sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O ritmo dos pássaros e dos fantasmas


Jorge Elias Neto

Uma ilha dentro da ilha. Poderia definir assim o local onde conversávamos, tranquilamente, sobre literatura. A constante discussão, entre os raros interessados, sobre a evolução – aí já se encontra embutida uma fonte de discordância excitante – que ocorreu na poesia brasileira nos últimos cem anos... Bravos companheiros e fantasmas, nós, na antessala do auditório da Biblioteca Pública Estadual. Uma ilha dentro da ilha...
Uma ilha, cujo centro – outrora presépio –, hoje, nos implora um resgate do abandono; cujos bairros sofrem um processo de verticalização que de tão absurdo já ouvi alguém dizer que é ecologicamente o mais correto.
Fazer o quê, aqui ilhado, discutindo o poema enquanto lá fora se desfazem os tons poéticos e se constroem vitrines de automóveis.
E foi justamente um automóvel que interrompeu nosso entusiasmo e nos levou à varanda.
Deparamos com algo comum: um carro cujo motor enfurecido urrava para funcionar. No mais, tudo transcorria “tranquilo”: os pedestres passavam, as crianças jogavam futebol na quadra. Realmente nada de anormal acontecia.
Mas um bando de anus brancos foi buscar repouso (era fim de tarde) nos galhos da aroeira, justo onde estacionara o carro.
Logo que os entusiasmados anus começaram a lançar seus piados costumeiros, os meninos interromperam a pelada, e o que estava mais perto da grade de proteção passou pelo buraco utilizado como acesso,  aproximou-se do pé da árvore e foi logo lançando um: − Cala boca p... (e o som se propagou como uma pedrada que calou imediatamente os anus e os poetas).
Um amigo me cutucou e mostrou uma pichação no muro da quadra: “O ritmo mudou”. Saímos da varanda rindo do que consideramos, naquele momento, um chiste.
Restou o ruído do carro para o bem dos ouvidos sensíveis de crianças que não aprenderam a apreciar a poesia.

Conheça o blogue do autor clicando AQUI.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Hoje - Lançamento duplo de livros e belo sarau na Academia de Letras da Bahia


Nesta terça-feira, 28, lanço em Salvador, na Academia de Letras da Bahia, a partir das 19 horas, o livro Procura e Outros Poemas (Mondrongo Livros, 88p. R$ 20,00). Na oportunidade também será apresentada ao público a obra Cantos deContar (Editora Paés, RS 50,00), obra inédita (com capa dura e numerada) de Alberto da Cunha Melo. Haverá a participação de Cláudia Cordeiro (viúva e musa do poeta), Silvério Duque e eu, sob mediação de Walter Ramos, em que será debatida a obra de Alberto. O evento ainda contará com a participação de Marcela Martinez em um recital poético.
Como se pode ver, a noite promete ser muito agradável e todos estão convidados. Mais informações AQUI.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Uma busca pelo sentido do Ser


 texto apresentado nesta quinta-feira, 23 de agosto, no Seminário sobre o autor Capixaba, promovido pela Universidade Federal do Espírito Santo

Rascunhos do Absurdo[1], obra de Jorge Elias Neto, se inicia com uma questão ontológica basilar: o sentido do Ser. Sua lírica insiste em um discurso de cariz filosófico, marcadamente existencialista, e reflete o esvaziamento de valores do homem moderno, abandonado em si mesmo e desnorteado ante a desestabilização de verdades universais, frente às quais está solitário, pois imerso em um processo de massificação, reificação e desumanização das relações. Trata-se de uma poesia contemporânea, poesia do desconexo, do descontínuo, fragmentada, cujo discurso denuncia um mundo que se desestruturou, ao mesmo tempo é a poesia que busca, nesse mesmo mundo, uma nova construção de sentido para o homem.
Criador de imagens cortantes, observador e crítico da condição humana, Jorge Elias Neto, desde Verdes Versos[2], seguindo dictum próprio, chega ao seu segundo livro propondo uma poesia que, carregada de um arsenal reflexivo, sabe que o poema não é apenas um fenômeno de linguagem, mas também de idéias, devendo partir da realidade vívida e vivida para a apreensão de um sentido maior. Desse modo, o poeta constrói seus poemas tateando o indizível, em sua busca da ciência de desinventar (1º de janeiro de 2008, p. 74), sem nunca perder de vista aqueles que nada entendem da solidão (idem).
Como médico cardiologista, Jorge enfrenta no seu cotidiano inúmeras situações limites entre vida e morte que ajudam a acentuar o caráter metafísico da sua poesia, e isso, para o autor, tornou-se uma questão de vida: trabalhar a idéia de morte e entender a multiplicidade de atitudes do homem frente a essa locomotiva... Por isso a sua naturalidade poética não poderia ser outra: o Expressionismo existencialista, no que este tem de mais visceral - ou como diz Jorge de Souza Araujo a respeito da poesia de Adelmo Oliveira -, verdadeiramente íntimo e interiorizado, não desdobrável, não amoldável[3] a circunstâncias outras que não seja a consciência de mundo, na qual predomina a visão pessoal do artista e não uma poesia que aspire capturar a realidade, mas que seja um reflexo da reflexão do poeta frente ao seu tempo. O poeta transmite sua angústia criticando a exploração do homem pelo homem, toda sorte de estupidez e misérias. Por isso,

