quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

01 de janeiro de 2008

Jorge Elias Neto


Após o pão e circo,
sigo em busca da ciência de desinventar.

No vazio do salão amanhecido
ainda ressoam os ecos dos champanhes,
os alaridos esperançosos,
os sussurros de cumplicidade.

De sólido,
ficaram os confetes e serpentinas,
que nada entendem da solidão.

do inédito "Rascunhos do Absurdo"
blog do Jorge:
http://www.jeliasneto.blogspot.com/

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

O POETA FLORISVALDO MATTOS

O poeta baiano Florisvaldo Mattos (1932), Grapiúna natural de Água Preta do Mocambo, hoje Uruçuca, integrou juntamente com outros jovens e talentosos escritores a conhecida “Geração Mapa”, cujo nome tem origem em um ontológico poema de Murilo Mendes. Liderados por Glauber Rocha, tal grupo ficou assim conhecido por publicarem entre 1957 e 1959, três números de uma revista (MAPA) que permanece até hoje como referência para a historiografia da literatura baiana. Toda a sua poesia possui coloração universal, onde estão inseridos grandes temas da poesia em todos os tempos, entretanto, Florisvaldo pinta de maneira incomparável a aldeia grapiúna, com grande sentimento de mundo, onde as questões sociais adquirem relevo e tonicidade, quer cantando a saga do cacau, sua natureza, costumes ou personagens, e até mesmo seus poetas, como é o caso de “A Hora da Rua”, um poema todo em redondilha maior, dedicado ao inesquecível Firmino Rocha, poeta com quem teve contato durante os anos 1950, onde observamos uma refinada intertextualidade com o célebre poema “Deram um Fuzil ao Menino”. Conheçam os poemas.

A Hora da Rua
Florisvaldo Mattos

Com seus cavalos de lata
a aurora cresce na rua.
- Que é do canto esperado?
- Que é da rosa da rua?

A aurora cresce no mar
nascem mil lírios na rua.

Faz-se um menino soldado
para levar a bandeira
ao campo de rosas negras.
Ergo o olhar: vejo um fuzil.
Um menino fez-se soldado
para salvar a esperança
no mar no campo na rua.

Vai chegando o branco barco.
Abaixo as rosas de lava!

Venham ver a cor dos lírios.
Os pássaros virão à festa.
Eu ouço o canto esperado.


Deram um Fuzil ao Menino
Firmino Rocha

Adeus luares de Maio.
Adeus tranças de Maria.
Nunca mais a inocência,
nunca mais a alegria,
nunca mais a grande música
no coração do menino.
Agora é o tambor da morte rufando
nos campos negros.
Agora são os pés violentos ferindo
a terra bendita.
A cantiga, onde ficou a cantiga?
No caderno de números o verso
ficou sozinho.
Adeus ribeirinhos dourados.
Adeus estrelas tangíveis.
Adeus tudo que é de Deus.
Deram um fuzil ao menino.

Mais em: www.jornaldepoesia.jor.br/floris.html

domingo, 28 de dezembro de 2008

Hodierno


Aqui, onde bárbaros viram heróis,
onde por vergonha ou medo
todas as vozes se calam
num delito coletivo e contraditório,
todas as solidões se proliferam
e os remorsos frutificam
silêncios cada vez mais vastos.
Os sons do vazio se expandem,
mordaças são distribuídas gratuitamente
e na mente do incauto
a aparente sensação de felicidade
enquanto o amanhã, por mais remoto que pareça,
ri da hipocrisia reinante
e abrolha nos comerciais de televisão.
Ah, já não faço mais planos,
meu futuro é o tempo presente
gasto com tudo o que não possui serventia,
sou guardião do pretérito,
o anfitrião das coisas vãs
e vivo porque em viver não há mistério,
apenas uma perene solidão e seu perfume.
Existo pela palavra, resisto pela fé,
ouço a voz de Deus a me abraçar
como se abraça uma criança;
deixei minha sombra na primeira esquina
e me demiti desse tempo baço:
aprendi a cantar a desimportância das horas
e a viver eternamente feito um infante.


26.12.2008

sábado, 27 de dezembro de 2008

ESPANTALHO


Um pássaro pousado em minha tromba
fez seu pequeno ninho onde queria,
estendeu suas garras pelas vias
onde navios passavam feito pombas.

Acordei com arrulhos de rolinhas
namorando nas minhas dobradiças,
ensujeirando as belas historinhas
de mágicos, palhaços e preguiças.

Olhei-me pelos olhos das estrelas
que despontavam nuas pelas ruas,
mas não reconheci-me, pois as suas
garatujas estavam bem magrelas.

Toquei-me e percebi algo bem falho:
eu tinha me tornado um espantalho.

Drummond, novamente

Receita de ano novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Um poema de Mário Quintana

LEMBRETE
A vida são deveres que nós trouxemos para fazer em casa


Quando se vê, já são seis horas...
Quando se vê, já é sexta-feira...
Quando se vê, já é Natal...
Quando se vê, já terminou o ano...

Quando se vê, passaram-se 50 anos
Quando se vê, não sabemos mais
por onde andam nossos amigos.
Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida.

