Recebi
ontem (06/01/11), logo nas primeiras horas da manhã, o livro Insistente Aprendiz, do Nelson Savioli,
um haijin bastante conhecido no meio haikaístico brasileiro. A obra, editada
pela Qualitymark, possui um projeto gráfico simples, porém bastante harmonioso,
com a ilustração da capa feita por Renata Figueiredo que se inspirou na obra de
Katsushita Hokusai, grande mestre gravurista e pintor japonês do período Edo
(nasceu em 1760 e faleceu em 1849), muito admirado ainda pelo mundo todo. A
obra em questão é Cachoeira de Onu.
Savioli
segue no rastro do tradicional haikai[i],
seu estilo, o defendido e difundido por mestres brasileiros do porte de Paulo
Franchetti e Teruko Oda, onde viceja a linguagem ao nível da fala comum em
tentativas de captação de mínimos instantes, máximos momentos proporcionados
pela natureza concreta, gerando poderosas imagens sem nunca suscitar quadros
definitivos, mais sugerindo que determinando; sensorial ao invés de palpável:
Mãos
calejadas –
a
andorinha de papel
parece
voar.
Leio
esse haikai com a mesma alegria e estado de espírito com que li e me apaixonei
por um famoso poema de Arakida Moritake:
A
flor que caiu
alça
vôo de volta ao ramo:
uma
borboleta.
Gosto
tanto desse haikai de Moritake que, na segunda edição do meu livro Silêncios,
em um haibun dedicado à minha filha, Flora, procuro inverter a ação sugerida
pela imagem, oferecendo um contraponto e ao mesmo tempo uma mudança de
perspectiva, se lidos em sequência:
Borboletas
são flores
que
afinal foram voar –
voa,
minha flor!
Nos
três haikais o centro dos poemas está na ação, no ato de voar, sejam
borboletas, folha desprendida do galho ou a andorinha materializada pela
habilidade de um mestre em origami, a arte japonesa de dobrar o papel dando a
ele a forma ou a representação de seres ou objetos, sem cortes ou colagens.
Como
o haikai tradicional tem a natureza por berço, Insistente Aprendiz está
disposto em quatro capítulos, cada um determinado por kigos que indicam a
estação do ano em que ele foi escrito. Desse modo, o haikai da andorinha,
mostrado anteriormente, está no capítulo da primavera, pois por ser uma ave
migratória, é sempre nessa estação, quando temos o início do período de calor,
que a ave retorna aos seus locais de costume e ficam até o final do verão.
Aqui,
um haikai de verão, cujo kigo (estação chuvosa) está bem fácil de identificar:
Na
ponta da bota,
a
manchete do jornal.
Estação
chuvosa.
Aqui,
um de outono, cujo kigo (vento) também está bem fácil de identificar:
Lavoura
deserta.
O
vento é música nas
franjas
do espantalho.
Agora,
um haikai de inverno, cujo kigo refere-se a uma planta (azaleia) que floresce
no inverno:
Enfim
amanhece.
O
vigilante e a azaleia
sem
trocar palavra.
Além
desses quatro capítulos, um outro, composto de senryus, forma o livro. E o
senryu nada mais é que uma variação do haikai tradicional. Ambos possuem a
mesma estrutura, três versos, mas tratam de temáticas diferentes. Enquanto o
haikai tem a natureza como berço, o senryu trata de questões unicamente
humanas, em tom irônico ou satírico. Abaixo, uma boa ilustração para esse
exemplo:
Fogos
de artifício
brilham
no olho do bandido –
bateram
a sua carteira.
Todos
esses haikais aqui expostos são acompanhados de notas explicativas sobre a
natureza e concepção dos mesmos, descortinando o efêmero, o transitório que os mantém
sob véus que possibilitam ao leitor uma espécie de co-autoria. Esse artifício, no
meu modo particular de ver, substitui no haikai o que seria seu título, recurso
desnecessário e que, como afirma Paulo Franchetti[ii],
fracassa “pela atitude que explica quando os lemos com o título”.
Podemos
exemplificar a questão recorrendo à própria nota que desvenda para o leitor que
aquela andorinha é fruto das “mãos calejadas” de um artista do origami,
enquanto que, sem a nota explicativa, eu mesmo teria muita dificuldade de
identificar a ação ou sensação que proporcionou ao Savioli a criação. Diz ele
na nota: “O origami é a simplicidade materializada, com peças que tocam nossa
sensibilidade. Assistir à destreza do artista, dando vida ao papel, é um bônus
para o apreciador dessa arte”.
Sem
a explicação, minha imaginação peregrinaria por várias, inúmeras possibilidades
na tentativa (possivelmente vã) de desvendar os segredos, uma vez que na sua
tradição de cantar a natureza, o haikai apenas sugere. Desse modo, a minha
andorinha poderia ser qualquer outra coisa: desenho, escultura e outras tantas,
diversas coisas, menos um origami, talvez.
Vale
ressaltar que os haikais e senryus de Insistente Aprendiz podem, ou devem, ser
lidos primeiramente sem se tomar pé das suas notas explicativas, ocasião em que
o leitor buscará desvendar contemplativamente a obra. Após, se a curiosidade
falar mais alto, os bons haikais de Nelson Savioli poderão ser descortinados em
suas notas.
3 comentários:
Sem dúvida o "Insistente Aprendiz" de Nelson Savioli é um belo livro. Vejo nesta resenha de Gustavo Felicíssimo um reconhecimento daquele que é um dos melhores haijins de nossa geração.
Boníssima resenha!
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