segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Algo sobre o poeta Bruno Tolentino
Gustavo Felicíssimo

Acredito podermos dizer que, de algum modo começamos a morrer quando nascemos, e do ponto de vista espiritualista, que nascemos para a verdadeira vida quando morre este corpo que habitamos. Assim, morte e vida se completam em uma dialética ainda não muito bem absorvida por nós, seres humanos. No entanto a morte não é capaz de “matar” o grande escritor, este atravessa o tempo imune ao próprio tempo, vivo em sua obra, principalmente quando se tem o espírito elevado e nobre em um tempo repleto de indivíduos pobres de reais valores. Um desses fenômenos foi o poeta Bruno Tolentino, "sua obra poética atravessará o tempo, pois é o exemplo vivo da soberania do espírito", diz o filósofo Olavo de Carvalho no editorial do Jornal Diário do Comércio, de 04 de julho de 2007. Para o crítico e colunista da Folha, Manuel da Costa Pinto, "Bruno Tolentino conjugava em sua poesia elementos modernos e antimodernos. Era antimoderno em relação ao modernismo brasileiro, pois recusava suas soluções formais de coloquialidade e concisão. Por outro lado, o poeta se aproximava de certo modernismo europeu, inglês, que associava formas clássicas à voz das ruas".
Polemista, em 1996, depois de morar 30 anos fora do Brasil, manifestou em entrevista à revista "Veja" sua preocupação por ver o filho mais novo estudando em escolas que ensinavam as obras de letristas da MPB - como Caetano Veloso - ao lado de Machado de Assis, Camões e Fernando Pessoa. Com muita precisão e coragem ele afirmou: "É preciso botar os pingos nos is. Cada macaco no seu galho, e o galho de Caetano é o showbiz. Por mais poético que seja, é entretenimento. E entretenimento não é cultura". Ele também disparou contra Chico Buarque e os irmãos concretistas Haroldo de Campos e Augusto de Campos. Teve também desavenças com críticos literários e professores de filosofia da Universidade de São Paulo.Bruno saiu do Brasil em 1964, mudando-se para a Europa, onde viveu por mais de 30 anos, tendo trabalhado com o poeta inglês W. H. Auden, e convivido com os escritores Giuseppe Ungaretti, Elizabeth Bishop e Samuel Beckett. Foi professor nas universidades de Oxford, Essex e Bristol, publicando obras em Paris e Oxford durante a década de 1970. Em 1987, é condenado à prisão de 11 anos, sob a acusação de tráfico de drogas. Cumpriu 22 meses da pena em Dartmoor.
Tolentino retornou ao Brasil em 1993, publicando, em 1994, o livro "As Horas de Katarina", pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura. Bruno também recebeu o prêmio em 2003, com o livro "O Mundo como Idéia", e em 2007 com “A Imitação do Amanhecer”, tornando-se o primeiro (e único até agora) escritor a vencer por três vezes o prêmio literário mais importante do Brasil.

Doença e morte
Tolentino, que tinha Aids e já havia superado um câncer, esteve internado durante um mês na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, onde veio a falecer, aos 66 anos de idade, vitimado por uma falência múltipla de órgãos, em 27 de junho de 2007.

Bruno Tolentino é daqueles que fazem muita falta pela ousadia e pela qualidade que resume em si como escritor. Em suas obras o poeta passeava do erudito ao popular, indo sempre no indizível, mas sabendo o que dizer. Sem nunca perder o andamento do poema, primava pela melodia, como pode-se constatar nos poemas abaixo. Entendia que a poesia não é apenas um fenômeno de linguagem, mas também de idéias. Deixou tantos seguidores quanto admiradores e até desafetos, mas nunca ninguém poderá lhe negar um lugar de destaque no panteão da poesia lusófona.

Livros publicados por Bruno Tolentino:

Anulação e Outros Reparos (São Paulo: Massao Ohno, 1963)
Le Vrai le Vain (Paris: Actuels, 1971)
About the Hunt (Oxford: OPN, 1979)
As Horas de Katharina (São Paulo: Companhia das Letras, 1994)
Os Deuses de Hoje (Rio de Janeiro: Record, 1995)
Os Sapos de Ontem (Rio de Janeiro: Diadorim, 1995)
A Balada do Cárcere (Rio de Janeiro: Topbooks, 1996)
O Mundo como Idéia (São Paulo: Globo, 2002)
A Imitação do Amanhecer (São Paulo: Globo, 2006)

DOIS POEMAS DE BRUNO TOLENTINO

Nihil Obstat

É preciso que a música aparente
no vaso harmonizado pelo oleiro
seja perfeitamente consistente
com o gesto interior, seu companheiro
e fazedor. O vaso encerra o cheiro
e os ritmos da terra e da semente
porque antes de ser forma foi primeiro
humildade de barro paciente.
Deus, que concebe o cântaro e o separa
da argila lentamente, foi fazendo
do meu aprendizado o Seu compêndio
de opacidades cada vez mais claras,
e com silêncios sempre mais esplêndidos
foi limando, aguçando o que escutara.


O MUNDO COMO IDÉIA
(POEMA 1)

Canto, filho da luz da zona ardente,
coisas que vi a luz, sempre estrangeira,
tecer no ar e inevitavelmente
ir baixando com modos de redeira
ao tear deste mundo. A vida inteira
vi me escapar a luz do sol cadente,
e é essa rosa de sangue na fogueira
que agora arranco às dúvidas da mente.
Mente o intelecto que se esquece dela.
Se a pura luz de leste se desdiz,
a cada ocaso há no final feliz
dos números da mente a bagatela
de uma luz de mentira. Contra ela
fui tecendo este canto de aprendiz.

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