Agora, é tarde demais para ser reprovado.
Se me fosse dado, um dia,
uma oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando,
pelo caminho, a casca dourada e inútil das horas.

Seguraria todos os meus amigos,
que já não sei onde e como estão, e diria:
Vocês são extremamente importantes para mim.

Seguraria o meu amor, que está, há muito,
à minha frente, e diria:
Eu te amo.
Dessa forma, eu digo: não deixe de fazer algo
que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter alguém ao seu lado,
ou de fazer algo, por puro medo de ser feliz.

A única falta que terá, será desse tempo
que infelizmente...não voltará mais.
You Tube:

AMORAS


Fiz uns arranjos nas palavras,
elas ficaram meio tortas,
meio tontas de tanto gozo,
mais elegantes, menos portas,

contrárias às estultices
dos gentis que se acham artífices,

argutos e outras coisas mais;
na verdade eu pintei de amoras
algumas palavras normais,

dei-lhes uma porção da arte
de Wolfgang Amadeus Mozart.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Disse tudo: Como negar essa afirmação de Affonso Romano de Sant'anna?

Existe realmente uma tendência na atualidade para a superficialidade, a fragmentação, a aparência, a pressa, a negação dos valores. Isso tudo são características da pós-modernidade. Tem muita gente que endossa e gosta disso. Eu não, pois tenho uma posição crítica em relação a isso. Acho que o intelectual, o ficcionista, o teórico que endossa as coisas da pós-modernidade é um desastre. Ele está assumindo uma ideologia, enquanto que a função do intelectual é justamente contestar as ideologias porque atrás delas existe uma coisa mais visceral e mais autêntica.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Aqui morava um rei

Ariano Suassuna

Suassuna retratado por W. J. Solha

"Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensangüentado."

POEMA DE NATAL

Dezembro é o cruel mês do natal,
hoje é sua véspera
e, além disso, faz um calor insuportável.
Há grande descontentamento no país,
enormes congestionamentos nas cidades
e as pessoas parecem felizes.
A miséria continua no seu galope
e as pessoas parecem felizes,
inclusive os miseráveis.
Esses se abundam nas calçadas
e mendigam com seus filhos
e com os filhos de outros desgraçados.

Negócio promissor é esse...
Vou sair pra ver o mar!


24.12.2007

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

TEMPO. . .

Carlos Drummond de Andrade

Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano
se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez
com outro número e outra vontade de acreditar
que daqui para adiante vai ser diferente...
...Para você,
Desejo o sonho realizado.
O amor esperado.
A esperança renovada.
Para você,
Desejo todas as cores desta vida.
Todas as alegrias que puder sorrir.
Todas as músicas que puder emocionar.
Para você neste novo ano,
Desejo que os amigos sejam mais cúmplices,
Que sua família esteja mais unida,
Que sua vida seja mais bem vivida.
Gostaria de lhe desejar tantas coisas.
Mas nada seria suficiente...
Então, desejo apenas que você tenha muitos desejos.
Desejos grandes e que eles possam te mover a cada minuto,
ao rumo da sua FELICIDADE!!!

Mais de Drummond em:
http://www.algumapoesia.com.br/drummond.htm

domingo, 21 de dezembro de 2008

Confiram a breve entrevista que concedi ao Jorge Augusto, jovem poeta e estudante de Letras.

Jorge Augusto - Você foi editor do tablóide literário SOPA e lançou faz pouco tempo a revista Poesia & Afins, como foi a recepção dessa revista, qual a sua intenção e como você vê o mercado editorial baiano?
Gustavo Felicíssimo
– Não há mercado editorial baiano, isso não existe por aqui, pois não temos uma indústria editorial forte, que apóie o escritor local, que distribua sua obra, como acontece no Rio Grande do Sul, por exemplo. Fora as editoras gaúchas, no Brasil, apenas Rio e São Paulo possuem esse mercado. Quanto à revista, o que posso dizer é que os escritores a receberam muito bem, mas o que fica cada dia mais claro é que não há público leitor de poesia fora desse meio. Da quantidade vendida, menos de 10% do total foi adquirida pelo não escritor. Dificilmente repetirei um trabalho como esse.

JA - No número um da revista Poesia & Afins, você dedica um grande espaço ao Bruno Tolentino e o classifica como um dos maiores poetas lusófonos. O que para você faz desse poeta um destaque na poesia nacional?
GF
– Nosso objetivo era editar números temáticos, nosso próximo poeta seria o Alberto da Cunha Melo. Bruno foi um autor formidável, refinado e diferenciado, tanto que foi o único a vencer três vezes o Jabuti. Sua poesia exige alguma leitura prévia, mas é prazerosa. Ele dialoga com as tradições e com a modernidade, é inventivo e irônico. Qualquer escritor que tenha essas qualidades poderá por certo ser considerado um grande escritor.