Disseste que a corda
apazigua os desencantados.

Disseste que a terra treme
nas bordas do despenhadeiro.

A terra não tem nada a ver
com teu descontentamento.

Ela é acima de qualquer suspeita.
É que a luz só atinge tuas costas.

Hoje, a estupidez não é mais um traço:
é um demônio que se agiganta.
(Noir, p. 58)

Em Ser e Tempo, Heidegger propõe a pergunta acerca do sentido do ser. Pode-se dizer que tal pergunta apresenta o propósito de retomar o antigo questionamento ontológico sobre o ser dos homens, visando ao mesmo tempo uma explicitação da própria compreensão de ser.  
Jorge Elias Neto encontrou na linguagem poética a sua maneira de investigar o ser humano, seus desejos, seus medos e frustrações, ou seja, o que está interno em nós e não a exteriorização, a superficialidade. É com a poesia, neste caso com Rascunhos do Absurdo, que ele empreende a sua busca pelo sentido do Ser, pois este não é o resultado de algo postiço ou acrescentado, mas um constituinte do poeta enquanto indivíduo. E desse livro o leitor não sai incólume, pois os melhores poemas nele inseridos são justamente aqueles que refletem o sentido trágico da vida, justamente aqueles que ganham dimensão cada vez maior toda vez que relido e repassado, como acontece aos “poemas gêmeos”, Corpo tombado (p. 64) e Poema ao morto (p. 65), também a Circo (p. 71) e Poema para o homem contemporâneo (p. 77), assim como a outro belo espécime da fauna versificatória brasileira, capaz de arrebentar a cabeça do leitor incauto, que é Cristo de pão:

Herdei de meu pai
esse Cristo forjado em miolo de pão.

Esse crucifixo que, pacientemente,
foi moldado no almoço de domingo;
em seus dedos, amassado,
em seus lábios umedecido.

Um Deus criado
pelo provedor de minha casa
durante o eterno silêncio
comigo repartido.

E eu aprendi que da bolinha de massa
se forja um ídolo.

Ao final da refeição, meu pai me estendeu
o Cristo na cruz.

Eu o peguei
e ele se partiu.

Foi duro para mim
ver Deus quebrar-se em minhas mãos.
(p. 79)

Trata-se de um poema dessacralizador, desorientador. Logo no primeiro dístico o poeta nos apresenta um “Cristo forjado em miolo de pão” para no final admitir que lhe fora duro “ver Deus quebrar-se em minhas mãos”. Não se trata apenas, possivelmente, da revelação de um “eu” profundo, descrente frente às “verdades” seculares, mas de uma experiência reputada indizível que expressa-se e comunica-se pela imagem[4]. Imagem que não explica, antes convida-nos a recriá-la e, literalmente, a revê-la[5]. Nesse sentido, o poema é um intermédio entre uma experiência original, avassaladora, e um conjunto de ações e vivências posteriores, que apenas adquirem consistência e sentido com referência à experiência primeva, fundadora, que o poema consagra no presente. E se é presente só existe neste agora e aqui de sua presença entre os homens. Para ser presente o poema necessita fazer-se presente entre os homens, encarnar na história[6]. Afinal, o homem é um ser histórico e fala das coisas que são suas e de seu tempo.
O tempo em Rascunhos do Absurdo, apenas para lembrarmos Vinícius de Morais, não é “quando”, mas o presente. Essa constatação reflete no significado último do poema que não é dito de maneira explícita, mas é o fundamento da poética de Jorge Elias Neto até aqui. Poesia feita no presente, para o tempo presente e para o advir, pelo menos enquanto o homem – ser temporal e relativo – for este que vemos aí, no mundo, conquistador de espaços que mal são  desbravados se transformam em cinzas.
           
