos - tem no mundo contemporâneo, quem assume esta atitude de inscrever sua leitura do mundo - e no mundo -, além da sua particular transcendência como indivíduo, estará muito além da criação de um espaço íntimo e individualista, forjando poesia coletiva.
Também podemos encontrar a atitude do cineasta com propostas de transformação social, que por profundas discordâncias com os processos políticos contemporâneos conhecidos assume um relato mais pessoal para se expressar politicamente, e não por isso menos comprometido.
E parafraseando o poeta: tudo vale à pena, quando a atitude não é pequena.

GF - Se o cinema é a indústria dos sonhos, a poesia seria o próprio sonho, a utopia maior?
CP
- Há um cinema, após sua fase de entretenimento de feira, em paralelo à fase de implantação do capitalismo, que impôs seus sonhos industriais de consumo e de perpetuação desse modelo econômico norte-americano, trasladado depois a outras cinematografias do mundo que repetiram esse modelo de acumulação econômica. Sonhos todos, técnica e industrialmente primorosos, que alimentavam – e alimentam - o imobilismo, a contemplação pura e simples de um modelo único de consumo, de uma realidade de eternos e inatingíveis oásis – visão hoje relegada aos subprodutos noveleiros. Felizmente, há outros cinemas que souberam explorar outras inúmeras possibilidades estéticas e aquelas geralmente denominadas políticas. Nestas últimas, há o objetivo de trasladar o sonho libertário da tela para a realidade numa tentativa migratória tão utópica quanto necessária.
Mas em fim, a utopia, o não lugar, é o espaço da poesia. Cabe à realidade e ao cinema – às suas diferentes linhas e gêneros – se aproximarem dela.

Blog do Pronzato:
www.lamestizaaudiovisual.blogspot.com

sábado, 12 de dezembro de 2009

assim como a chuva
uma lágrima acontece
quando precipita

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Pequeno soneto da graça

a Bernardo Linhares


Sendo amigo de um amigo,
o sorriso me ultrapassa,
e por vezes não consigo
me conter de tanta graça.

Em seu berço meu abrigo,
numa infância que não passa,
eis porque tanto me obrigo
a beber na mesma taça,

em que bebe - eu, que não bebo!
E a comprar no mesmo sebo
livros tais de poesia.

E ao pensar em seu sorriso,
rio mais do que preciso
e do que não sorriria...

Henrique Wagner

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Um poema de Silvério Duque

Tudo bem, alguém poderá me dizer que o poeta do azul é Carlos Pena Filho. O seu “Soneto do desmantelo azul” é mesmo uma jóia, mas esse heróico do Silvério Duque, convenhamos, tem seu lugar, um soneto espirálico, marcado por esse último verso: “pois no morrer do azul, nós retornamos”, que deixa o poema em aberto. Muito bom mesmo!

O CARROSSEL DE MARK GERTLER

O carrossel, de Mark gertler (1916):

à Senhora Claudia Cordeiro, un souvenir...

Para Carlos Pena Filho

Por que pintei de azul a nossa estrada?
Por não trazer um céu sobre os sapatos.
Então, busquei, em gestos insensatos,
despir, do azul, o Azul da madrugada.

Para exigir então o azul ausente,
que se espargiu em tuas alpargatas,
roubei de ti o azul das coisas gratas,
que, em teu olhar, nasceu tão simplesmente.

Mas, vestidos de azul, nem recordamos,
haver tantos azuis que azuis se amassem,
qual o Mar e o Céu, no azul, nos espelhamos...

E, perdidos no azul, nos contemplamos,
porque, do azul, as coisas sempre nascem,
pois, no morrer do azul, nós retornamos.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Outro novo haikai

outra vez aqui –
céu e mar se confundem
nas minhas retinas

Um novo haikai

folhas ao vento
são como libélulas –
lume pro haikai

***

a flor que caiu
alça vôo de volta ao ramo:
uma borboleta

(famosíssimo haikai de Arakida Moritake)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Ildásio Tavares: existência consagrada à poesia

texto que apresentei no encontro literário da Academia de Letras da Bahia

É impossível ater-se à história da literatura baiana no Século XX sem se dedicar demoradamente a Ildásio Tavares. É tão vasta a sua obra, sua formação e suas incursões literárias que seria inviável e extravagante, no curto tempo que temos, discorrer sobre essa questão.
Mas vale lembrar que aos nove anos de idade Ildásio já tinha lido toda a obra infantil de Monteiro Lobato, que antes do ginásio era fluente em latim, francês e inglês. Formado em Direito e Letras pela UFBA, tem Mestrado feito na Southern Illinois University, USA, em 1971; Doutorado em Língua Portuguesa na UFRJ, em 1984; e Pós-Doutorado na Universidade de Lisboa, com bolsa do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1990.
Mas como literatura não se faz com nomes nem com títulos, ao seu agente sempre é exigido produção, renovação ou silêncio, como é o caso de muitos escritores que não passaram de um par de livros, ou até mesmo de um único, o que não o impede de ter a obra reconhecida e valorizada, como é o caso de Sosígenes Costa, grapiúna como Ildásio, falecido em 1968 com apenas um livro publicado.
Esse, certamente, não foi o caso de Ildásio Tavares que estréia na poesia no ano de 1967, com poemas inseridos na antologia “Moderna Poesia Bahiana”. Seu primeiro livro veio ao público em 1968, com “Somente Canto”, a esse seguem-se outros, entre os quais se destacam: “Tapete do Tempo”, 1980; “IX Sonetos da Inconfidência”, 1997; e o moderno “Odes Brasileiras”, de 1999.
Talvez o próprio vate não se dê conta, mas também podemos acrescentar à sua biografia a importante e valorosa contribuição que dá ao futuro da poesia brasileira ao abrir, generosamente, as portas da sua casa aos jovens escritores baianos que para lá marcham semanalmente em busca de um papo agradável e, principalmente, conselhos sobre seus escritos.
Ali, na varanda da casa, na espaçosa sala de visitas ou no escritório repleto de livros e correspondências, tendo ao fundo o mar de Itapuã, muita gente ouviu Ildásio falar sobre a arte de escrever. Ali, sob sua pena severa, porque severa é a poesia, muita gente aprendeu a escandir um verso, muita gente ouviu falar pela primeira vez em soneto, redondilha, ode ou terça rima. Ali, muitos livros, poemas, poetas e críticos foram estudados à exaustão.

No dizer de Jorge Luis Borges um livro somente merece ser lido se for capaz de entreter. Foi dessa forma, me entretendo, dando inúmeras gargalhadas, literalmente, que li ainda no original o livro mais recente de Ildásio Tavares, “As Flores do Caos”, 2009, uma obra que reúne sonetos selecionados pelo autor, frutos de uma vida inteira dedica à arte, especialmente à poesia. Entre eles, “IX Sonetos da Inconfidência”, escolhidos para esse encontro.
Em meio a tão bons poemas, cada leitor acaba tendo o seu preferido. Certo mesmo é que tudo gira em torno de personagens importantes da Inconfidência Mineira. Esses personagens se transformam em símbolos, e as composições em versos decassílabos, com grande versatilidade e muita inventividade.
Sentia-me feliz ao descobrir em cada poema uma variação métrica própria, a forma como o poeta desloca a cesura dos versos sem perder a musicalidade. Aqui o de Arte Maior, ali o Sáfico, o Heróico. Vemos a estrutura do poema cedendo ao impulso da emoção.
O destaque maior fica por conta do poema III, “O Alferes”. Trata-se de um grito angustiado de Joaquim José da Silva Xavier, dentista e militar de baixa patente que ficou sendo o símbolo maior do movimento. Enforcado, teve seu corpo esquartejado e seus pedaços exibidos em lugares por onde pregou ideais de liberdade. Diz o alferes no primeiro quarteto: Meu coração é um arsenal de horrores/ e dores que atropelam meu país./ Gargalha, puta! Zomba, meretriz!/ O dia há de chegar dos teus senhores.
Fábio Lucas, um dos mais importantes críticos e conferencistas internacionais de literatura brasileira, unanimemente apontado como um dos críticos literários mais importantes do Brasil, reportou-se sobre estes poemas dizendo que o trabalho de Ildásio Tavares vai além do divertimento semântico. Sob pretexto de celebrar personagens de nossa história, constrói sonetos carregados de sentido, mensagens plurivocais, pejadas de palavras explosivas, pois, no curso da sonora abundância, se atiram além das idéias, como uma carruagem iluminada na escuridão da noite.