JA - Como você vê o panorama atual da poesia feita na Bahia e no Brasil, se possível?
GF
– Essa é uma opinião muito pessoal e que trata de algumas questões subjetivas. O que vejo é que existem inúmeros poetas realmente talentosos, no entanto, muitos deles, a grande maioria, não possuem o que chamo de “consciência literária”. Por vezes esses autores se mostram tão inventivos que se esquecem de dar um sentido lógico à sua obra. Creio que essa é uma herança negativa (apesar das inúmeras contribuições) que herdamos dos modernistas. Isso acontece porque o chamado “verso livre” também se ritualizou e trouxe consigo inúmeros poetas cujo pressuposto é o desconhecimento das tradições.
Mas como a literatura vive de ciclos, a esperança se renova sempre que identificamos um poeta, ou um grupo diferenciado deles. Eu e parte da minha “turma”, estudamos versificação e criação literária com a mestra Maria da Conceição Paranhos, outros com o Ildásio Tavares, alguns de maneira autônoma. Mas isso não significa que defendo que todo mundo precise escrever e publicar sonetos ou redondilhas, e sim que é inegável o crescimento que tal estudo proporciona, inclusive no verso livre que, acredite, de livre não tem coisa alguma. Nossa poesia, retratada na poesia daqueles que valorizam o verso, é muito boa!

JA - Como você percebe essa relação internet x mídia impressa no escoamento e na construção da literatura nacional contemporânea?
GF
- A mídia impressa ligada à literatura no Brasil é muito incipiente e seu conteúdo está voltado para os vestibulares, por isso é superficial. Já os cadernos literários dos jornais que ainda sustentam esse tipo de publicação, cada vez mais são lidos apenas por escritores e alguns apaixonados. Como diz Alberto da Cunha Melo no poema CASA VAZIA, escrevemos para esse público dos ermos/ composto apenas de nós mesmos. Por outro lado, a facilidade de se publicar via internet esconde um sem fim de coisas que sequer merecem serem lidas.

JA - Quem você destaca como figura importante nos últimos anos para a poesia brasileira?
GF
– Tenho lido alguns poetas formidáveis que são desconhecidos do grande público. A obra do Alberto da Cunha Melo, por exemplo, tornou-se referência para mim. O Bruno Tolentino em um ensaio diz o seguinte: se ele escrevesse naquela meia dúzia de idiomas com que por décadas convivi, digamos, mais intimamente; se escrevesse em qualquer delas, este autor já estaria em todas as bocas a caminho de Estocolmo...

JA – Por que você ainda não se deixou publicar em livro?
GF
– Oportunidades não faltaram, mas o fato de ter sido editor do SOPA e da POESIA & AFINS me ajudou a conter o impulso de publicar antes do tempo, o que não acontece com a maioria dos escritores. Mesmo assim, como tal conceito é muito subjetivo, corro ainda o risco de me arrepender, só que hoje, menos que ontem.

JA – Mas você já deve estar se preparando...
GF
- Sim, só que um livro de poesia precisa de unidade, de um fio condutor que perpasse o conjunto de poemas ali inseridos, e isso não se faz da noite para o dia. Não se trata de reunir uma porção aleatória de poemas e publicá-los.
Tenho um livro ao qual me dedico há sete anos e que agora o considero pronto. Pretendo lançá-lo ainda neste ano de 2009, chama-se PROCURA, ele deverá sair acompanhado de um cd. Outros livros, um contendo ensaios sobre os poetas da região cacaueira da Bahia, outro, uma nova antologia de poetas grapiúnas, também estão previstos para saírem 2009.

JA – O que tem sido motivo de alegria para o poeta?
GF
– Viver entre Itabuna e Ilhéus está me fazendo muito bem, aqui sou mais feliz e, conseqüentemente, escrevo mais solto, melhor, talvez.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

MARIA DE JESUS

Maria da Conceição Paranhos


Maria mar,
Maria terra,
Maria céu,
Maria bela.

Em criancinha
tão moreninha!
Maria simples,
de São José.

Tão amiguinha
de Izabel,
de Zacarias,
mãezinha terna

de João menino,
o antecessor,
nosso profeta,
de tempos agros.

Penso nas felpas
dos móveis toscos
que aparavas
com teu filhinho,

o Jesuzinho.
José passava
a plaina afiada,
e tu moldavas

o teu menino.
Maria rosa,
Maria branca,
Maria negra,

Maria todas,
amo você,
da Conceição,
minha Maria,

da Assunção,
minha menina.
Maria Myriam,
Maria virgem,

eu te proclamo,
tu me confirmas,
Maria minha,
de meus temores.

