Guardo comigo, no fundo
do porão da memória, uma imagem de menino. Uma pedra achatada, lançada sobre a
lâmina d'água da Lagoa de Pituaçu, um dos recantos mais belos da minha
maltratada Salvador. Projetado com força e efeito, o seixo saltitava três,
quatro, cinco, até seis vezes, sobre o espelho escuro. A garotada apelidava de
“tainha” a brincadeira, aludindo ao peixe marinho que se desloca aos pulos.
Ganhava o pivete cuja pedra atiçada fizesse mais investidas sobre o dorso
aquoso. Lembrei-me da cena porque acabo de ler o excelente Pedra por Pedra
do historiador, escritor, filósofo, mas, antes de tudo, amigo e poeta Claudio
Zumaeta.
De conto em conto, de
crônica em crônica, Zumaeta nos revela as suas anotações de espeleólogo de
humanidades. E parece não ter medo de explorar as cavernas mais difíceis –
aquelas que nos desmascaram e revelam a nossa face patética. Ele nos lembra a
todo o momento: sim, somos finitos, ridículos, mesquinhos, medrosos, opressos.
No entanto, temos uma sede tão grande de criar e viver que acabamos por
acreditar que somos livres. E é bem provável que seja este o trunfo da criação
literária. Por meio de uma memória artificial – a escrita – descortinamos
significados que nos arremessam, como pedras, em variados espaços.
Ora Zumaeta esculpe seus
temas em pedra calcária e nos brinda com a força de Dragões, conto em
que evidencia o drama psicológico de um garoto que cai num buraco fundo depois
de perder a pipa com que brincava. Ele mistura infância, recreio, medo, vida,
morte e lama, extraindo das circunstâncias a máxima tensão. Ler aquilo dói.
Porque escrever é reescrever, tirar excessos, dosar. Nunca acreditei na escrita
sem trabalho e dor, sem exasperação, sem conflito. E Claudio Zumaeta deixa
clara a sua preocupação em ser preciso, econômico, sem evitar os labirintos.
Ele coloca cada pedra no
lugar certo (?) para construir um texto denso, que prima pela reflexão. Quem
malha a pena sabe – não é fácil escrever um conto redondo em página e meia.
Como diz Gabriel García Márquez no prefácio de Doze contos peregrinos, o
conto é um gênero traiçoeiro e tende a desandar com facilidade. Não sei ao
certo se a fotografia do autor, na orelha do livro, foi feita antes, durante ou
depois da obra. Mas não é difícil ler em seu rosto alguns traços de insônia e
fadiga.
Em outros momentos, o
humor surge como catalisador das reações. Zumaeta agora esculpe em pedra-sabão
e nos oferece o saborosíssimo “Seo Juca”. Um pai que, no leito de morte,
resolve contar ao filho um segredo: tocou fogo no teatro do colégio porque se
recusava a encenar o papel da peça para o qual foi escolhido: uma pedra. Não espere de Claudio uma narrativa repleta
de previsibilidades. Trata-se de um escriba amante de pedras altas, serras,
escarpas, platôs, chapadas. Um amante dos precipícios. Pelo menos no mundo das
letras, o fã de Shazan e Xerife jamais será acometido de súbita
acrofobia. Ele se deleita com a infância povoada por amigos invisíveis. Com
eles, aprendeu a matutar e, algumas vezes, meter a bola entre as canetas do
tempo.
E deu nisso aí, um
escritor que não pensa duas vezes em expor as fraquezas humanas. O repúdio ao
texto fácil, de fórmula pronta, ganha relevo em A fama. Uma crítica que
tem endereço certo e mostra como o marketing digital tornou-se o grande aliado
de escribas embusteiros que viraram “unanimidade”. Por outro lado, Zumaeta
capricha no buril e homenageia a saudosa Clarice Lispector ao nos oferecer o
breve e intenso Pedro e o sonolento Amanhã de manhã.
Não há dúvidas de que
Claudio colecionou as pedras que encontrou pelo caminho e agora nos conta como
elas rolaram até aqui. O que percebo de mais importante, porém, é o truque
usado para tirar-lhes o peso e transformá-las em palavras. Com um sorriso de
quem desafia o tempo, Zumaeta tem o dom da prestidigitação. O menino da região
do cacau não tem a mínima vocação para Sísifo. Nem tudo é dor em sua geologia.
Ele carrega apenas as pedras que lhe interessam. Algumas são verdadeiras gemas.
Outras só parecem ser pedras. São simulacros de formações rochosas, pedaços de
isopor tingidos de anilina. Metáforas de obstáculos que ele, com a inesquecível
experiência de garoto, arremessa como “tainhas” no espelho d'água do lago e não tardam e atingir o fundo.
Marcos Navarro é Jornalista, Assessor de comunicação
do Tribunal de Contas do Estado da Bahia
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