Em “O canto do homem cotidiano”, 1977, a poesia de Ildásio Tavares estabelece uma lírica que quer se esquivar da realidade opressora do nosso tempo, sem, contudo, deixar de reconhecê-la, como faz no poema que dá título ao livro: Eu canto o homem vulgar, desconhecido/ Da imprensa, do sucesso, da evidência/ O herói da rotina,/ O rei do pijama,/ O magnata/ Do décimo terceiro mês,/ O play-boy das mariposas/ O imperador da contabilidade.” (...) “Mas que, na frustração cotidiana,/ Vai encontrando aos poucos sua glória/ Por isso eu canto a luta sem memória/ Desse homem que perde, e não se ufana/ De no rosário de derrotas várias/ E de omissões, e condições precárias/ Poder contar com uma só vitória/ Que não se exprime nas mentiras tantas/ Espirradas sem medo das gargantas/ Mas sim no que ele vence sem saber/ E não se orgulha, campeão na história/ Da eterna luta de sobreviver.
Este é o homem que encontramos nas ruas, nos bares, nas praças, nos bancos. Homens que jogam bola, capoeira, dama, dominó. São profissionais autônomos, empregados no comércio, na indústria e funcionários públicos. Todos estes, matéria prima para a lírica moderna, onde o poeta canta a própria existência em confronto à realidade opressora do nosso tempo. Perguntado sobre essa questão em uma entrevista recente que nos concedeu o poeta responde que sempre foi assim, contudo, em nossa época, o poeta sofre uma crise tão forte de identidade ante um sistema esmagador que, às vezes, cantar sabe a um grito no escuro.

Ciente que o tempo do artista difere do tempo do homem comum, o poeta abre mão das cronologias para privilegiar o seu tempo interior e mostra-nos uma alma que difere do mundo circunstante. Alheia às necessidades humanas, a poesia insiste em colocar o inexistente acima do existente. No poema “O meu tempo”, do qual trazemos aqui apenas um fragmento, ele nos mostra tal implicação com clareza:

Não existe hora certa, existe o meu relógio,
Lembrando sempre com seu tic-tac
Que há vida
Para ser vivida,
Que houve a vida
Que não se viveu.
Não importa que o rádio renitente ruja
São tal hora e tal minuto,
Hora oficial,
Afinal,
Que há de oficial em minha vida?

Se o que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada, como afiança Cora Coralina, então, povoada de momentos de uma história construída pelos trajetos que vem percorrendo, de análises teóricas dos autores, de poetas, de músicos, enfim, o cotidiano presente, da religiosidade, ilustrando o acadêmico, o conhecimento e as idéias, o cognitivo e o afetivo, o singular no plural, o universal no particular, com inventividade e ironia, a obra de Ildásio Tavares, pode-se dizer, tem as qualidades necessárias para, por certo, ser considerada uma obra importante.
Dessa forma, podemos afirmar que o substrato da sua poesia está numa determinada concepção onde o criador se constrói ao se relacionar com o mundo concreto, ao estabelecer relações e interações com outros homens, e que se apropria dos dados da cultura através das mediações simbólicas que estabelece e que se configura por sua totalidade, causando a estranheza necessária para tirar o leitor da sua inércia e levá-lo à reflexão.

Sobre o poder de criação de Ildásio Tavares, o crítico literário e historiador Nelson Werneck Sodré diz: É fácil compreender a alta qualidade do poeta. Em primeiro lugar pelo domínio da arte poética na linguagem de síntese que é sua essência. E ainda pela capacidade, nessa linguagem, praticar aquilo que Brecht ensinou, as diferentes maneiras de dizer a verdade.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Myriam Fraga: tons e entretons da sua poesia

texto que apresentei no encontro literário da Academia de Letras da Bahia

Tenho procurado ver o poeta à luz da sua própria estética, mas o que ocorre de maneira trivial, na imensa maioria das obras que nos chegam às mãos, é que não se vê estética alguma, senão um emaranhado de poemas disformes que nada dizem ao intelecto. A realidade é que tais obras não possuem conjunto ou idéia porque os autores caminham às apalpadelas, como perdidos, não sabem o que querem, tampouco o que têm a dizer.
É comum esses poetas apresentarem o tema dos seus poemas nos primeiros versos e depois se perderem nele. O resultado óbvio são livros e mais livros contendo emaranhados de poemas estética e discursivamente fragmentados, sem qualquer tipo de unidade que o perpasse em sua inteireza. Sendo impossível definir as obras desses poetas, as abandonamos ao jugo dos seus confrades, sempre dispostos aos elogios fáceis, algo tão próprio dos tempos atuais, fruto da carência de reais valores, onde a transgressão, segundo Frei Beto, deixou de ser exceção para tornar-se regra, o sistemático cedeu lugar ao fragmentário, a teoria ao experimental, tudo coreografado ao compasso dos jogos de linguagem.

Se toda obra deve possuir primeiramente uma intenção, então essa unidade a que nos referimos e que sentimos falta na obra da maioria dos poetas, deve estar presente. Assim se evitaria tanto juízo forçado ou torcido, tanta falta de correspondência entre a obra analisada e aquilo que se está a dizer dela, falácias de um compadrio desmedido e tão típico da ausência de crítica na atualidade.

Mas não há com o quê se preocupar, pois uma verdadeira obra literária possui o valor de resistir a reiteradas leituras, não é olvidada ou entedia, como não entedia um quadro de Rembrandt, um poema de Pessoa, uma escultura de Rodin. Antes ela permanece perene, infinda, na formidável companhia das coisas que nos são caras, pois muitas leituras se sucedem, centenas de obras secundárias deixam apenas breves rumores, quando deixam, mas a lembrança dos livros essenciais, essa continua fresca e persistente.

Encontramos essa unidade reclamada na extensa e variada obra de Myriam Fraga, poeta de amplas e humaníssimas medidas interiores, a procurar, pacientemente, a integração de diversos estímulos para conjugá-los em sua poesia que acolhe e tonaliza os elementos que se amalgamam em nossa identidade. Como em sua obra nada é acidental, portanto, cingida por critérios particulares, ao seu fazer poético comparecem além das demandas pessoais, existenciais, um arcabouço de elementos de cunho lendários, históricos e mitológicos, compondo um sistema de signos que dão unidade às suas obras, enfeixando-as com contornos épico e dramático, humano e sublime.

Desde seu primeiro livro, “Marinhas”, que data de 1964, até “Femina”, que é de 1996, são inúmeros estremecimentos, nove no total, apenas em língua portuguesa. E lá estão as paisagens da Bahia, os fatos e as figuras da sua história colonial, como em “Sesmaria”, 1969, onde percebemos no poema A cidade, esta bela descrição imagética de Salvador:

Foi plantada no mar
E entre corais se levanta.
O salitre é seu ar,
Sua coroa, sua trança
De salsugem,
Seu vestido de ametista,
Seu manto de sal
E musgo.

Já a mitologia grega, com seus deuses e heróis imortais, assunto de tal maneira fascinante, talvez por ter uma importância capital para o conhecimento ocidental, é um dos temas preferidos de Myriam Fraga. Um dos aspectos mais notáveis da mitologia grega, como afirma Mário da Gama Kury, é a atitude irreverente de seus criadores, reveladora da altivez dos gregos e de seu espírito igualitário, que os levaram a querer ombrear com os deuses em suas qualidades e em seus defeitos também. Por esses aspectos, a mitologia grega proporciona que a autora pretenda revestir-se de tal espírito para até mesmo subjugar os deuses, como está implícito no poema Anátema, inserido em “As purificações ou O sinal de Talião”, cujo dístico final diz:

Somos mais do que os deuses
Porque somos

Sabemos que por trás dos mitos, além das palavras e da ação, existe um conhecimento velado que dessa maneira é transmitido aos homens. Assim, a mitologia grega também comparece à obra de Myriam Fraga como elemento que vai auxiliá-la na decifração dos próprios mitos, nas demandas de cunho moral, como o da Esfinge, por exemplo, um ser com a cabeça de mulher e corpo de leoa, que em uma das suas variações contadas foi enviado a Tebas por Hera para punir o amor de Laio por Crísipo. No poema A esfinge, que faz parte do livro “O risco na pele”, 1979, a poeta concebe o monstro como um ser frágil. O que vale, em verdade, aqui, não é a sua imponência deste ser, mas os valores que representa. Como sabemos, após ter seu enigma decifrado por Édipo, a esfinge suicida-se, lançando-se do alto de um rochedo.

Também as demandas da alma feminina estão presentes na obra de Myriam Fraga, tudo ajustado por um censo estético que não dá fuga ao banal, ao superficial. Neste aspecto Myriam é preciosa, da família das Hilst, das Fontela, poetas que, no dizer de Henrique Wagner, conseguem sair de si para fazer literatura mesmo, não diário íntimo, monólogo interior. Em Ars poética, poema inaugural de “Femina”, um livro tão visceral quanto sinestésico, ela afirma: Poesia é coisa /de mulheres. E diz mais. Mostra em Possessão a face oculta dos poetas inspirados: O poema fez de mim/ O seu cavalo;/ Um arrepio no dorso,/ Um calafrio,/ Uma dança de espelhos/ E de espadas.