Dou-te minhas dores,
dou-te meus lábios,
Maria mãe,
Consoladora

de nós, aflitos.
Salve Rainha,
ventre de luz,
Ave, Maria,

Mãe de Jesus.


veja também:

domingo, 14 de dezembro de 2008

O CREDO DE DON JUAN

Creio num Deus vil e atormentado
como o mar quando a lua surge esquiva,
como um canto afastado, porém audaz,
arrogante em meio às visões de bem e mal,
cego ante a face exaurida do amor,
a febre ideal que me consome.
Creio nesse Deus, cujo reino não tem fim,
e ao mundo lanço o meu laço sabendo que após o gozo
viverei contraditória agonia.
Assim, como um ciclo que nunca se cumpre,
volto aos braços da sedução,
náufrago e só, na cidade ou na aldeia,
denso, tecendo a minha teia.
O fogo aquece meu corpo e não arrefece,
mas a alma, gélida e louca,
dos seus tormentos não se esquece,
escarnece o céu não por prazer, mas por convicção.
Ah! Ser como o Guerra Junqueiro
é não ser mesmo nada,
por isso venham, meninas, venham viver,
que a todas darei o meu falo.
Venham, meninas, venham viver,
que a todas darei minha vida,
a todas serei sempre fiel.

sábado, 13 de dezembro de 2008



Fizemos a preparação dos textos do livro de Firmino Rocha, importante poeta da região cacaueira da Bahia. Abaixo, o prefácio que escrevemos para a obra.

FIRMINO ROCHA: O POETA DO POVO

Uma pesada nuvem negra, daquelas que anunciam grande tempestade, apavora o mundo. Sua face mais aterradora é exibida na TV e nos jornais, são crianças de armas na mão, é a guerra do Vietnã. No outro lado do planeta, um poeta vê tais imagens e, tomado por uma força brutal, retira sua caneta do bolso, um pedaço de papel amassado, sujo, e põe-se a escrever aquela que seria uma belíssima obra de arte, um poema irretocável, digno dos maiores poetas. Estamos falando do poema “Deram um Fuzil ao Menino”, do poeta itabunense Firmino Rocha. Tal poema, segundo consta, teria atravessado mares e céus, tendo sido publicado pela ONU (Organização das Nações Unidas) em uma antologia sobre a paz que reuniu obras de poetas do mundo inteiro. Também foi publicado em diversas antologias da poesia baiana e de autores grapiúnas.
Como em poesia não há lugar para acidentes ou casualidades, o turbilhão de significados em que se transformou tal poema é resultado da lucidez literária do autor e de alta dose de lirismo, pois incorpora aos seus mecanismos todos os elementos de uma boa poética (musicalidade, originalidade, sentido lógico, síntese e metáforas), mesmo aqueles que aparentemente nada significam. Vejamos o poema:

Adeus luares de Maio.
Adeus tranças de Maria.
Nunca mais a inocência,
nunca mais a alegria,
nunca mais a grande música
no coração do menino.
Agora é o tambor da morte rufando
nos campos negros.
Agora são os pés violentos ferindo
a terra bendita.
A cantiga, onde ficou a cantiga?
No caderno de números o verso
ficou sozinho.
Adeus ribeirinhos dourados.
Adeus estrelas tangíveis.
Adeus tudo que é de Deus.
Deram um fuzil ao menino.

Tudo isso sem desprezar uma intuição maravilhosa que orientou o poeta na criação deste poema, essa mesma intuição fez seu povo consagrá-lo como o seu poeta antes mesmo que qualquer autoridade crítica o dissesse.
A poesia de Firmino Rocha não se limita apenas a esse belíssimo poema, e, à primeira vista, o autor pode nos parecer uma espécie de poeta em desordem, entretanto um rápido correr de vistas por sua obra denuncia um vate de forte tendência metafísica, de onde emergem aforismos como Homem, quanto mais doer/ a sua alma aflita/ provando a evidência/ deste mundo turvo,/ mais certeza tenha/ de não ser isso a vida. Também um sentido universal de fraternidade permeia sua obra: E abriremos os olhos com o sol derramando ouro/ sobre nossos corpos/ e levantaremos os braços em sua direção/ e chamaremos os irmãos para a semeadura,/ para os cuidados com as plantas já nascidas/ e para as alegrias das esperas. E como aqueles que desvendam na essência do ser as transcendentes aspirações incondicionais, o poeta acolhe em sua alma sofrida esse desejo de Deus: Ouvir o canto da madrugada./ O canto suavíssimo do caricioso silêncio/ e das mensagens do sono das coisas escondidas./ O canto prenhe de pureza/ das águas encobertas/ e das emudecidas ramagens./ O canto de Deus.
É um artista musical, de sonoridade entranhável, de modo que escutamos a ele próprio, quando em voz alta entregamos ao vento os seus versos que se espalham contentes pelas águas do Cachoeira, amado rio do poeta.
A postura anti-racionalista de Firmino Rocha o leva a investigações de fenômenos que as leis naturais parecem não serem capazes de explicar, apenas passíveis de compreensão mediante a iniciação em ordens herméticas, aliando-o, no plano sensorial ao poeta irlandês W. B. Yets, para quem a procura pelo transcendente através da linguagem nos faz evocar realidades espirituais mais elevadas, como se a poesia fosse fundada na vida para além deste mundo. O caminho está limpo e vestido de orvalho./ Os espinhos viraram lírios./ As pedras viraram fontes./ A terra está novamente concebendo/ as árvores de Deus/ e canta maravilhosamente na quietude/ do grande início.
Entendemos a postura do poeta como uma espécie de escapismo, por se tratar de universos apenas almejados, conforme vemos no poema “Abrirei os Olhos para um Mundo Novo”. O poema expõe o anseio de Firmino por alcançar o que poderia ser uma vida natural e restauradora, pois Então velejarei os mares pressentidos/ nas manhãs dos dias que ficaram longe,/ nas manhãs dos dias que deixei chorando,/ nas manhãs dos dias que guardei no sonho. O lugar é retratado como um ambiente mágico.
Na trilha da sinceridade e da simplicidade, sua poesia reflete certo ar de ingenuidade que modela a realidade desejada, acentuando os conflitos entre a vida real e o sonho, gerando angústia e insatisfação que ficam veladas, à margem das linhas mestras da sua construção, aproximando-o, ao mesmo tempo, do modernismo e do simbolismo brasileiros.
Entretanto, no campo religioso, no que perpassa sua obra, é plausível falar de evocações e símbolos marcadamente cristãos, através da própria evocação da figura do Filho de Deus e sua mãe bíblica, Maria, enquanto o estilo do escritor se coliga à maneira afetiva entalhada nos seus versos. Senhora da Conceição,/ Virgem Mãe de Jesus,/ quero agora uma canção,/ um raio de sua Luz. Tais elementos comparecem aliados a emoções e sutilezas que nos escapam à análise, podendo receber novos significados a cada leitura.
Em vida Firmino Rocha publicou os livros O Canto do Dia Novo, 1968 e Momentos, sem data de publicação, ambos pela Editora Mensageiros da Fé, além de diversos livretos dispersos como Pabra, Serenina, Olorene e Poesia com Amor. Exerceu grande influência em muitos poetas de gerações posteriores à sua. Também publicou poemas com freqüência regular na Imprensa local. Nasceu em Itabuna, em 07 de junho de 1910, faleceu em Ilhéus em 1 de julho de 1971.
HOJE, 72 ANOS DE
ADÉLIA PRADO

