texto que apresentei no encontro literário da Academia de Letras da Bahia
Tenho procurado ver o poeta à luz da sua própria estética, mas o que ocorre de maneira trivial, na imensa maioria das obras que nos chegam às mãos, é que não se vê estética alguma, senão um emaranhado de poemas disformes que nada dizem ao intelecto. A realidade é que tais obras não possuem conjunto ou idéia porque os autores caminham às apalpadelas, como perdidos, não sabem o que querem, tampouco o que têm a dizer.
É comum esses poetas apresentarem o tema dos seus poemas nos primeiros versos e depois se perderem nele. O resultado óbvio são livros e mais livros contendo emaranhados de poemas estética e discursivamente fragmentados, sem qualquer tipo de unidade que o perpasse em sua inteireza. Sendo impossível definir as obras desses poetas, as abandonamos ao jugo dos seus confrades, sempre dispostos aos elogios fáceis, algo tão próprio dos tempos atuais, fruto da carência de reais valores, onde a transgressão, segundo Frei Beto, deixou de ser exceção para tornar-se regra, o sistemático cedeu lugar ao fragmentário, a teoria ao experimental, tudo coreografado ao compasso dos jogos de linguagem.
Se toda obra deve possuir primeiramente uma intenção, então essa unidade a que nos referimos e que sentimos falta na obra da maioria dos poetas, deve estar presente. Assim se evitaria tanto juízo forçado ou torcido, tanta falta de correspondência entre a obra analisada e aquilo que se está a dizer dela, falácias de um compadrio desmedido e tão típico da ausência de crítica na atualidade.
Mas não há com o quê se preocupar, pois uma verdadeira obra literária possui o valor de resistir a reiteradas leituras, não é olvidada ou entedia, como não entedia um quadro de Rembrandt, um poema de Pessoa, uma escultura de Rodin. Antes ela permanece perene, infinda, na formidável companhia das coisas que nos são caras, pois muitas leituras se sucedem, centenas de obras secundárias deixam apenas breves rumores, quando deixam, mas a lembrança dos livros essenciais, essa continua fresca e persistente.
Encontramos essa unidade reclamada na extensa e variada obra de Myriam Fraga, poeta de amplas e humaníssimas medidas interiores, a procurar, pacientemente, a integração de diversos estímulos para conjugá-los em sua poesia que acolhe e tonaliza os elementos que se amalgamam em nossa identidade. Como em sua obra nada é acidental, portanto, cingida por critérios particulares, ao seu fazer poético comparecem além das demandas pessoais, existenciais, um arcabouço de elementos de cunho lendários, históricos e mitológicos, compondo um sistema de signos que dão unidade às suas obras, enfeixando-as com contornos épico e dramático, humano e sublime.
Desde seu primeiro livro, “Marinhas”, que data de 1964, até “Femina”, que é de 1996, são inúmeros estremecimentos, nove no total, apenas em língua portuguesa. E lá estão as paisagens da Bahia, os fatos e as figuras da sua história colonial, como em “Sesmaria”, 1969, onde percebemos no poema A cidade, esta bela descrição imagética de Salvador:
Foi plantada no mar
E entre corais se levanta.
O salitre é seu ar,
Sua coroa, sua trança
De salsugem,
Seu vestido de ametista,
Seu manto de sal
E musgo.
Já a mitologia grega, com seus deuses e heróis imortais, assunto de tal maneira fascinante, talvez por ter uma importância capital para o conhecimento ocidental, é um dos temas preferidos de Myriam Fraga. Um dos aspectos mais notáveis da mitologia grega, como afirma Mário da Gama Kury, é a atitude irreverente de seus criadores, reveladora da altivez dos gregos e de seu espírito igualitário, que os levaram a querer ombrear com os deuses em suas qualidades e em seus defeitos também. Por esses aspectos, a mitologia grega proporciona que a autora pretenda revestir-se de tal espírito para até mesmo subjugar os deuses, como está implícito no poema Anátema, inserido em “As purificações ou O sinal de Talião”, cujo dístico final diz:
Somos mais do que os deuses
Porque somos
Sabemos que por trás dos mitos, além das palavras e da ação, existe um conhecimento velado que dessa maneira é transmitido aos homens. Assim, a mitologia grega também comparece à obra de Myriam Fraga como elemento que vai auxiliá-la na decifração dos próprios mitos, nas demandas de cunho moral, como o da Esfinge, por exemplo, um ser com a cabeça de mulher e corpo de leoa, que em uma das suas variações contadas foi enviado a Tebas por Hera para punir o amor de Laio por Crísipo. No poema A esfinge, que faz parte do livro “O risco na pele”, 1979, a poeta concebe o monstro como um ser frágil. O que vale, em verdade, aqui, não é a sua imponência deste ser, mas os valores que representa. Como sabemos, após ter seu enigma decifrado por Édipo, a esfinge suicida-se, lançando-se do alto de um rochedo.