Por fim, vale lembrar que não podemos deixar de observar também que Myriam Fraga desenvolveu seu próprio dictum, seu modo pessoal de abordar as questões e ocorrências que lhe são caras. Versejando quase sempre em verso livre e breve, lança mão de uma coloquialidade revestida, variavelmente, por tonalidades instáveis e tensas, marca indelével de uma poeta plena, senhora de sua arte e dos seus limites, mas que, contudo, não se furta a explorá-los.

A terceira edição da revista Celuzlose

acabou de ficar disponível na internet

NESTA EDIÇÃO

Entrevista
Rodrigo Petronio

Literatura Brasileira Contemporânea
Alice Ruiz, Deborah Goldemberg, Edson Cruz, Elisa Andrade Buzzo, Lau Siqueira, Leonardo Gandolfi, Maiara Gouveia, Paulo Ferraz, Ruy Proença

Literatura sem Fronteiras
Jesús Aparicio González (Espanha); Luis Aguilar (México); Luis Armenta Malpica (México); Luís Serguilha (Portugal)

Caderno Crítico
Antropofagia e linguagem poética no século XXI - por Lau Siqueira
Um livro sem fim - por Reynaldo Jiménez

Poesia Visual
Celso Borges e Rodolfo Franco

Para acessá-la, basta clicar no link:
http://issuu.com/celuzlose/docs/celuzlose_03

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Dois poemas de Myriam Fraga

Hoje, sexta-feira, estarei na Academia de Letras da Bahia dizendo algumas coisas sobre a sua obra, também sobre a obra de Ildásio Tavares. O evento está marcado para começar às 17 horas. Sábado, 19 horas, na livraria Praia dos Livros, é o lançamento de "Diálogos - Panorama da nova poesia grapiúna". Porto da Barra, ao lado do Instituto Mauá.

A esfinge

Revesti-me de mistério
Por ser frágil,
Pois bem sei que decifrar-me
É destruir-me.
No fundo, não me importa
O enigma que proponho.
Por ser mulher e pássaro
E leoa,
Tendo forjado em aço
As minhas garras,
É que se espantam
E se apavoram.
Não me exalto.
Sei que virá o dia das respostas
E profetizo-me clara e desarmada.
E por saber que a morte
É a última chave,
Adivinho-me nas vítimas que estraçalho.


Pasifae e o touro

Neste pasto sem fim,
Neste campo de flores,
Navego teu silêncio como um barco,
E como um barco navegas
Meu silêncio.
Toda palavra entre nós
Carece de sentido.
Apenas nos olhamos,
Enquanto a pele estala
Como um fruto.
Sou delicada e cruel,
Tu és manso e assassino,
Mas não posso tocar-te
E não ouso perder-te.
Contemplar-se
E contemplar,
Este o nosso destino.
Inexorável, à nossa volta,
Constrói-se o labirinto.

Silvério Duque em alta

Após vencer o Prêmio Bahia de Todas as Letras, o poeta Silvério Duque emplaca mais uma: fora selecionado para publicação em livro de poesia patrocinado pela Canon do Brasil, uma iniciativa do Selo Editorial Fábrica de Livros, da Scortecci. A obra selecionada dessa vez foi o poema “O grito”, sobre um quadro de Edwar Munch.
Faz algum tempo tive acesso aos originais de um livro de Silvério, onde está inserido o poema premiado. Trata-se de um compêndio composto por poemas que dialogam com clássicos das artes plásticas, uma obra formidável, de impacto, que fará muito sucesso, tenho certeza, assim que for publicado, pois é de qualidade indiscutível.


Vida longa ao Silvério Duque!

O lançamento do livro está marcado para uma segunda-feira, dia 14 de dezembro, em São Paulo, às 19h, na Casa das Rosas, Av. Paulista, 37.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Micro entrevista com Ildásio Tavares + dois poemas inéditos do poeta de Itapuã

GF – Na lírica moderna o poeta passou a cantar a própria poesia em oposição à realidade opressora do nosso tempo. Como você analisa tal fato?
IT
– Sempre foi assim. Contudo, em nossa época, o poeta sofre uma crise tão forte de identidade ante um sistema esmagador que, às vezes, cantar sabe a um grito no escuro.

GF – E o que, na sua ótica, justifica esse grito?
IT
– A total necessidade de expressão do indivíduo amordaçado pelo sistema.

GF – Você já afirmou que acha mais difícil criar um poema com versos livres que um poema dentro da métrica, por quê?
IT
– Por que a métrica te dá um parâmetro, uma referência fixa, um modelo estrutural para você preencher. Para o verso livre, você tem que criar este modelo estrutural. Enquanto para um você tem uma métrica geral pré-estabelecida para o outro você tem que criar uma métrica particular para cada poema. Muitos poetas quebram a cara aí porque pensam que o verso livre é anárquico ou prosaico. Não, você pode fazer arte do caos, mas não fazer caos da arte. O verso é livre, não caótico ou frouxo.

Dois poemas inéditos do autor
As anotações que o poeta faz abaixo de cada um dos seus poemas marcam a data em que o mesmo foi concebido, o local e a quantidade de vezes que sofreu interferência.

Canção da Menina na Avenida

De pé, nos tristes passeios,
noite fria na avenida,
espera mas não espera,
andando ao rastro da luz.

Há de vir, pelo silêncio,
uma oferenda do acaso,
deslindando a escuridão,
prêmio da perseverança.

Quieta, a menina fenece
na frieza da calçada.
Enquanto espera, apascenta
sua veloz esperança.

18.VII.2008
Itapuã 4


Canção de mar e vento
pra Kabá e pra Infraero

Ela caminha na praia
e nada traz sobre a pele
que um vestido transparente
sobre a nudez de escultura

O vento venta o vestido
que cola ao corpo e arredonda;
denunciando-lhe as formas,
seus abismos, suas ondas.

Quero-me amarrar no mastro
do meu saveiro, depressa,
antes que o canto comece
e não possa resistir.

Serenai, meus verdes mares
ao embalo do meu canto.
Petrificai-me, Ó meus olhos,
pelo que vejo e não vejo.

12.XI.2008
Itapuã 3

Encontros Literários em Salvador

Estarei nesta sexta-feira, às 17 horas, na Academia de Letras da Bahia participando do Encontros Literários do ponto de cultura daquela casa, fazendo comentários sobre a obra de Ildásio Tavares e Myriam Fraga, dois dos maiores expoentes da literatura baiana no século XX. Trata-se de um programa de pós-graduação em literatura e diversidade cultural da UEFS - Universidade Estadual de Feira de Santana. A curadoria do encontro está a cargo do poeta Luis Antônio Cajazeira Ramos. No sábado estarei na Livraria Praia dos Livros, no Porto da Barra, às 19 horas, lançando “Diálogos – Panorama da Nova Poesia Grapiúna”. A curadoria desse evento é do poeta e filósofo Ivan Maia. Por isso nossas próximas postagens serão sobre Ildásio Tavares, Myriam Fraga e Diálogos. Espero que gostem!

clique na imagem para vê-la em tamanho maior

sábado, 28 de novembro de 2009

Outro haikai de Sérgio Marinho

A pedido de Gerana Damulakis

ao olhar do travesti
confesso
não resisti

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Dois haikais de Sérgio Marinho

Um dos principais cultores do haicai na Bahia é Sérgio Marinho, foi ele quem me falou pela primeira vez sobre essa forma poética. Sua obra anda dispersa e pouco publicada em nossos veículos especializados, pois ao que nos parece, o poeta é uma exceção. Avesso às publicações, sequer tem o cuidado de catalogar seus poemas que ficam guardados exclusivamente na memória. Também são raras as oportunidades de vê-lo recitar em público.
São de sua lavra os seguintes haikais:

todos os meus ais
cabem
num hai-kai

***

em matéria de vôo
tira de letra
a borboleta

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Somos todos pós-modernos?