Deus é uma unidade. Poesia, cotidiano, sexualidade e fé, como tudo que existe, procedem dEle e só por isso estão e estamos na unidade. Seria impossível a criação de qualquer obra fora desta unidade radical. Uma sexualidade separada da fé, uma fé fora do cotidiano e tudo fora da poesia não dá pra agüentar. A poesia é a face de Deus contemplada na brutalidade das coisas. Me perdoe, é uma auto-citação, mas não vejo maneira melhor de responder. Adélia Prado.

Além de mineira, percebemos que sua poesia possui a influência marcante de Drummond, um dos primeiros poetas a incentivar e tornar conhecida sua pessoalíssima poesia, sugerindo ao editor, Pedro Paulo de Sena Madureira a publicação de sua obra, hoje traduzida e difundida em várias línguas.

O primeiro poema do seu primeiro livro, “Bagagem”

COM LICENÇA POÉTICA

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Links interessantes:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/ad.html
http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=3710

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Nesta sexta (12) e sábado (13), a partir das 16 horas, estarei na Uesc (Universidade Estadual Santa Cruz), participando do XII EBEL (Encontro Baiano dos Estudantes de Letras), no Pavilão Adonias Filho, sala Multimeios, dando uma oficina cujo tema é “A POESIA GRAPIÚNA: DA SUA FUNDAÇÃO AOS DIAS DE HOJE.”
Apresentaremos a bela e surpreendente produção poética de nossa terra, desde os primeiros, Fernando Joaquim Pereira Caldas e José Bastos, passando por Gil Nunesmaia e Abel Pereira, dois dos precursores do Haicai no Brasil, também pelo valioso e raro Sosígenes Costa, pelos reconhecidos Firmino Rocha, Florisvaldo Matos, Jorge de Souza Araújo, Cyro de Mattos, Valdelice Pinheiro, Telmo Padilha, Adelmo Oliveira e Ildásio Tavares.
Ainda a produção poética de autores menos conhecidos na região, mas nem por isso de menor importância como Geraldo Maia, Renato Prata, Aleilton Fonseca e Plínio de Almeida, para virmos desaguar nos mais contemporâneos como é o caso de Heitor Brasileiro Filho, Rita Santana, Lourival Pereira Júnior (Piligra), Edson Cruz, Daniela Galdino, Fabrício Brandão e Geraldo Lavigne.
Esse trabalho é fruto das leituras que fiz da obra de aproximadamente 80 poetas da região cacaueira da Bahia. O resultado dessa pesquisa será a publicação do livro FRUTO DE OURO, a ser editado em breve, contendo ensaios críticos sobre a obra de 25 poetas, também uma antologia de novos.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