            Rascunhos do Absurdo é composto por quatro capítulos: “Livro de Notas”, “O Estalo da Palavra”, “Gaza” e “O encantamento do poeta Maratiba”, este último dedicado a Miguel Marvilla, também poeta, amigo e incentivador de Jorge, falecido em seus braços, na emergência de um hospital.
O primeiro capítulo se configura por apresentar poemas extremamente líricos, muitos deles nos remetem à própria poesia ou à função do poeta – / barriga de aluguel (Ventre Vazio, p. 29), ao convívio familiar, como em Dever de Casa, um poema imagético e sensorial, quase palpável, onde o poeta assegura à amada

Fazer por onde
sempre tê-la ao meu lado
para dizer-te, sempre:
Eu Te Amo.
(p. 39)

            Suas palavras, sem qualquer prolixidade, tornam seus pensamentos consecutivamente compreensíveis, levando o poeta à busca de apurar seu discurso no sentido de transmitir o mais claramente possível seu enunciado, pois são plasmadas com coloquialidade, sem perder a elegância. É a necessidade de ser entendido e sua mensagem apreendida que servem de alimento necessário à sede do poeta.
            O segundo capítulo é marcado por aquela temática que reflete o estranhamento do homem no mundo, impregnado por um sentido de deslocamento frente à ruptura de valores da modernidade e à queda de paradigmas, antes institucionalizados e agora questionados ou até mesmo negados. É nessa atmosfera movediça da contemporaneidade que sobrevive o poeta. Sua lírica reflete o esvaziamento de valores do homem moderno, abandonado em si mesmo e desnorteado ante a desestabilização de verdades universais, como atesta o exemplar poema A Prazo:

Levem-me as horas
para os caprichos mundanos!

Já destaquei a etiqueta.

Tomei posse do indivíduo.

Será que não vêem
no meu ante-braço
o carimbo de “pago”?
(p. 63)

            Esse poema capta e revela o momento histórico da humanidade, em que o poeta tornou-se um alijado no seu tempo. Então

Já que a palavra é uma puta:
rasguem o poema.

Já que a rima é farta; e o poeta
      um estorvo,
que se recompense o primeiro idiota
a me cortar a carne.
(Balada da Carne, p. 69)

            Em Gaza, terceiro capítulo, Jorge Elias Neto apresenta-nos uma poesia de forte apelo social e grande senso humano, preocupada – naquele momento de sua escrita – com os últimos desdobramentos do confronto entre palestinos e judeus, fazendo coro à indignação que toma conta dos povos desde os tempos da criação do estado de Israel, em 1948, quando Gandhi se manifestou dizendo que

O que está acontecendo na Palestina, não é justificável por nenhuma moralidade ou código de ética. Certamente, seria um crime contra a humanidade reduzir o orgulho árabe para que a Palestina fosse entregue aos judeus parcialmente ou totalmente como o lar nacional judaico[7].            

            Quase seis décadas após, José Saramago se manifesta sobre o mesmo conflito, utilizando a imagem do franzino Davi que mata em combate o gigante filisteu, Golias, dizendo que

Aquele louro David de antanho sobrevoa de helicóptero as terras palestinas ocupadas e dispara mísseis contra alvos inermes, aquele delicado David de outrora tripula os mais poderosos tanques do mundo e esmaga e rebenta tudo o que encontra na sua frente, aquele lírico David que cantava loas a Betsabé, encarnado agora na figura gargantuesca de um criminoso de guerra chamado Ariel Sharon, lança a "poética" mensagem de que primeiro é necessário esmagar os palestinos para depois negociar com o que deles restar[8].  