Escrito por Frei Betto

A resposta é sim se comungamos essa angústia, essa frustração frente aos sonhos idílicos da modernidade. Quem diria que a revolução russa terminaria em gulags, a chinesa em capitalismo de Estado e tantos partidos de esquerda assumiriam o poder como o violinista que pega o instrumento com a esquerda e toca com a direita?
Nenhum sistema filosófico resiste, hoje, à mercantilização da sociedade: a arte virou moda; a moda, improviso; o improviso, esperteza. As transgressões já não são exceções, e sim regras. O avanço da tecnologia, da informatização, da robótica, a gloogletização da cultura, a telecelularização das relações humanas, a banalização da violência, são fatores que nos mergulham em atitudes e formas de pensar pessimistas e provocadoras, anárquicas e conservadoras.
Na pós-modernidade, o sistemático cede lugar ao fragmentário, o homogêneo ao plural, a teoria ao experimental. A razão delira, fantasia-se de cínica, baila ao ritmo dos jogos de linguagem. Nesse mar revolto, muitos se apegam às "irracionalidades" do passado, à religiosidade sem teologia, à xenofobia, ao consumismo desenfreado, às emoções sem perspectivas.
Para os pós-modernos a história findou, o lazer se reduz ao hedonismo, a filosofia a um conjunto de perguntas sem respostas. O que importa é a novidade. Já não se percebe a distinção entre urgente e importante, acidental e essencial, valores e oportunidades, efêmero e permanente.
A estética se faz esteticismo; importa o adorno, a moldura, e não a profundidade ou o conteúdo. O pós-moderno é refém da exteriorização e dos estereótipos. Para ele, o agora é mais importante que o depois.
Para o pós-moderno, a razão vira racionalização, já não há pensamento crítico; ele prefere, neste mundo conflitivo, ser espectador e não protagonista, observador e não participante, público e não ator.
O pós-moderno duvida de tudo. É cartesianamente ortodoxo. Por isso não crê em algo ou em alguém. Distancia-se da razão crítica criticando-a. Como a serpente Uroboros, ele morde a própria cauda. E se refugia no individualismo narcísico. Basta-se a si mesmo, indiferente à dimensão social da existência.
O pós-moderno tudo desconstrói. Seus postulados são ambíguos, desprovidos de raízes, invertebrados, sensitivos e apáticos. Ao jornalismo, prefere o shownalismo.
O discurso pós-moderno é labiríntico, descarta paradigmas e grandes narrativas, e em sua bagagem cultural coloca no mesmo patamar Portinari e Felipe Massa; Guimarães Rosa e Paulo Coelho; Chico Buarque e Zeca Pagodinho.
O pós-modernismo não tem memória, abomina o ritual, o litúrgico, o mistério. Como considera toda paixão inútil, nem ri nem chora. Não há amor, há empatias. Sua visão de mundo deriva de cada subjetividade.
A ética da pós-modernidade detesta princípios universais. É a ética de ocasião, oportunidade, conveniência. Camaleônica, adapta-se a cada situação.
A pós-modernidade transforma a realidade em ficção e nos remete à caverna de Platão, onde nossas sombras têm mais importância que o nosso ser e as nossas imagens que a existência real.

(*) Frei Betto é escritor, autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.

sábado, 21 de novembro de 2009

Fragmentos de entrevista sobre haikai que concedi a Jiddu Saldanha

3 - Você acha possível manter o foco no haikai tradicional, considerando a variedade de gêneros praticados no Brasil?
GF – Sim, sem dúvida, entretanto, para o leitor comum, o haikai com rima e mais próximo do senryu é muito convidativo. O Paulo Franchetti, ao comentar o haikai de Guilherme de Almeida, afirma que este parece fracassar por conta da inserção do título, pois ele muitas vezes é determinante para seu entendimento e nos faz “reencontrar os limites da nossa própria tradição”. Concordo plenamente com ele. De tudo que vi em haikai, o título me parece ser mesmo o único artifício inserido no ocidente que é condenável. Por outro lado, se queremos um haikai marcadamente brasileiro, precisamos escrever mais sobre temas como o sertão, o futebol, o carnaval, samba, são João, maracatu, etc.
Os mais tradicionalistas dizem ainda que Issa, Busson e Basho, condenariam hoje a metáfora e a aliteração. Quem pode garantir? Contudo, é evidente que há recursos dispensáveis, mas me parece que há um ganho considerável para quem sabe utilizá-los bem. Contrariando alguns, eu diria que o haikai é um só, assim como o soneto ou a redondilha é uma só. A questão escolástica apenas mostra como é rica e diversa a poesia em si.

4 – O que você considera um bom haikai?
GF –
Para um crítico honesto é impossível estabelecer o que é um bom haikai, pois são tantas as variantes. Cada um poderá estabelecer parâmetros de acordo com a estética que mais valoriza ou gosta, mas isso ainda é pouco, é preciso olhar o todo. Prefiro buscar perceber se o autor em questão, no conjunto de sua obra, demonstra possuir maior ou menor grau de consciência literária. Se ele executa bem aquilo a que se propõe e tem o que dizer, então, teremos um bom haikai.
Assim como há bons e maus poetas, há bons e maus críticos, mas estes jamais conseguirão grassar o todo. Fico com Shelley, para quem “os poetas são os autênticos juízes dos poetas dentro do tempo”.

5 – Na tua percepção, quem são hoje os nomes que merecem destaque como bons criadores de haikais?
GF –
Não entendo porque muita gente se nega a responder diretamente esse tipo de pergunta. Além de poetas de gerações passadas, como Oldegar Franco Vieira e Abel Pereira, gosto muito de Anibal Beça. Aliás, fico muito feliz que um texto que escrevi sobre “Folhas da selva” tenha levado alguns leitores a buscarem o livro diretamente com o autor ou na internet. Dele, destaco o seguinte haicai:

Quando o gongo bate
é hora que aflora a espora
do galo em combate.

Também gosto de Saulo Mendonça, um poeta paraibano de muito talento e discernimento lírico. Aliás, ele escreveu um “haigato” que eu gostaria de ter escrito:

Um gato dorme
sobre a balança:
sono pesado.

Saulo foi uma grande leitura que fiz neste ano de 2009. Também escrevi sobre sua poesia, o texto foi bastante publicado em sites especializados e publicações literárias. Ainda o José Marins e a Teruko Oda gozam da minha admiração. Na área ensaística é inegável a contribuição do Paulo Franchetti e do Carlos Verçosa para a firmação do haikai no Brasil.


Três haikai que compus recentemente

vivo a ordenhar
as pedras do meu jardim –
minerais poemas.


ardendo em desejos
se inflama a gatinha em chamas –
ásperos gracejos.


esforço tremendo –
uma gaivota insistente
vai vencendo o vento.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Micro entrevista com Maria da Conceição Paranhos

Foi através de suas mãos que eu e tantos colegas (como o cordelista Antônio Barreto, na foto com MCP), postulantes a poetas, adquirimos instrumental suficiente para continuarmos nossa caminhada. Fora ali, na varanda de sua casa, no Rio Vermelho, em Salvador, que muitas das minhas sextas-feiras, sempre no pôr-do-sol, se transformavam em delírio, ouvindo-a discorrer elegantemente sobre questões fundamentais ao poema. Só agora entendo. Sempre rigorosa, nenhuma aresta ficaria por aparar, o que não se resolvia na oficina era tratado como dever de casa, e na semana seguinte cobrava-se. Assim fomos apurando nosso verso.


GF – Como a senhora conceitua a poesia e o poema em si?
MCP
– Poesia é viver o mundo como se o inaugurasse, seria uma definição? Poesia é prazer de fonemas rolando na boca e criando sons, significações, expressão do mundo experienciado pela voz por detrás do eu poético. Poema é lua-de-mel com linguagem e língua nativa, os manes observando, intervindo e aconselhando num círculo de formas e significações de amores idos e vividos, digamos assim, para designar os poetas e artistas que nos cercaram desde sempre. Poema é também inauguração – da linguagem desta vez.

GF – Em que pese ter trazido maior liberdade e certo sentido de brasilidade à nossa poesia, o Modernismo, por outro lado, segundo alguns dos seus críticos, também nos prestou algum desserviço, propiciando justamente a partir dessa liberdade, que se caísse na permissividade e no vulgarismo. Como a senhora vê essa questão?
MCP
– O Modernismo no Brasil foi um artefato de vanguarda de programação. Houve incalculáveis perdas e mal-entendidos que persistem, a exemplo do que se pensa ser poesia – verso livre, poema curto, poema-piada – que preexistiam, aliás, de modo não programático. Em verdade, o momento histórico de maior liberdade formal e inventividade na poesia – inclusive a brasileira – foi o Romantismo, como estilo de época, claro. O repúdio modernista ao Parnasianismo, ao Simbolismo e ao próprio Romantismo se foi benéfico no que diz respeito ao epigonismo, foi e é lamentável enquanto desfeiteia a face espaço-temporal da poesia e a faz ahistórica, distanciando-a, portanto, do pulsar expressional autenticamente brasileiro. Claro, o Modernismo de programação, em termos de avaliação crítica de suas três fases (conforme a historiografia brasileira divisou), não consegue abafar a voz dos verdadeiros poetas, mesmo daqueles como Mário de Andrade, Manoel Bandeira e Jorge de Lima – que se forçaram a ser modernistas à la carte.

GF – A chamada pós-modernidade e a ditadura midiática chegam a te apavorar?
MCP
– Por que o fariam? Vivemos mergulhados nesse caldo sócio-artístico-cultural e assim nos movemos – de modo crítico desejavelmente, sem que nossa percepção amorteça com os chavões já estratificados da pós-modernidade palradora ou a anestesia da mídia.

Dois poemas da autora


SEGUNDA-FEIRA
Em: Sonetos de uma Semana Perfeita (inédito)

A quem não foder bem cá neste mundo
há castigos previstos em triste averno,
e por salvar-te aqui do mal profundo
vai logo te afastando desse inferno.

Corre, ó Amado, deste mal imundo,
e entrai a salvo no meu paraíso,
pois foder é sinal de muito siso –
neste penar da vida, é bem jocundo.