LAMENTÁVEL: CENTENÁRIO DE ABEL PEREIRA PASSA EM BRANCAS NUVENS

Abel Pereira, poeta e jornalista, nasceu na cidade de Ilhéus, em 10 de Dezembro de 1908, portanto, hoje é o dia do seu centenário, data que deveria ser entusiasticamente celebrada pela Academia de Letras de Ilhéus, entidade da qual foi seu fundador e primeiro presidente. No entanto, apesar dos esforços que empreendemos nesse sentido, parece-nos que tal data passará em brancas nuvens. Abel ainda foi membro de várias instituições como o Instituto Histórico, Associação Brasileira de Imprensa, União Brasileira dos Escritores, entre outras. Colaborou com diversos periódicos como o Diário da Tarde, de Ilhéus, O Intransigente, de Itabuna, A Voz de Itabuna, A Tarde, de Salvador e com a revista Leitura, do Rio de Janeiro. Deixou quatro livros publicados: Colheita (1957), Poesia até Ontem (1977), Mármore Partido (1989) e Haikais Vagaluminosos (1989), todos de Haicai.
Antes de Abel Pereira, apenas três outros poetas haviam publicado livros exclusivamente de Haicais no Brasil, não dois, como afirma Olga Savary no posfácio de Mármore Partido. Waldomiro Siqueira Jr. foi o primeiro, em 1933 publicou o livro “Hai Kais”; Oldegar Vieira, o segundo com Folhas de Chá (livro que urge ser reeditado), em 1940; seguem-se Osório Dutra, com Emoção, em 1945 e Abel Pereira, com Colheita, em 1957.
Sobre “Colheita”, manifestou-se o poeta de Passárgada, Manoel Bandeira, dizendo: “Abel Pereira é um craque do haicai. Desde o primeiro, são cento e noventa e três estremecimentos, murmúrios ou rastros de perfume.”

Alguns Haicais de Abel Pareira:

Passa a mocidade...
e incerto, à frente, o deserto
cheio de saudade...

***

Coisa delicada
e fina. Estrofe menina.
Síntese. Um nada.

***

De origem divina,
as luzes dos vaga-lumes
são luzes de Vida.
SALVADOR DALÍ
Colaboração de Bernardo Linhares

Escrito e publicado em 1956, na França, “Libelo contra a arte moderna”, L&PM Editores, é uma leitura atual e provocativa, saída daquele que personificou o movimento surrealista. Abaixo um pequeno trecho.

A introdução da feiúra na arte moderna começou com a adolescente ingenuidade romântica de Arthur Rimbaud, quando disse: A beleza sentou-se em meus joelhos e estou fatigado dela. Foi por essas palavras cifradas que os críticos ditirâmbicos – exageradamente negativistas, e odiando o classicismo como todo rato de esgoto que se respeita – descobriram as agitações biológicas da feiúra e seus inconfessáveis atrativos. Começaram por se maravilhar com uma nova beleza, que diziam “não-convencional”, e ao lado da qual a beleza clássica tornava-se de repente sinônimo de frivolidade.
Todos os equívocos eram possíveis, inclusive o dos objetos selvagens, feios como os pecados mortais (que eles são, em realidade). Para ficarem em uníssono com os críticos ditirâmbicos, os pintores passaram a fazer o feio. Quando mais o faziam, mais eram modernos. Picasso, por ter medo de tudo, fabricava o feio por medo do Bouguereau.
Mas ele, diferentemente dos outros, fabricava o feio de propósito, corneando assim os críticos ditirâmbicos que pretendiam reencontrar a verdadeira beleza. Como Picasso é um anarquista, ele haveria de dar a puntilla depois de ter apunhalado Bougereau pela metade, e de um golpe acabar com a arte moderna, fazendo só ele, num dia, mais feiúra que todos os outros reunidos em vários anos.
Pois o grande Pablo, juntamente com o angélico Rafael, o divino marquês de Sade e eu – o rinocerantesco Salvador Dali-, tem a mesma idéia do que pode representar um ser arcangelicamente belo. Aliás, essa idéia em nada difere da que possui por instinto qualquer multidão de rua – herdeira da civilização Greco-romana – quando se volta, petrificada de admiração, à passagem de um corpo – chamemos a coisa por seu nome-, de um corpo pitagórico.
No momento álgido de seu maior frenesi de feiúra, enviei a Picasso, de Nova York, o seguinte telegrama: Pablo, obrigado! Tuas últimas pinturas ignominiosas mataram a arte moderna. Sem ti, com o gosto e a medida que são as virtudes mesma da prudência francesa, teríamos tido uma pintura cada vez mais feia, durante pelo menos cem anos, até chegar a teus sublimes adefesios esperpentos*. Tu, com toda a violência do teu anarquismo ibérico, em poucas semanas atingiste os limites e as últimas conseqüências do abominável. E isto, como Nietzsche desejava, marcando tudo com o seu próprio sangue. Agora não nos resta senão voltar novamente os olhos para Rafael. Que Deus te guarde!