            O fato é que Israel suscitou uma sensibilização mundial em favor da causa palestina, inclusive por parte dos poetas. Notoriamente, o poeta mais importante nesse contexto é o palestino Mahmud Darwish (a quem essa parte do livro é dedicada), o precursor de uma geração de autores da vertente denominada Poesia Palestina de Combate, surgida após a ocupação de 1967, que inclui os palestinos Samikh Al Qassem, Fadwa Tukan e Tawfiq Al Zayad. Em Gaza a poesia de Jorge Elias Neto comunga e se amalgama ao canto desses tantos outros poetas em um grito uníssono, fazendo-se ouvir em todos os cantos do planeta, pois retratam os absurdos e os horrores desse conflito desigual e desumano.
            Por detrás de todas as guerras percebe-se a inteira ausência de amor ao próximo, que, na verdade, reforça no poeta (Jorge Elias Neto) a incerteza quanto às verdades seculares, como a crença em um Deus que já não é refúgio para suas angústias. O homem passa a ser o criador de suas verdades e realidades, porém completamente aturdido pelo sentimento de abandono, por isso diz-nos que Ao poema, cabe / despejar sobre o chão, / e na cara dos facínoras, / uma resma de dúvidas (A Praça, p.94), ao invés de bombas, deflagrando o absurdo do existir frente ao mistério. E refletindo sobre o engajamento de Darwish (que fora expulso de sua casa, com a família, pelo exército de Israel), Jorge refaz seu caminho, e na celebração do viver encontra sentido na atitude exemplar do poeta palestino que Não azulava as dúvidas com preces / e entendia a sujeira como um vício da realidade.

            Enfim, pensar e sentir estão imbricados num propósito de induzir o homem à revelação da verdade do ser e ao conhecimento de si. A poesia, nesse ínterim, torna-se a expressão maior de significados do homem, transcendendo a superficialidade da expressão na busca de se exprimir o inefável. Nesse contexto, pautado nas questões essenciais que afligem o homem moderno, em que o ser se lança na investigação identitária de si mesmo e no descortinar do sentido da vida, pulsante na concretude do mundo, é que se enquadra Rascunhos do Absurdo, uma obra comprometida com o homem e com a vida, em que o autor tece suas críticas ao mundo moderno, pragmático e utilitarista, refletindo o espasmo do homem frente ao mundo por ele criado e sua busca na ressignificação da vida.



[1] Neto, Jorge Elias. Vitória: Flor&Cultura, 2010.
[2] Neto, Jorge Elias. Vitória: Flor&Cultura, 2007.
[3] Oliveira, Adelmo. Poesia Seleta de Adelmo Oliveira. Ilhéus: Mondrongo, 2012.
[4] Paz, Octavio. Signos em rotação, Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1972.
[5] Idem.
[6] Ibidem.
[7] Disponível na internet, no site do Comitê Democrático Palestino – CDP – Brasil. Visitado em 15/04/2011. Link: http://somostodospalestinos.blogspot.com.br/2011/04/terceira-intifada-palestina.html.
[8] Disponível na internet, no site da Fundação José Saramago. Visitado em 10/01/2009. Link: http://caderno.josesaramago.org/20584.html.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Anotações Capixabas – I


Estou em Vitória, Espírito Santo, onde às 14 horas, na Biblioteca Pública do Estado, farei uma palestra – em evento da UFES – sobre o livro Rascunhos do Absurdo, de Jorge Elias Neto, cuja poesia se inicia com uma questão ontológica basilar: o sentido do Ser. Sua lírica insiste em um discurso de cariz filosófico, marcadamente existencialista, e reflete o esvaziamento de valores do homem moderno, abandonado em si mesmo e desnorteado ante a desestabilização de verdades universais, frente às quais está solitário, pois imerso em um processo de massificação, reificação e desumanização das relações. Trata-se de uma poesia contemporânea, poesia do desconexo, do descontínuo, fragmentada, cujo discurso denuncia um mundo que se desestruturou, ao mesmo tempo é a poesia que busca, nesse mesmo mundo, uma nova construção de sentido para o homem. Para se ter uma ideia da potência da poesia de Jorge Elias Neto, apresento a seguir um dos seus poemas que estão entre os meus favoritos.

NOIR

Disseste que a corda
apazigua os desencantados.

Disseste que a terra treme
nas bordas do despenhadeiro.

A terra não tem nada a ver
com teu descontentamento.

Ela é acima de qualquer suspeita.
É que a luz só atinge tuas costas.

Hoje, a estupidez não é mais um traço:
é um demônio que se agiganta.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Um inédito de Alberto da Cunha Melo

         Neste ano, em que se vivo estivesse, Alberto da Cunha Melo completaria 70 anos de vida, a Editora Paés, de Pernambuco, terra natal do poeta, lança em Salvador e Recife, Cantos de Contar, em uma justa homenagem a esse que foi, seguramente, um dos melhores poetas surgidos no Brasil nos últimos tempos.
         A mim esses eventos trazem uma alegria dupla, primeiramente por poder receber Cláudia Cordeiro (musa e viúva do poeta) e o livro, tão bem cuidado por ela e a trupe da Paés, depois, pelo fato de ter a oportunidade de levar meu livro mais recente, Procura e Outros Poemas, ao público e amigos de Salvador e Recife, obra que é toda construída por Retrancas, forma poética e estrófica criada por Alberto da Cunha Melo.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A Odisseia de Jorge Amado