Devêssemos guardar a castidade,
para que Deus nos daria o tesão,
se não para foder com liberdade?

Não duraremos para a eternidade:
se as horas do prazer só vêm e vão,
fodamos já, que é curta a nossa idade.


Quatro sonetos cardinais
(Poema Nº 4)

Teu dormir só suscita meu desejo,
pois eu, então, vejo tua chama insone –
corcel insano em desandado trote,
que me galope enquanto ainda sonho

com toda a lava que nos cobre e me arde
em fronha de cetim que se entreabre
ao corpo túrgido, encerrado, dentro,
rasgando a pele – em gana transformado,

rugindo rouquidão. Mucosa ávida,
escancarando-se a teu beijo álacre,
cortante gládio a lacerar-me o gáudio.

Com lassa boca, plena de alvoradas,
eu te derroto quando, exausto, tombas,
e eu te profano com meu terno afago.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Micro entrevista com Cyro de Mattos

Que mais se pode dizer sobre a poesia de um autor a respeito da qual já se falou quase tudo e tão bem, uma poesia traduzida para diversos idiomas e premiada em importantes concursos nacionais e internacionais, senão exaltá-la? Por isso deixarei de falar sobre como a sua cidade, seu rio e sua gente emergem em sua poesia para que o próprio poeta (atual presidente da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania) fale sobre tais aspectos nesta micro entrevista que é apenas um excerto de um diálogo maior que tive com o poeta e que fará parte do meu livro ensaístico sobre a obra de poetas do sul da Bahia, a ser lançado em breve. Espero que gostem!

Gustavo Felicíssimo – Poeta, de que modo você percebe a sua cidade, sua gente e seu rio emergirem na sua poesia?
Cyro de Mattos
– Com alma e sentimento do mundo. É como se o ontem fosse o hoje na transcendência de um instante. Contente do amor que tenho por minhas origens, é no espírito e coração que vai topar a indesejada quando me despojar em tudo que ela gosta.

GF – Qual o papel que as memórias da infância, esse seu “patrimônio imaterial”, exerce no seu processo criativo?
CM
– Vestem-me de sonho fazendo surgir o menino que está em mim por toda a extensão da pele. Sempre me ofertam pedaços de infância que os adultos trancaram na alma. Assim decepções e incompreensões cedem lugar à inocência na aventura da vida, através do milagre que só a poesia consegue fazer. “Veja aí o que digo no poema inédito “Uma Canção”: “Uma canção de Itabuna/ Ressoa nessa estrada,/ A essa altura comprida,/ Vem de dentro da infância,/ Nesses ventos da aventura.// Pelejando nos campinhos,/ Festejando nos quintais,/ São meninos como sonho,/ Cada um quer ser herói,/ Nesses ventos da esperança.// Todos eles um rio conhece/ Nos mergulhos do verão,/ Nos acenos da aurora/ Que desponta radiante/ Nesses ventos da ilusão.”

GF – Você já examinou os caminhos que o levam a escrever?
CM
– Para liberar angústias e perguntar sobre a vida. Para completar-me porque a vida é falha. É uma necessidade de ser solidário com aquele que me vai ler. De ser útil. Penso também que é uma missão que Deus me deu. Muita gente pensa que é fácil escrever quando se tem o dom. Não é bem assim. É ato de solidão na constante canção do viver, às vezes alegre porque também existem as flores. E depois que o livro está pronto publicá-lo é sempre complicado. O escritor é a única criatura neste mundo que pare o mesmo filho duas vezes. O primeiro parto acontece quando conclui o livro, o segundo, na sua publicação. Os dois caminhos que levam a cada parto sempre são marcados de apreensões, esperanças, desejos. Sei que a poesia não resolve os problemas econômicos, políticos, jurídicos, sociais e religiosos. Mas a gente cresce interiormente quando se emociona ao ler um poema verdadeiro. E a poesia não quer nada em troca, apenas a cumplicidade do outro, do leitor em busca das descobertas e sustos esplêndidos que a vida oferece. Viver sem a esperança de brotar como verso-semente do amor em cada um é mesmo impossível.

Dois poemas do autor

O menino e o mar

Era a primeira vez
Que tinha ido ver o mar.
Todo alegre, de calção,
Peito nu e pé no chão.

Quando viu tanta água
Fazendo barulho
Sem parar, disse:

- Pai, me dê sua mão.


Rio Cachoeira

Havia o fragor de espumas,
Havia o verde das vagas,
Havia o tesouro na ilha,
Havia o areal de prata.

Havia margarida nas margens,
Havia borboletas no barranco,
Havia o sol na canoa,
Havia as fotos da lua.

Havia lavadeira nas pedras,
Havia andorinhas na vidraça,
Havia areeiros na música,
Havia pescadores na fábula.

Ao menino bebedor de poesia
Que falava com os peixes no mergulho
Certamente uma miragem que havia,
Sem saber de encalhe e caramujo
Reservando o pantanal de ventania.

O rio transpira claro nessa tarde
Na voz que vem das águas sem alarde
Dizendo que no leito antigamente
O tempo conspirava no horizonte.
Se na manhã de azul era banhado
Noturno o rio mirava o bem-amado.

domingo, 15 de novembro de 2009

Cyro de Mattos tem obra publicada na Alemanha

A tradução é de Curt Meyer-Clason

O sul baiano, onde o autor nasceu e reside, serve de motivação aos poemas reunidos na coletânea.

Contista, novelista, poeta, cronista, ensaísta, autor de livros infanto-juvenis e organizador de antologias. Dono de uma vasta experiência no universo literário, Cyro de Mattos publica mais um título que brinda a literatura grapiúna e também leva riqueza cultural à Alemanha. “Zwanzig Gedichte von Rio und andere Gedichte”, ou simplesmente “Vinte Poemas do Rio e Outros Poemas”, é uma coletânea que foi publicada recentemente pela Projekte-Verlag, em Halle, Alemanha, com a tradução de Curt Meyer-Clason.
Na primeira parte do livro, intitulada Zwanzig Gedichte von Rio (Vinte Poemas do Rio), o poeta revisita e transfigura o rio Cachoeira, que divide sua cidade natal (Itabuna) em duas partes, quando então havia nele areeiros, pescadores, lavadeiras e aguadeiros. Assim, o seu discurso poético mergulha na infância de uma gente ribeirinha, usando para isso uma dicção líquida em uma espécie de recuperação do tempo perdido. Como ressaltou o crítico e poeta Fernando Py, Mattos é “conciso na expressão e claro nas imagens que respondem pela eficácia poética do conjunto”.
Já na segunda parte da coletânea, Gesang Auf Unsere Liebe Frau von Den Waldern, Canto a Nossa Senhora das Matas, percebe-se que vários poemas obedecem a um projeto ecopoético, no sentido primordial em que insere o leitor no centro do mundo, no qual o discurso do poeta está visceralmente relacionado com a natureza, cujos elementos vêm sendo gritantemente ofendidos pelo homem nos tempos atuais. Em sua terceira parte a coletânea em alemão inclui cinco poemas infantis, sob a denominação Kindergedichte, Poemas infantis. O livro também traz foto e biografia resumida do poeta que já obteve no Brasil e exterior alguns prêmios de relevo, como o Prêmio Nacional Ribeiro Couto (UBE/Rio), Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, Finalista do Prêmio Jabuti (três vezes) e Prêmio Internacional de Poesia Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália, além de estar presente em mais de 45 antologias importantes do conto e poesia, no Brasil, em Portugal, Alemanha, Rússia, Dinamarca, México e Estados Unidos.

Talento mágico

Segundo Cyro de Mattos, ele enviou há seis anos para Curt Meyer Clason primeiramente seu livro “Vinte Poemas do Rio” e, a seguir, “Cancioneiro do Cacau”. Recebeu, então, do consagrado tradutor alemão não só a tradução de vários poemas bem como a opinião seguinte: “Li e reli seus poemas com os sentidos encantados e admirado pelo seu talento mágico.”
Sobre Cyro de Mattos Jorge Amado pronunciou-se dizendo: “Cantor da terra e das águas. Cantor do amor. Pastor de diversos bichos. Cyro de Mattos, tão esplêndido poeta, tão esplêndido ficcionista”.

sábado, 14 de novembro de 2009

UMA BURCA PARA GEISY

a incrível história da moça que foi esculachada numa faculdade paulista por andar de mini saia. se fosse aqui na Bahia ela seria colocada num altar.

I
Quando Geisy apareceu
Balançando o mucumbu
Na Faculdade Uniban,
Foi o maior sururu:
Teve reza e ladainha;
Não sabia que uma calcinha
Causava tanto rebu.

II
Trajava um mini-vestido,
Arrochado e cor de rosa;
Perfumada de extrato,
Toda ancha e toda prosa,
Pensou que estava abafando
E ia ter rapaz gritando:
"Arrocha a tampa, gostosa!"