* A expressão é do próprio Picasso. Literalmente, significa: “Personagens feios e ridículos como espantalhos”.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Não é que eu seja contra a música internacional, contra a arte que é feita em outros países, acho que a arte tem um caráter universal e não se pode fechar os olhos e ignorar ou negar - o que não pode é fazer com que a influência externa mate, cale a voz das coisas que nascem aqui, da criatividade autônoma, porque quanto mais autonomia tem os artistas dos diferentes países, mais rica será a cultura e a arte do mundo inteiro. Se existe uma arte argentina própria da Argentina, uma arte brasileira própria do Brasil, não é que seja nacionalista, mas que nasça até com hostilidade com a contemporaneidade, mas que tenha raízes aqui, que não seja apenas imitação de uma coisa que venha de fora, e isso realmente estava acontecendo. Mas a razão principal é essa arte negativa, “niilista”, para destruir a própria arte, como a Bienal que está sendo aberta, que chegou sem obra. É uma Bienal sem obra e isso já mostra tudo. Ontem eu assistia a uma entrevista do curador da Bienal, onde ele falou: "Pois é, antigamente as paredes estavam cheias de obras, hoje a gente pergunta o que é melhor: ter obras ou não ter obras". Eu nunca vi isso. Se você vai fazer uma exposição de arte e coloca-se uma questão se deve ter obra de arte, eu não entendo. Então não é mais arte, no fundo o que ele está dizendo é que isso que eles expõem não é mais arte, não interessa ele expor, é isso que ele está dizendo. Essa Bienal tem os dias contados, isso é uma coisa velha, ultrapassada, não tem mais sentido, é a falsa vanguarda, a própria Bienal é uma instituição de vanguarda, tanto que ela não pode negar, registrar nada, quanto mais louca for a proposta que o artista faça para ela, não pode rejeitar porque ela tem medo de ficar na retaguarda. Por isso aceita tudo, porque ela é de vanguarda, também a instituição é de vanguarda, ela nasceu para ser de vanguarda, são as coisas mais absurdas. Agora nessa Bienal um cara fez um tobogã, ele vai até o último andar do prédio e desce de tobogã, é a obra dele. Quer dizer, tobogã no parque de diversão é “tobogã”, mas lá na Bienal é “arte”. É a instituição que faz um tobogã virar uma obra de arte, isso é uma palhaçada. Então era isso que eu combatia. Alguns aspectos ortodoxos da visão marxista que estão presentes no livro, também estão equivocadas, eu acho que não é isso, eu ainda não tinha uma visão crítica de determinados problemas que depois pude observá-los. Hoje eu olho criticamente as coisas que escrevi anteriormente.

Ferreira Gullar em entrevista concedida ao pesquisador, jornalista e professor Gilfrancisco Santos.


Publicado em:
http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=3678

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Algo sobre o poeta Bruno Tolentino
Gustavo Felicíssimo

Acredito podermos dizer que, de algum modo começamos a morrer quando nascemos, e do ponto de vista espiritualista, que nascemos para a verdadeira vida quando morre este corpo que habitamos. Assim, morte e vida se completam em uma dialética ainda não muito bem absorvida por nós, seres humanos. No entanto a morte não é capaz de “matar” o grande escritor, este atravessa o tempo imune ao próprio tempo, vivo em sua obra, principalmente quando se tem o espírito elevado e nobre em um tempo repleto de indivíduos pobres de reais valores. Um desses fenômenos foi o poeta Bruno Tolentino, "sua obra poética atravessará o tempo, pois é o exemplo vivo da soberania do espírito", diz o filósofo Olavo de Carvalho no editorial do Jornal Diário do Comércio, de 04 de julho de 2007. Para o crítico e colunista da Folha, Manuel da Costa Pinto, "Bruno Tolentino conjugava em sua poesia elementos modernos e antimodernos. Era antimoderno em relação ao modernismo brasileiro, pois recusava suas soluções formais de coloquialidade e concisão. Por outro lado, o poeta se aproximava de certo modernismo europeu, inglês, que associava formas clássicas à voz das ruas".
Polemista, em 1996, depois de morar 30 anos fora do Brasil, manifestou em entrevista à revista "Veja" sua preocupação por ver o filho mais novo estudando em escolas que ensinavam as obras de letristas da MPB - como Caetano Veloso - ao lado de Machado de Assis, Camões e Fernando Pessoa. Com muita precisão e coragem ele afirmou: "É preciso botar os pingos nos is. Cada macaco no seu galho, e o galho de Caetano é o showbiz. Por mais poético que seja, é entretenimento. E entretenimento não é cultura". Ele também disparou contra Chico Buarque e os irmãos concretistas Haroldo de Campos e Augusto de Campos. Teve também desavenças com críticos literários e professores de filosofia da Universidade de São Paulo.Bruno saiu do Brasil em 1964, mudando-se para a Europa, onde viveu por mais de 30 anos, tendo trabalhado com o poeta inglês W. H. Auden, e convivido com os escritores Giuseppe Ungaretti, Elizabeth Bishop e Samuel Beckett. Foi professor nas universidades de Oxford, Essex e Bristol, publicando obras em Paris e Oxford durante a década de 1970. Em 1987, é condenado à prisão de 11 anos, sob a acusação de tráfico de drogas. Cumpriu 22 meses da pena em Dartmoor.
Tolentino retornou ao Brasil em 1993, publicando, em 1994, o livro "As Horas de Katarina", pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura. Bruno também recebeu o prêmio em 2003, com o livro "O Mundo como Idéia", e em 2007 com “A Imitação do Amanhecer”, tornando-se o primeiro (e único até agora) escritor a vencer por três vezes o prêmio literário mais importante do Brasil.

Doença e morte
Tolentino, que tinha Aids e já havia superado um câncer, esteve internado durante um mês na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, onde veio a falecer, aos 66 anos de idade, vitimado por uma falência múltipla de órgãos, em 27 de junho de 2007.