Muitas homenagens foram e continuam sendo feitas a Jorge Amado pela passagem do seu centenário, a mais relevante, aquela que mais satisfaria o escritor, me parece, foi feita por Piligra, poeta aqui da zona cacaueira da Bahia, que escreveu uma competente biografia de Jorge Amado em forma de poesia. Ou melhor, ele fez uma narrativa em forma de poesia, uma "viagem criativa através dos romances e biografia do escritor". São 100 sonetos, dodecassílabos trímetros, ricamente ilustrados por George Pellegrini com pinturas de Jane Hilda Badaró, reunidos em A Odisseia de Jorge Amado (Editus, 2012), um trabalho hercúleo que acompanhei de perto e sugiro tanto a sua leitura quanto o material preparado pelo também poeta, sonetista, Henrique Pimenta, sobre a obra, inclusive uma competente entrevista com o autor. É só clicar AQUI.

domingo, 19 de agosto de 2012

NIHONJIN - A força e a leveza da narrativa de Oscar Nakasato


Quero indicar aos amigos a leitura de Nihonjin, obra de Oscar Nakasato, vencedor do 1º Prêmio Benvirá de Literatura. Trata-se de um romance espetacular, em verdade uma reconstrução histórica de alguns dos mais importantes aspectos da imigração japonesa no Brasil, o que por si só vale a indicação, tendo em vista ser essa uma vertente ainda pouco explorada na literatura brasileira. Mas o livro é muito mais que isso. Sua trama foi competentemente construída ao rés dos conflitos que marcaram a vinda e a vida daquelas pessoas oriundas de uma nação cuja cultura é muito diferente da nossa.
O protagonista é Hideo Inabata, “um japonês (nihonjin) orgulhoso de sua nacionalidade”, e o narrador é seu neto, um observador privilegiado dos acontecimentos que marcam não apenas a história e os conflitos do avó, mas a transformação social pela qual passa  toda uma sociedade, em princípio trabalhadores rurais semi-escravizados, e com o passar do tempo, comerciantes, profissionais liberais, agricultores.
As dificuldades de adaptação, a saudade, os costumes, o orgulho, a disciplina de um povo, enfim, os dramas, tudo é narrado em uma “linguagem objetiva”, mas nunca pobre, “sem firulas”, mas antes de tudo bela, onde prevaleça certa necessidade do autor por dizer nem mais nem menos que apenas o necessário, o que é feito brilhantemente, pois no correr da leitura a nossa percepção é a de que tudo está perfeitamente ajustado, as arestas aparadas, enfim, nada sobrando ou faltando.
Em Nihonjin, a tradicional literatura nipônica e a brasileira se interpenetram, mas tal é a força e a leveza da narrativa de Nakasato que temos a impressão de que é descendente direto de grandes ficcionistas japoneses, como Tanizaki, Okutagawa ou Kawabata, três décimos, digamos, de uma literatura quase ignorada do público brasileiro, mas tão antiga e rica quanto as melhores literaturas ocidentais.

* Confira AQUI artigo publicado no Rascunho e uma breve entrevista com o autor.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Poesia em versos e cores


A Feira do Livro de Ilhéus, que homenageou Jorge Amado em seu centenário, trouxe-me, em alguns momentos, grande satisfação. Tive o prazer de reencontrar amigos e de voltar a me apresentar com a banda Enttropia, revivendo o espetáculo Catedrais Suspensas, mas disso falarei em outra oportunidade. Agora, o que gostaria de apresentar aos amigos é o quadro – aí abaixo – que Jane Hilda Badaró pintou a partir da leitura de um poema – Zordo – que escrevei a cerca de três anos.


Jane possui uma pincelada que entendo como transcendental e refletora de uma visão espiritualista de mundo. Ela é firme e decidida, mas nessa atitude o que impera é a leveza. O resultado são quadros que denotam uma característica peculiar, muito própria da artista, causando grande impacto no apreciador de artes plásticas e interesse de especialistas. Uma prova do que afirmamos foi o convite que recebeu para expor na França, em Paris, nos próximos meses. De seu acervo foram escolhidas seis telas, uma delas é justamente esta, que Jane intitulou “Poesia”.
Ocorre que a tela, como não poderia deixar de ser, já pertence ao meu modesto acervo. Jane Hilda agora se prepara para pintar uma obra gêmea, que está chamando momentaneamente de “Poesia II”. Estou seguro que ela fará um trabalho ainda melhor, pois como diz a própria autora, cada pintura é única, não se repetirá jamais.