III
Mas Geisy se enganou,
O paulista é acanhado:
Quando vê lance de perna,
Fica logo indignado.
Os motivos eu não sei,
Mas pra passeata gay
Vai todo mundo animado!

IV
Ainda na escadaria,
Só se ouvia a estudantada
Dando urros, dando gritos,
Colérica e indignada
Como quem vai para a luta,
Chamando-a de prostituta
E de mulherzinha safada.

V
Geisy ficou acuada,
Num canto, triste a chorar,
Procurou um agasalho
Para cobrir o lugar,
Quando um rapaz inocente
Disse: "oh troço mais indecente,
Acho que vou desmaiar!"

VI
A Faculdade Uniban,
Que está em último lugar
Nas provas que o MEC faz,
Quis logo se destacar:
Decidiu no mesmo instante
Expulsar a estudante
Do seu quadro regular.

VII
Totalmente escorraçada,
Sem ter mais onde estudar,
Geisy precisa de ajuda
Para a vida retomar,
Mas na novela das oito
É um tal de molhar biscoito
E ninguém pra reclamar.

VIII
O fato repercutiu
De Paris até Omã.
Soube que Ahmadinejad
Festejou lá no Irã,
Foi uma festa de arromba
Com direito a carro-bomba
Da milícia Talibã.

IX
E o rico Osama Bin Laden,
Agradecendo a Alá,
Nas montanhas cazaquistãs
Onde foi se homiziar
Com uma cigana turca,
Mandou fazer uma burca
Para a brasileira usar.

X
Fica pra Geisy a lição
Desse poeta matuto:
Proteja seu bom guardado
Da cólera dos impolutos,
Guarde bem o tacacá
E só resolva mostrar
A quem gosta do produto.

Miguezim de Princesa

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Um belo poema para Ilhéus

A notícia ruim é que não encontro uma única referência sobre seu autor


Ilhéus
Melo Barreto Filho

Ilhéus é uma esperança permanente
Voltada para o azul sem fim dos mares.
É a Princesa do Sul, proclama, crente,
Quem lhe sabe a doçura dos seus lares.

Ilhéus é uma certeza que o Presente,
Sacerdote do tempo – em seus altares
Oferece ao futuro onipotente,
Visão maravilhosa dos palmares!

Ah! Quantas seduções Ilhéus encerra!
E o peregrino, seduzido, anseia.
Desvendar-lhe os encantos da cidade...

E antes que o peregrino alcance a terra,
Unhão... Pontal... A terra amiga o enleia
Num amplo abraço de hospitalidade!

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Dois poemas de Sosígenes Costa

O pavão vermelho

Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.

Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.

É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.

Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.


Índio bom é índio morto

"Índio bom é índio morto",
pensamento natural
de quem se apossou do porto
desta Índia Ocidental.

O cristão é que é a bondade.
Vivo ou morto. É natural.
Na estrita fidelidade
a Cristo e a seu ideal,
o seu sonho de bondade
é espalhar a caridade,
a pureza e a santidade
nesta Índia Ocidental.

Sonho de luz, em verdade,
sonho de santo e de frade
é o que empolga a cristandade
trazendo para este porto
a armada do Santo Graal.

Mas o índio fica absorto,
vendo esta armada no porto,
ante o ditado fatal:
"Índio bom é índio morto".

Burilado em ouro e jade,
esse conceito fatal
é um ruim verso de jade
da epopéia ocidental.

Ligação externa:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/costa.html

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Homenagem a Sosigenes Costa

clique na imagem para vê-la em tamanho maior


O evento contará com uma palestra de Heitor Brasileiro Filho, poeta e estudioso da obra sosigenesiana, também com uma performance teatral de José Delmo, que interpretará trechos do consagrado poema Iararana.

Oriundo de Belmonte, o poeta chegou a Ilhéus em 1926, onde escreveu a maior parte da sua obra. Nascido e falecido em novembro, Sosígenes Costa é um dos mais celebrados poetas grapiúnas e, segundo o poeta e crítico paulista José Paulo Paes, o maior poeta da Bahia depois de Castro Alves.
Em vida publicou um único livro, “Obra Poética”, pela Editora Leitura, em 1959, pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia, o mais importante do país. Esse livro, segundo Jorge Amado, teve os originais quase arrancados à força por ele e por James Amado, “lutando contra a obstinada decisão de ineditismo do homem tão orgulhoso e tímido que foi Sosígenes Costa”. Entre 1978 e 1979, por meio da editora Cultrix, e por iniciativa de José Paulo Paes, foram publicadas a segunda edição, revista e ampliada, de “Obra Poética” e o inédito “Iararana”. Já em 2001, via Conselho Estadual de Cultura da Bahia, fora publicada a sua “Poesia Completa”.
Há alguns estudos sobre sua obra, a saber: “Pavão, Parlenda, Paraíso”, 1978, de José Pulo Paes; “O poeta grego da Bahia”, 1996, de Gerana Damulakis; e “Travessia de Oásis – A Sensualidade na Poesia de Sosígenes Costa”, (2004), de Florisvaldo Mattos. O professor, jornalista e pesquisador, Gilfrancisco, ainda reuniu as crônicas que Sosígenes publicou na imprensa grapiúna e, em 2001, ano do Centenário de Sosígenes, as publicou com o apoio da Fundação Cultural de Ilhéus, com extensa memória sobre a Academia dos Rebeldes, grupo liderado por Pinheiro Viegas, em Salvador, e da qual fez parte juntamente com Jorge Amado. Sosígenes ainda fez parte da Academia de Letras de Ilhéus, como nos informa o poeta Heitor Brasileiro Filho, “impondo como condição sine qua non que não tivesse que fazer qualquer discurso quando da sua posse”. Em 2004, por conta de um consórcio entre as editoras da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana) e UESC (Universidade Estadual Santa Cruz), sob a organização de Cyro de Mattos e Aleilton Fonseca, publicou-se “O triunfo de Sosígenes Costa”, um compêndio contendo estudos, depoimentos e uma breve antologia poética.

A poesia de Sosígenes nos arrebata pela pungência dos seus versos, pela espiritualização da carne e pela carnalização do espírito. Nela, reflete-se viva a adequação ao simbolismo e ao modernismo, sem dúvida, partes efetivas e afetivas na formação desse poeta que, pela sensibilidade e originalidade, tornou-se, seguramente, um dos mais potentes poetas baianos de todos os tempos e um dos mais expressivos e populares poetas brasileiros do século XX.

Homenagem a Sosigenes Costa
Academia de Letras de Ilhéus
Dia 14 de Novembro, 19 horas

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Prestem atenção no que disse esse cara

Nicolas Boileau
Nada ofereça ao leitor senão o que pode agradá-lo. Tenha ouvidos exigentes para com a cadencia: que em seus versos, cortando as palavras, o sentido sempre suspenda o hemistíquio e lhe marque a pausa. Tome cuidado para que uma vogal, apressada demais em correr, não se choque em seu caminho com outra vogal. Existe uma feliz escolha de palavras harmoniosas; fuja do odioso encontro dos maus sons: quando os ouvidos são feridos, o mais acabado verso e o mais nobre pensamento não podem agradar.

O samba vai dar sua risada

e eu estarei lá, no Teatro Municipal de Ilhéus, para dizer um ou outro poema e apresentar essa gente boa.

O grupo Samba Chula de São Braz, tesouro da tradição oral de matriz africana, vem mostrando pelo país afora a riqueza cultural do samba de roda. Os cantadores nascidos na pequena vila de São Braz, em Santo Amaro-Ba, lançam agora seu primeiro CD solo: Quando Dou Minha Risada, Há Há..., através do Prêmio Pixinguinha – Bahia 2008, da Funarte (Fundação Nacional de Artes).
Já referenciado por artistas como Maria Bethânia, Roberto Mendes e Antônio Nóbrega, o grupo Samba Chula de São Braz faz show de lançamento do seu disco no Teatro Municipal de Ilhéus, dia 17 de novembro, terça-feiras, às 20h.
O álbum - que tem direção artística de Katharina Döring e direção musical de Cássio Nobre, com produção de Fernando de Santana e produtor fonográfico, Tadeu Mascarenhas - vem recheado de faixas alegres e coloridas, em ritmo de chula, samba corrido, capella e marcha.
Ao mesmo tempo em que cantam a labuta do dia a dia, os sambadores se soltam em cantigas lúdicas e eróticas, contam piadas e ironizam situações sensuais e tragicômicas da vida. Ainda no CD, participação especial do cantor e compositor Raimundo Sodré.
O Samba de Roda do Recôncavo - reconhecido pela UNESCO, desde 2005, como Patrimônio Imaterial da Humanidade - tem no Samba Chula de São Braz um de seus mais genuínos representantes. O grupo baiano, um dos pesquisados, inventariados e registrados (foto, áudio e vídeo) pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), foi um dos 16 participantes dos recém-lançados CD e DVD do Projeto Cantador de Chula, concebido pela etnomusicóloga e professora de arte-educação da Uneb, Katharina Döring.

sábado, 7 de novembro de 2009

Mostra da poesia baiana nos últimos dez anos - Parte 2

Pois bem, vai aí para quem quiser ver a segunda parte da nossa brevíssima mostra da poesia baiana nos últimos dez anos. São dezoito poetas, em todos sentimos aquela segurança basilar que não nos provoca remorso por estarmos a elogiar. E assim como acontece na Bahia, temos a certeza que em outros estados da nação existem muito bons poetas (não apenas um ou outro) que nada deixam a dever para paulistas e cariocas, alvo principal do trabalho do senhor Marcos Lucchesi.
Aliás, devo dizer aqui que, historicamente, a poesia brasileira sempre esteve muito melhor representada nas obras de autores nordestinos e mineiros, que nas de paulistas ou cariocas. Basta recorrer à história e veremos!
Caso as editoras do Rio ou São Paulo (lá estão as grandes editoras) continuarem a acolher obras enganosas, que nada de verdadeiro dizem sobre a poesia brasileira atual, estarão insistindo no erro psicótico e cabotinista que lhes dão a verdade enganadora de serem o umbigo do país.