Bruno Tolentino é daqueles que fazem muita falta pela ousadia e pela qualidade que resume em si como escritor. Em suas obras o poeta passeava do erudito ao popular, indo sempre no indizível, mas sabendo o que dizer. Sem nunca perder o andamento do poema, primava pela melodia, como pode-se constatar nos poemas abaixo. Entendia que a poesia não é apenas um fenômeno de linguagem, mas também de idéias. Deixou tantos seguidores quanto admiradores e até desafetos, mas nunca ninguém poderá lhe negar um lugar de destaque no panteão da poesia lusófona.

Livros publicados por Bruno Tolentino:

Anulação e Outros Reparos (São Paulo: Massao Ohno, 1963)
Le Vrai le Vain (Paris: Actuels, 1971)
About the Hunt (Oxford: OPN, 1979)
As Horas de Katharina (São Paulo: Companhia das Letras, 1994)
Os Deuses de Hoje (Rio de Janeiro: Record, 1995)
Os Sapos de Ontem (Rio de Janeiro: Diadorim, 1995)
A Balada do Cárcere (Rio de Janeiro: Topbooks, 1996)
O Mundo como Idéia (São Paulo: Globo, 2002)
A Imitação do Amanhecer (São Paulo: Globo, 2006)

DOIS POEMAS DE BRUNO TOLENTINO

Nihil Obstat

É preciso que a música aparente
no vaso harmonizado pelo oleiro
seja perfeitamente consistente
com o gesto interior, seu companheiro
e fazedor. O vaso encerra o cheiro
e os ritmos da terra e da semente
porque antes de ser forma foi primeiro
humildade de barro paciente.
Deus, que concebe o cântaro e o separa
da argila lentamente, foi fazendo
do meu aprendizado o Seu compêndio
de opacidades cada vez mais claras,
e com silêncios sempre mais esplêndidos
foi limando, aguçando o que escutara.


O MUNDO COMO IDÉIA
(POEMA 1)

Canto, filho da luz da zona ardente,
coisas que vi a luz, sempre estrangeira,
tecer no ar e inevitavelmente
ir baixando com modos de redeira
ao tear deste mundo. A vida inteira
vi me escapar a luz do sol cadente,
e é essa rosa de sangue na fogueira
que agora arranco às dúvidas da mente.
Mente o intelecto que se esquece dela.
Se a pura luz de leste se desdiz,
a cada ocaso há no final feliz
dos números da mente a bagatela
de uma luz de mentira. Contra ela
fui tecendo este canto de aprendiz.
Algumas considerações de Ivan Maia, poeta e Mestre em filosofia, sobre o meu poema “Radiografia”.

ALIÁS, INDO ALÉM DISSO
Ivan Maia

No poema muito mais por dentro do que aconteceu de significativo na história, o poeta ainda não estava no mundo e, no entanto, hoje habita a consciência histórica de seu tempo munido das informações mais relevantes ao seu pensamento crítico.
Os feitos de grandes personagens, ainda que às vezes mantidos sob olhar neutralizador de suas influências, tornam-se matéria de uma poesia que se apropria dos acontecimentos para extrair-lhes um questionamento decisivo para nossas vidas: onde estávamos enquanto grandes feitos eram realizados, o que fazíamos de nossas vidas então?
A repercussão das grandes realizações depende daqueles que são responsáveis pela difusão de notícias e informações tanto quanto dos que a recebem e têm a função de digeri-las. E é desse modo que temos acesso à mensagem de Gustavo nesse poema, que se destina, por um lado, às gerações mais novas, que ainda não estavam aqui quando muita coisa importante aconteceu e aos quais cabe apropriarem-se de tais acontecimentos através do interesse pela história dos seres que marcaram a vida de nossa gente. Por outro lado, essa mensagem paradoxal (não meramente contraditória, ou ambígua) também se dirige às gerações mais velhas que já estavam “aqui”, mas que em muitos casos não “estava nem aí” para o que ocorria de importante. E poderíamos, do mesmo modo, considerar ainda um terceiro sentido presente nos dois últimos versos, nos quais o poeta aponta para uma liberação necessária em relação ao sentido histórico, que pode ser útil à vida em seu movimento de auto-superação, mas do qual precisamos nos desprender para não ficarmos sobrecarregados por ele. Isso é o que permite uma leveza de espírito isenta de ingenuidade, pois possibilita incorporar o que do passado foi e é importante para o presente enquanto se prepara o porvir, ou seja, ir além de seu tempo.


RADIOGRAFIA

“É para você que escrevo, hipócrita”
Ana C

Eu não vi Chico Landi correr
Nem o homem pisar na lua
Candeia sambou em cadeira de roda
Mas isso eu também não vi
Eu não vi os socos no ar de Pelé
Nem o vôo de Castilho
Eu não vi Lupicínio cantar Vingança
Nem joão desafinando
Eu não vi os POETAS NA PRAÇA
Ou Geraldo Maia recitando Geração de Março
Charles Chaplin no Grande Ditador eu não vi
Nem Glauber, Deus e o Diabo
Eu não estava aqui
Eu não estava nem aí...