Agora, o poema:

Zordo

Haverá um dia
do espírito humano
brotarão versos
em forma de hóstia
e do coração
um poema lírico
tão puro e claro
quanto uma criança.
Haverá um dia
das consciências
nascerá um rio
de água límpida
e das bocas
uma coluna de fogo
para iluminar
o breu das noites.
Haverá um dia
como nenhum outro
feito de música
esplendor e lucidez
em que a poesia
pássaro liberto
repousará fecunda
na casa dos homens. 

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

A sublime arte de se autopromover


(Anotações sobre Procura e Outros Poemas)

Lanço meu próximo livro em Ilhéus, no dia 10 de agosto, data em que se comemora o Centenário de Jorge Amado. O evento ocorrerá no Centro de Convenções, dentro da programação do Terreiro da Poesia. “Procura e Outros Poemas” é uma obra imersa em uma configuração peculiar, que é a Retranca, cuja formatação estrófica, criada por Alberto da Cunha Melo, consiste num quarteto na forma abcb, um dístico rimado, um terceto na forma ded e um outro dístico final, também rimado. Cada verso possui oito sílabas métricas.
Comecei a escrever retrancas ainda no ano de 2003, logo após a publicação de “Dois caminhos e uma oração[i]”, obra editada nesse mesmo ano, e que, dos três livros reunidos, dois trazem, originalmente, poemas dentro dessa formatação. Portanto, desde a escrita de minha primeira retranca até a publicação de “Procura e Outros Poemas”, nove anos se passaram.
 Eu já havia, àquela altura, escrito alguns poemas octossílabos, cujo metro, por incomum, costuma causar estranhamento, daí ter sido adotado por João Cabral, imagino. Ocorre que o efeito conseguido por Alberto nunca foi de estranhamento. Seus versos, antes de mais nada, sempre me pareceram de uma limpidez quase decassilábica, mas como são mais curtos, soavam como decassílabos condensados. Não sem razão, Alfredo Bosi afirma que a retranca lembra remotamente um soneto inglês[ii].
Logo na primeira vez que mostrei a amigos escritores as primeiras retrancas compostas, no tempo, ainda, quando João Filho mantinha aberto, bravamente, o Sebo Diadorim, em Salvador, recebi o estímulo necessário para que continuasse. Continuei, pois senti que aquela formatação se encaixava perfeitamente às minhas necessidades de composição. E como se trata de um poema de um só fôlego, embora curto, os enjambements e as rimas, inclusive as internas, com seus ecos, proporcionam certa tensão ao poema. O resultado, em suma, é tenso, mas de uma tensão leve, vaporosa. Alguns desses poemas mais antigos estão no livro.
Mas é sobre “Procura” que pretendo falar, e de antemão peço desculpas pela autopropaganda e por algum possível cabotinismo, afinal, como afirma Antônio Risério em artigo publicado recentemente no jornal A Tarde, nossos livros por aqui – na Bahia – não são discutidos seriamente, por escrito, em publicações locais[iii]. Senti essa falta quando lancei, em 2011, “Outros Silêncios”, livro que transita pelo haikai e formas congêneres, muito bem acolhido pela imprensa e público de outros estados e pouquíssimo valorizado por aqui, embora, ao que me pareça, tenha sido o primeiro publicado na Bahia em que, além do tradicional haikai, ainda está presente o renga e o haibun.
Tive o prazer, a honra, de ter meu livro acolhido por duas pessoas importantíssimas na vida de Alberto da Cunha Melo. Uma delas é Ângelo Monteiro, filósofo e também poeta de minha admiração, um dos melhores amigos de Alberto. A outra é Cláudia Cordeiro, simplesmente a Musa, esposa de Alberto por longos trinta e tantos anos. Da primeira delas recebi algumas palavras animadoras: “Gustavo Felicíssimo se tornou um verdadeiro continuador da retranca, esta forma estrófica que, inventada por Alberto da Cunha Melo, constituiu a matéria prima de, pelo menos, duas de suas obras fundamentais — Meditação sob os lajedos e Yacala — e que ganhou no autor de “Procura e Outros Poemas” um componente lúdico e graciosamente aleatório que veio dar ao seu livro uma nota pessoal à fórmula albertiana”. E de Cláudia, os seguintes afagos: “o que me surpreendeu neste livro foi a rara alegria que ele me deu, depois de cinco anos sem o poeta Alberto da Cunha Melo ao meu lado, vê-lo renascer aqui, com sua "retranca", seus sinais, no primeiro conjunto de poemas publicado nestas virtualíssimas folhas de papel, na sua forma fixa, no sussurro dos octossílabos”.
Não posso deixar de revelar, ainda, que o texto de Silvério Duque, figura que acompanhou mais de perto a feitura de minhas retrancas, oferecendo-me há alguns anos uma primeira leitura crítica, também me envaideceu, afinal, ele está entre os poetas e críticos mais talentosos da minha geração, também cultor do gênero. Silvério herdou de Bruno Tolentino o gosto pela obra de Alberto e brindou-me com um dos textos mais sóbrios e abrangentes que minha poesia já recebeu. Diz ele: “Ao optar por uma poesia formal, Gustavo Felicíssimo não busca nada além da elaboração interior do poema, composta pelas ideias nela contidas, coisa a que estão destinados todos os poemas, ou, pelo menos, os bons poemas. Gustavo sabe que forma é assimilação de ideia; compor diretamente nela é o melhor exemplo que alguém possa ter da incorporação desta ideia ao seu resultado final, enquanto arte. Gustavo Felicíssimo nos deixa bem claro que a sua pretensão poética não almeja menos que as grandes composições, as quais só os poetas afeitos tanto à composição quanto à depuração podem realizar[iv]”.
Pois bem. O livro agora seguirá o seu caminho. Será lançado oficialmente na programação do Terreiro da Poesia, na Feira do Livro de Ilhéus, no dia 10 de agosto. Após, será apresentado ao público capixaba, ainda no mês de agosto, no dia 23, após a participação que farei em uma atividade promovida pela UFES no auditório da Biblioteca Pública do Espírito Santo, que é o V Seminário sobre o autor capixaba. Depois será a vez de Salvador (dia 28), e Recife (04 de setembro), ambas pegando carona em atividades de lançamento de obra inédita de Alberto da Cunha Melo.
Era isso. Espero ter aprendido algo sobre a famigerada, e ao mesmo tempo, sublime arte de se autopromover. Vamos ver como as coisas se processam, se essas anotações serão capazes de provocar alguma reação benéfica, proveitosa, para o livro. 