Edson Cruz
Palimpsesto

toda poesia já
escrita

não se equipara
a toda poesia

inscrita
a poesia jaz


João Filho
Tríplice (Poema nº2)

O presente engana, minha querida,
parece trazer o eterno pra terra;
nesta sala ele respira enquanto

queima, se descermos e buscarmos as
escuras alamedas do século
e assim passearmos nossa ânsia e apego,

as menores manifestações disso
que se esfuma conosco e são passíveis
de sumir sem registro de existido, um

cisco sequer para alienígenas de
toda sorte; todavia sabemos
que ir é da natureza do instante, mas

por certo que seja, dói: não quer passar
nem quer a permanência, doloroso
e irredutível o seu milésimo

verticalmente palmilhado e aceito.
Aceito? Arma ou máscara nenhuma que
minimize a nudez insubornável

de ter nascido, e o inato dom de inquirir
tornado impasse: ordenando escolha sem
possível fuga. Pelas alamedas

pensadas vamos convictos do muito
que o presente dissipa a cada passo
e sentimos mais na alma que no osso.


Márcia Tude
Julho

O terno de névoa e céu
repousa no guarda roupa.
Valsa entre o espelho e o chapéu;
entre os cabides sem roupa.

Reviro o bolso rasgado
que o tempo cansou do tom:
No lenço azul, desbotado
marcas de vinho e batom.

A lembrança da gravata
com girassóis furta-cor
e das argolas de prata

deixadas no corredor,
esconde na ânsia das traças
uma lapela sem flor.


Nívia Maria Vasconcelos
Escondedouro do amor


O amor não está na estrela
que, ao cair, carrega o pedido sussurrado,
está no olhar que a percebe e espera.

O amor não está nas cartas
lançadas sobre mesas postas,
está na tensão de quem as ouve e deseja.

Búzios, números e datas
não contêm o amor,
ele não está numa procura.

Rezas, promessas e velas
não trazem o amor,
só a esperança de encontrá-lo.

Mas, ninguém encontra o amor,
ele é (misteriosamente) despertado...
num momento de distração e abandono.


Patrice de Moraes
Toma meu corpo, amor (Poema nº 1)


Toma meu corpo, amor, e com vontade
roça sobre ele as carnes da luxúria;
e nos faça devassos dessa fúria,
para nós a maior felicidade.

Toma meu corpo, amor, e põe em cena
essa tua língua espessa de ousadia;
pela qual eu só tenho idolatria
pois tem no sangue seiva santa e obscena.

Toma meu corpo, amor, e nessa ânsia
de encontrarmos o autêntico prazer
alimentado por nossa ganância

despeja sobre nós todo esse arder
que escorre da lascívia, da fragrância
que a carne devassada adora ter.


Renato Prata
Embarque em Stockwell Station


Não desistirei de ganhar o pão
E corro para o trabalho
Aqui desterrado não serei um cidadão do mundo
Talvez me ignorem
Talvez estranhem o meu tipo
Lá um dia saberão o que tiver de ser
Terá meu visto expirado?
Sei o agora
O trabalho é meu destino
Desço para o metrô
Eis que o vagão me espera
Sento em algum lugar
É quando o destino se antecipa
Sou alvejado no ombro
Sete balas me coroam.


Rita Santana
Dona Ester Ferreira

Havia fifós espalhados pelo corredor,
Caquinha doida com tarefas da lembrança,
Romana cega a fazer remendos em trastes de uso,
Janelas de quartos escuros,
Cheiro de cacau grudado nos tijolos,
E a minha bisavó indiferente aos meus olhos.
Sem saber que seria a personagem mais forte
Do meu imaginário.
Adultério no sangue das grandes mulheres da família,
Demência nas mulheres susceptíveis à dor,
Nos homens deformados, de galhos pobres.
Domina - senhora minha!
Dora Doralina, desde sempre em mim:
Compra fazendas estampadas para corpo alto,
Pega nas bingas dos netos abobalhados,
Sorri da desgraça dos que virão,
Adoece de imagens, adoece de muitas imagens,
Adoece da voz de Manuel Severino,
Amando, de machezas e ternuras,
Uma mulher sem domínios, sem selas,
De largura fidalga nas ancas.
Dada ao seu destino feito prenda de conquista de terras.
Ninguém viu Dona Ester
Tomando cachaça de rabo-de-galo
No bar de Júlio Caranha, marido de dona Jorgilina.
Este é o meu quintal,
Minha cancela aberta,
Árvore arraigada na minha história,
Com sementes que trago nas minhas mãos fechadas.


Silvério Duque
Balada para Adriana

a Alberto da Cunha Melo

Eu não busquei esta agonia,
este poema de distâncias
pelo silêncio inatingíveis,
esta ausência, esta inconstância…

Mas para cada sofrimento
há uma estrela no firmamento.

(Eu sei que atrás do teu olhar
havia um outro olhar perdido
em meio ao Céu e o teu lembrar… )

E era essa luz que tu seguias
o olhar do amor com que te via.


Wladimir Saldanha
Em memória

Lá ouvi uma elegia;
dou-a aqui tal qual ouvi-a
Bruno Tolentino

Foram uns goles de vinho,
e uma conversa de versos.
Hoje, somente, sozinho,
degustando o menos terso

dos vinhos, estas quadras alinho
assim, mais canhestro que destro.
Tu nem me disseste "eu definho"
naquela conversa de versos

regada a uns goles de vinho,
na qual te julgara perverso
demais, imenso mesquinho
e aquém dos meus sonhos dispersos.

Soubera ali, teu desalinho,
o quanto devia aos reversos,
melhor te julgara e "definho"
entendera do seu tergiverso!

Mas fora a conversa de versos
e apenas uns goles de vinho...
Tu nem me disseste o "definho"
De que muito tarde me apresto.

E agora, canalha, carinho
dedico ao mestre – sou lesto.
Para o mais terso dos vinhos
o mais amargo dos versos

enquanto relembro, sozinho,
e ergo de novo dos restos
o fim de tarde, os passarinhos
- aquela conversa de versos -

o fim de tarde e os começos
da noite - conversa de versos -,
quando voltavam pros ninhos
eles – os passarinhos,

e eu, que andava disperso,
voltava pra casa sem ter
sequer ouvido "eu definho"
e mal te julgando, e perverso.

Relembro, relembro imerso
em tua ausência e sozinho:
ouço de novo os molestos
passarinhos... E, carinho,

dedico ao mestre, canalha:
never more
- um nunca mais de gralha
deserdada , um requesto
de quem, só mais um tantinho,
e tão docemente transversos,

quisera saber teus espinhos,
como flores, mas pelo inverso:
teus sapos de ontem – sapinhos -
nos charcos de hoje - universo.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Mostra da poesia baiana nos últimos dez anos

Os poetas são os autênticos juízes dos poetas dentro do tempo
Shelley

Para mostrar ao senhor Marcos Lucchesi a qualidade da poesia baiana nos últimos dez anos, a qual acompanhei de perto, na capital e no interior, algumas vezes como editor, outras como promotor de saraus e participante de debates, mostras, bienais, o escambau, resolvi adotar critérios semelhantes aos dele, com uma diferença: conheço o terreno onde estou pisando. Entrou em nossa lista, apenas poetas aqui nascidos, publicados em livro ou publicações impressas apenas nesta última década. Deixei de fora Marcus Vinícius Rodrigues e Kátia Borges, belíssimos escritores, obviamente, por terem sido publicados no famigerado livro do Lucchesi.
Reitero que no meu modo de entender, um roteiro da poesia brasileira deveria contemplar poetas de todos (ou quase todos) os estados da nação, mas isso não basta. Seria necessário ao organizador ter os livros dos autores selecionáveis em mãos, para desse modo empreender a sua leitura de maneira imparcial e dar mais legitimidade à obra, não publicar em peso os seus conterrâneos, como se apenas no Rio de Janeiro ou São Paulo, berço da Editora Global, houvesse boa messe de poetas.
Apenas para responder a uma mensagem anônima (pra variar) que recebi neste blog, devo dizer que por não ser baiano ou amigo do organizador da obra em questão, eu jamais faria parte daquele florilégio, sobretudo por não ter publicado nada meu no período compreendido. Ou seja: minha poesia, em livro, ainda está inédita.