Também as demandas da alma feminina estão presentes na obra de Myriam Fraga, tudo ajustado por um censo estético que não dá fuga ao banal, ao superficial. Neste aspecto Myriam é preciosa, da família das Hilst, das Fontela, poetas que, no dizer de Henrique Wagner, conseguem sair de si para fazer literatura mesmo, não diário íntimo, monólogo interior. Em Ars poética, poema inaugural de “Femina”, um livro tão visceral quanto sinestésico, ela afirma: Poesia é coisa /de mulheres. E diz mais. Mostra em Possessão a face oculta dos poetas inspirados: O poema fez de mim/ O seu cavalo;/ Um arrepio no dorso,/ Um calafrio,/ Uma dança de espelhos/ E de espadas.
Por fim, vale lembrar que não podemos deixar de observar também que Myriam Fraga desenvolveu seu próprio dictum, seu modo pessoal de abordar as questões e ocorrências que lhe são caras. Versejando quase sempre em verso livre e breve, lança mão de uma coloquialidade revestida, variavelmente, por tonalidades instáveis e tensas, marca indelével de uma poeta plena, senhora de sua arte e dos seus limites, mas que, contudo, não se furta a explorá-los.
Tenho procurado ver o poeta à luz da sua própria estética, mas o que ocorre de maneira trivial, na imensa maioria das obras que nos chegam às mãos, é que não se vê estética alguma, senão um emaranhado de poemas disformes que nada dizem ao intelecto. A realidade é que tais obras não possuem conjunto ou idéia porque os autores caminham às apalpadelas, como perdidos, não sabem o que querem, tampouco o que têm a dizer.
É comum esses poetas apresentarem o tema dos seus poemas nos primeiros versos e depois se perderem nele. O resultado óbvio são livros e mais livros contendo emaranhados de poemas estética e discursivamente fragmentados, sem qualquer tipo de unidade que o perpasse em sua inteireza. Sendo impossível definir as obras desses poetas, as abandonamos ao jugo dos seus confrades, sempre dispostos aos elogios fáceis, algo tão próprio dos tempos atuais, fruto da carência de reais valores, onde a transgressão, segundo Frei Beto, deixou de ser exceção para tornar-se regra, o sistemático cedeu lugar ao fragmentário, a teoria ao experimental, tudo coreografado ao compasso dos jogos de linguagem.
Se toda obra deve possuir primeiramente uma intenção, então essa unidade a que nos referimos e que sentimos falta na obra da maioria dos poetas, deve estar presente. Assim se evitaria tanto juízo forçado ou torcido, tanta falta de correspondência entre a obra analisada e aquilo que se está a dizer dela, falácias de um compadrio desmedido e tão típico da ausência de crítica na atualidade.
Mas não há com o quê se preocupar, pois uma verdadeira obra literária possui o valor de resistir a reiteradas leituras, não é olvidada ou entedia, como não entedia um quadro de Rembrandt, um poema de Pessoa, uma escultura de Rodin. Antes ela permanece perene, infinda, na formidável companhia das coisas que nos são caras, pois muitas leituras se sucedem, centenas de obras secundárias deixam apenas breves rumores, quando deixam, mas a lembrança dos livros essenciais, essa continua fresca e persistente.