Três Poemas

Autorretrato

Sou como o invisível céu
que não vos inspira cuidados,
pois retorno depois das névoas
sobre os campos abandonados;

sou finito e celebro o fogo
infindável do grande jogo

a nos enlaçar a garganta;
creio no vórtice da voz
sacrossanta que a tudo encanta:

trago os haveres desse mundo;
sou terra, sou campo fecundo.


A treva e o lume

Um grande livro é um grande mal
Calímaco

Um grande livro é um grande mal,
tão necessário quanto a treva
por onde a luz emerge, insurge,
ele é o farol que alto se eleva

por sobre o mar e seus mistérios,
sobre as geleiras, hemisférios;     

um grande livro é uma janela
por onde o Ser se observa, é fogo,
fulgor e chama, é caravela:

aceita, pois, esse animal
que um grande livro é o melhor mal.


Segunda Canção para Flora

Porque vieste a este mundo
o meu cansaço é alegria,
meu coração está contente
embora a noite esteja fria;

porque vieste a este mundo
insano eu canto o amor profundo,

canto o sossego dos caminhos,
a inconsútil claridade
e o verde-azul dos teus olhinhos:

porque vieste a este mundo
eu não te deixo um só segundo.


O livro pode ser adquirido ao valor de 25,00, já incluso a despesa de remessa, enviando-se e-mail para a Mondrongo Livros: contato@mondrongo.com.br




[i] Melo, Alberto da Cunha. Dois caminhos e uma oração. São Paulo: Girafa, 2003.
[ii] Idem, p. 162.
[iii] Publicado em 07/07/2012, p. 02.
[iv] Felicíssimo, Gustavo. Procura e outros poemas; Duque, Silvério. Dois caminhos e um reencontro: a poesie pure de Gustavo Felicíssimo, p. 75 – 82. Ilhéus, BA: Mondrongo, 2012.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O peso de cada pedra