São dezoito poetas nesta minha seleção, poderiam ser trinta, facilmente. Os autores não são necessariamente jovens, mas todos publicaram pela primeira vez durante a última década. Como são muitos, farei a postagem em duas etapas, e em ordem alfabética.

Adriano Eysen
Soneto para ninar Joana

No feitiço da tua carne repousa a lua
e a noite vem habitar o silêncio da rua
por onde pasta uma réstia de saudade
que vem morrer em teus seios – porto de liberdade.

Tua pele rasura estas ávidas retinas
que tatuam neste dorso sonhos e rotinas
e tuas mãos rabiscam, quase selvagens,
no úmido peito – deuses – libertinagens.

No quarto, uma luz, e o vento valsa segredos
povoando cândida nudez e teu silêncio
que despertam em mim fios de medos.

Lá fora a cidade é um deserto
onde um cão e seu abandono trafegam
sob olhos de ressaca - vastos e incertos.


Bernardo Linhares
Carolina

São rosas na bruma
buquê de gaivotas
por cima das águas
bordadas de espumas.

Com linha da costa
de seda tão pura
costuro tua moda
na vela do barco.

Ternura mais funda
os fios da corrente
revelam teus laços...

Cortando o silêncio,
um amor imenso
navega no vento.


Carlos Machado
Entre ave e réptil

interessa-me
entre ave e réptil
a condição
ambígua

confesso meu
fascínio por
essa corda estendida
entre uma e outra
palavra
e sua falsa noção
de equilíbrio

trago na raiz
do gesto o alvoroço
do circo

nervo reteso
lanço-me no ar
risco a
superfície do inútil — e vôo!

por vezes
uma palavra mais ágil
me subtrai
do precipício

mas quase sempre
me esborracho
no chão
em meu vôo solo
sem tambor nem
auxílio

reconfirmado
sísifo
— amador de seu ofício —
alço-me outra vez
ao risco dos trapézios


Daniela Galdino
Inúmera

Eu tenho a síndrome de Tim Maia.
Eu tenho as varizes de Clara Nunes.
Eu tenho os vícios de Piaf.
Eu tenho a orelha de Van Gogh.
Eu tenho a perna que falta ao Saci.

Eu tenho o olfato de Freud.
Eu tenho o cansaço de Amélia.
Eu tenho o peso de Maria.
Eu tenho as dermatoses de Macabéa.
Eu tenho a cusparada de Sofará.

Eu sou a linha tênue que une os xifópagos.
Eu sou uma interrogação vagando com pressa.
Eu sou um insulto atirado à queima roupa.

Eu tenho atalhos ainda não percorridos.
Eu tenho palavras desgastadas e nulas.
Eu tenho uma voz penífera e cortante.

Eu confesso: sou inúmera, sou intrusa, sou inúbil.


Elói Martins
Soberba de Bazarov


"Meu pai organizou nossa fazenda
com alguma habilidade no cultivo.
Construiu o estábulo, preparou o pasto,
protegeu a cultura do pastar dos brutos,
domesticando, cercando como lhe era possível,
na proporção da pouca ciência do seu tempo.
Reconheço que aos poucos entregou os seus dias
numa luta contra pragas.
Filho único, herdei a fazenda,
predestinado agora a experimentar meu engenho:
deixei o pó ocupar os poros das folhas,
o esterco entupir as cocheiras,
o capim crescer ao léu rarefeito.
Esse ano semeei aos pássaros
sementes guardadas por meus ancestrais,
porque aprendi que a beleza pertence à desordem,
assim como o útil, as verdades abandonadas.
Educado pelos atuais doutos,
legarei um campo tomado de ervas daninhas."


Hélder Oliveira
O desgosto de Lúcifer

Ao íntimo céu precário
Conforme suas antenas

Não fora arrebatado
Como sendo apenas

Um coração fechado
Em sombras obscenas

Do límpido céu fluente
Conforme suas palavras

Não será correspondente
De nenhuma alma

E voltará ao ventre
Numa noite calma


Henrique Wagner
As horas do mundo

Deixo que o relógio insista.
O agora perdeu-se aqui.
Não esqueço minha memória.
Não insisto no meu fim.

Deixo que se vá agora
todo o tamanho do fim.
Horas sendo as mesmas horas,
e tudo indo sem mim.

Deixo que o relógio insista,
atrasado sempre, inútil,
marcando as horas do mundo.


Herculano Neto
Versos excluídos

tenho vocação para o abismo
para o abraço

tenho fixação por detalhes
por olhares
por silêncios

sou irremediavelmente insatisfeito
displicentemente franco
o melhor amigo dos meu amigos
o melhor amante das minhas tristezas

obsessivo

tenho vocação para infelizes


João de Moraes Filho
Portuário

Tudo faz do tempo criança,
sorrindo. Nada impera
ou recria por trás da janela.

Acreditar no tempo é colher jardins.

Tempo fechado nos olhos;
sobrevive ao fogo, corre
nos quintais e nada espera.

domingo, 1 de novembro de 2009

Uma prosa sobre critério

Recentemente, a Editora Global publicou a coleção “Roteiro da poesia brasileira”, reunida em 15 volumes, divididos em períodos. Após o modernista, os livros são apresentados por décadas. Os volumes são: Raízes - por Ivan Teixeira, Arcadismo - por Domício Proença Filho, Romantismo - por Antonio Carlos Secchin; Parnasianismo - por Sânzio de Azevedo; Simbolismo - por Lauro Junkes; Pré-modernismo - por Alexei Bueno; Modernismo - por Walnice Nogueira Galvão; Anos 30 - por Ivan Junqueira; Anos 40 - por Luciano Rosa; Anos 50 - por André Seffrin; Anos 60 - por Pedro Lyra; Anos 70 - por Affonso Henriques Neto; Anos 80 - por Ricardo Vieira Lima; Anos 90 - por Paulo Ferraz e Anos 2000 - por Marco Lucchesi.
Interessa-nos aqui, uma discussão sobre esta última, organizada por Marcos Lucchesi, que não nos parece retratar a realidade da poesia brasileira nesta última década, por uma série de aspectos. O primeiro deles, como sempre, é a falta total de diálogo com a produção fora do eixo Rio/São Paulo. Ora, são 46 poetas contemplados, 25 do eixão, mais que a metade. De Sergipe e Alagoas, o livro contempla apenas um autor, e estes residem e publicam seus livros há muito tempo na Bahia. Dos estados do Ceará, Piauí, Pará e de Brasília, também só comparecem um autor a esta antologia. Da Paraíba, onde encontramos belíssimos poetas como Linaldo Guedes, Astier Basílio e Antônio Mariano, nenhum poeta consta. Também não há ninguém dos outros estados do Amazonas, de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, do Tocantins, Maranhão, Santa Catarina ou do Espírito Santo, onde vive e publica o poeta Jorge Elias Neto. Como se não bastasse, de Pernambuco, estado que possui uma cena literária contemporânea maravilhosa, provavelmente mais fértil que a do Rio de Janeiro, apenas quatro autores comparecem ao livro; de Minas e do Paraná são três poetas apenas.
Assim pergunto: esse é um roteiro da poesia brasileira na última década?
Em que pese a boa reputação do organizador, parece-nos mesmo que ele abriu mão da pesquisa e se valeu de indicações para construir sua obra, procedimento que não nos parece o mais adequado em tal circunstância.
Aqui na Bahia, o livro causou um debate acalourado no blog de uma das nossas conceituadas observadoras literárias, a Gerana Damulakis (eis o link: http://leitoracritica.blogspot.com/2009/10/roteiro-da-poesia-brasileira-anos-2000.html), mas infelizmente, como de praxe, aqueles que defendem as igrejinhas, o compadrismo literário, não se manifestaram de modo elegante, tampouco assinaram suas missivas (preferiram pseudônimos), e se furtaram ao debate. A peleja ainda rendeu um texto do poeta Silvério Duque sobre o assunto (ver em: http://leitoracritica.blogspot.com/2009/10/espaco-critico.html).
É evidente que toda antologia retrata, de algum modo, as preferências do seu organizador, mas sem um árduo trabalho de pesquisa ela poderá revelar sua face anacrônica, tornando-se, desse modo, inválida.
Enfim, como está grafado no próprio site da Global Editora, entendemos que o “descentramento geográfico, que se constitui num grande desafio aos olhos da crítica e do público” não ocorreu na obra aqui abordada.

Na próxima postagem ofereceremos ao leitor aquilo que entendemos ser um bom panorama da poesia feita na Bahia nos últimos dez anos.