Encontramos essa unidade reclamada na extensa e variada obra de Myriam Fraga, poeta de amplas e humaníssimas medidas interiores, a procurar, pacientemente, a integração de diversos estímulos para conjugá-los em sua poesia que acolhe e tonaliza os elementos que se amalgamam em nossa identidade. Como em sua obra nada é acidental, portanto, cingida por critérios particulares, ao seu fazer poético comparecem além das demandas pessoais, existenciais, um arcabouço de elementos de cunho lendários, históricos e mitológicos, compondo um sistema de signos que dão unidade às suas obras, enfeixando-as com contornos épico e dramático, humano e sublime.
Desde seu primeiro livro, “Marinhas”, que data de 1964, até “Femina”, que é de 1996, são inúmeros estremecimentos, nove no total, apenas em língua portuguesa. E lá estão as paisagens da Bahia, os fatos e as figuras da sua história colonial, como em “Sesmaria”, 1969, onde percebemos no poema A cidade, esta bela descrição imagética de Salvador:
Foi plantada no mar
E entre corais se levanta.
O salitre é seu ar,
Sua coroa, sua trança
De salsugem,
Seu vestido de ametista,
Seu manto de sal
E musgo.
Já a mitologia grega, com seus deuses e heróis imortais, assunto de tal maneira fascinante, talvez por ter uma importância capital para o conhecimento ocidental, é um dos temas preferidos de Myriam Fraga. Um dos aspectos mais notáveis da mitologia grega, como afirma Mário da Gama Kury, é a atitude irreverente de seus criadores, reveladora da altivez dos gregos e de seu espírito igualitário, que os levaram a querer ombrear com os deuses em suas qualidades e em seus defeitos também. Por esses aspectos, a mitologia grega proporciona que a autora pretenda revestir-se de tal espírito para até mesmo subjugar os deuses, como está implícito no poema Anátema, inserido em “As purificações ou O sinal de Talião”, cujo dístico final diz:
Somos mais do que os deuses
Porque somos
Sabemos que por trás dos mitos, além das palavras e da ação, existe um conhecimento velado que dessa maneira é transmitido aos homens. Assim, a mitologia grega também comparece à obra de Myriam Fraga como elemento que vai auxiliá-la na decifração dos próprios mitos, nas demandas de cunho moral, como o da Esfinge, por exemplo, um ser com a cabeça de mulher e corpo de leoa, que em uma das suas variações contadas foi enviado a Tebas por Hera para punir o amor de Laio por Crísipo. No poema A esfinge, que faz parte do livro “O risco na pele”, 1979, a poeta concebe o monstro como um ser frágil. O que vale, em verdade, aqui, não é a sua imponência deste ser, mas os valores que representa. Como sabemos, após ter seu enigma decifrado por Édipo, a esfinge suicida-se, lançando-se do alto de um rochedo.
Também as demandas da alma feminina estão presentes na obra de Myriam Fraga, tudo ajustado por um censo estético que não dá fuga ao banal, ao superficial. Neste aspecto Myriam é preciosa, da família das Hilst, das Fontela, poetas que, no dizer de Henrique Wagner, conseguem sair de si para fazer literatura mesmo, não diário íntimo, monólogo interior. Em Ars poética, poema inaugural de “Femina”, um livro tão visceral quanto sinestésico, ela afirma: Poesia é coisa /de mulheres. E diz mais. Mostra em Possessão a face oculta dos poetas inspirados: O poema fez de mim/ O seu cavalo;/ Um arrepio no dorso,/ Um calafrio,/ Uma dança de espelhos/ E de espadas.
Por fim, vale lembrar que não podemos deixar de observar também que Myriam Fraga desenvolveu seu próprio dictum, seu modo pessoal de abordar as questões e ocorrências que lhe são caras. Versejando quase sempre em verso livre e breve, lança mão de uma coloquialidade revestida, variavelmente, por tonalidades instáveis e tensas, marca indelével de uma poeta plena, senhora de sua arte e dos seus limites, mas que, contudo, não se furta a explorá-los.
Um comentário:
Foi ótimo. O evento resultou muito bacana. Pena que vcs sumiram, estávamos na parte de trás da casa, no estacionamento, quando Luís disse que vcs se foram pela entrada lateral.
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