Resenha de Marcos Navarro sobre o livro Pedra por Pedra, de Cláudio Zumaeta

Guardo comigo, no fundo do porão da memória, uma imagem de menino. Uma pedra achatada, lançada sobre a lâmina d'água da Lagoa de Pituaçu, um dos recantos mais belos da minha maltratada Salvador. Projetado com força e efeito, o seixo saltitava três, quatro, cinco, até seis vezes, sobre o espelho escuro. A garotada apelidava de “tainha” a brincadeira, aludindo ao peixe marinho que se desloca aos pulos. Ganhava o pivete cuja pedra atiçada fizesse mais investidas sobre o dorso aquoso. Lembrei-me da cena porque acabo de ler o excelente Pedra por Pedra do historiador, escritor, filósofo, mas, antes de tudo, amigo e poeta Claudio Zumaeta.
De conto em conto, de crônica em crônica, Zumaeta nos revela as suas anotações de espeleólogo de humanidades. E parece não ter medo de explorar as cavernas mais difíceis – aquelas que nos desmascaram e revelam a nossa face patética. Ele nos lembra a todo o momento: sim, somos finitos, ridículos, mesquinhos, medrosos, opressos. No entanto, temos uma sede tão grande de criar e viver que acabamos por acreditar que somos livres. E é bem provável que seja este o trunfo da criação literária. Por meio de uma memória artificial – a escrita – descortinamos significados que nos arremessam, como pedras, em variados espaços.
Ora Zumaeta esculpe seus temas em pedra calcária e nos brinda com a força de Dragões, conto em que evidencia o drama psicológico de um garoto que cai num buraco fundo depois de perder a pipa com que brincava. Ele mistura infância, recreio, medo, vida, morte e lama, extraindo das circunstâncias a máxima tensão. Ler aquilo dói. Porque escrever é reescrever, tirar excessos, dosar. Nunca acreditei na escrita sem trabalho e dor, sem exasperação, sem conflito. E Claudio Zumaeta deixa clara a sua preocupação em ser preciso, econômico, sem evitar os labirintos.
Ele coloca cada pedra no lugar certo (?) para construir um texto denso, que prima pela reflexão. Quem malha a pena sabe – não é fácil escrever um conto redondo em página e meia. Como diz Gabriel García Márquez no prefácio de Doze contos peregrinos, o conto é um gênero traiçoeiro e tende a desandar com facilidade. Não sei ao certo se a fotografia do autor, na orelha do livro, foi feita antes, durante ou depois da obra. Mas não é difícil ler em seu rosto alguns traços de insônia e fadiga. 
Em outros momentos, o humor surge como catalisador das reações. Zumaeta agora esculpe em pedra-sabão e nos oferece o saborosíssimo “Seo Juca”. Um pai que, no leito de morte, resolve contar ao filho um segredo: tocou fogo no teatro do colégio porque se recusava a encenar o papel da peça para o qual foi escolhido: uma pedra.  Não espere de Claudio uma narrativa repleta de previsibilidades. Trata-se de um escriba amante de pedras altas, serras, escarpas, platôs, chapadas. Um amante dos precipícios. Pelo menos no mundo das letras, o fã de Shazan e Xerife jamais será acometido de súbita acrofobia. Ele se deleita com a infância povoada por amigos invisíveis. Com eles, aprendeu a matutar e, algumas vezes, meter a bola entre as canetas do tempo. 
E deu nisso aí, um escritor que não pensa duas vezes em expor as fraquezas humanas. O repúdio ao texto fácil, de fórmula pronta, ganha relevo em A fama. Uma crítica que tem endereço certo e mostra como o marketing digital tornou-se o grande aliado de escribas embusteiros que viraram “unanimidade”. Por outro lado, Zumaeta capricha no buril e homenageia a saudosa Clarice Lispector ao nos oferecer o breve e intenso Pedro e o sonolento Amanhã de manhã.
Não há dúvidas de que Claudio colecionou as pedras que encontrou pelo caminho e agora nos conta como elas rolaram até aqui. O que percebo de mais importante, porém, é o truque usado para tirar-lhes o peso e transformá-las em palavras. Com um sorriso de quem desafia o tempo, Zumaeta tem o dom da prestidigitação. O menino da região do cacau não tem a mínima vocação para Sísifo. Nem tudo é dor em sua geologia. Ele carrega apenas as pedras que lhe interessam. Algumas são verdadeiras gemas. Outras só parecem ser pedras. São simulacros de formações rochosas, pedaços de isopor tingidos de anilina. Metáforas de obstáculos que ele, com a inesquecível experiência de garoto, arremessa como “tainhas” no espelho d'água do  lago e não tardam e atingir o fundo.

Marcos Navarro é Jornalista, Assessor de comunicação do Tribunal de Contas do Estado da Bahia