terça-feira, 2 de junho de 2009

Anibal Beça: Tropicalmente Oriental

Há poucos dias recebi alguns livros do poeta amazonense Anibal Beça. Entre eles destaco “Folhas da Selva”, o único que pude ler até o momento, um livro todo constituído por formas de origem japonesa, onde se inserem inúmeros haicais, forma poética pela qual tenho especial interesse e venho estudando faz alguns anos, mais detalhadamente há pouco mais de seis meses. O fruto desse nosso estudo será a publicação de um livro-ensaio sobre o haicai na Bahia, previsto para vir a público ainda neste ano de 2009.
Mas nosso interesse aqui é o livro de Anibal. “Folhas da Selva”, no primeiro momento, nos impressionou pela quantidade de páginas, 358 no total, divididas em doze partes, e o que percebemos é uma poesia vibrante e equilibrada, totalmente alinhada ao cânone japonês, onde o poeta imprime imagens impressionantes, fruto de uma percepção e técnica aguçadas pelo total respeito e amor à natureza, berço do haicai. O poeta adota a espontaneidade em sua poesia, o karumi, aspecto cujo expediente resulta em fazer parecer que não há arte em sua arte, apesar desse recurso ser conseguido apenas ao custo de muito talento, extrema elaboração e anos de prática.
Como o haicai está intimamente ligado à vivência pessoal do poeta, nada mais natural que a natureza amazônica permeie recorrentemente todo o livro. E como apenas desse modo poderia ser, Anibal canta o que lhe é tão caro:

Vento de candura –
vai no vôo leve a lã
da sumaumeira.

ou ainda

De repente folhas
caminham em fila na trilha –
formigas tucandeiras.

“Folhas da Selva” ainda é composto por outras formas, uma delas é a renga, ainda pouco conhecida no Brasil. A estudiosa Rosa Clement define a renga como uma “forma de poesia que realça a arte da transição ao encadear, respectivamente, estrofes sazonais de três e dois versos escritos por dois ou mais autores”. Anibal Beça quebra essa regra ao compor uma renga solo: “Renga-solo de verão”, capítulo composto por sete poemas. Vejamos um deles, de forte apelo social, o segundo da série:

Sol do meio-dia –
o caramujo se abriga
sem pressa na concha.

Noite e dia ao relento
sob a marquise os sem-teto.

Anibal ainda cultiva o haibun, haicai precedido por prosa poética, destacada por José Marins como “um texto breve, enxuto, sem rebuscamentos, ao qual se acrescenta o haicai ou os haicais, no máximo três”; também o senryu, que nada mais é que um haicai de contornos cômicos, irônicos ou satíricos, trata do cotidiano, dos hábitos e atribulações do homem; poetrix, uma forma brasileira não original, totalmente devedora ao haicai, e que ainda não compreendemos; e ainda uma forma de haicai aclimatado ao modo de Guilherme de Almeida, um dos principais divulgadores do haicai no Brasil. Nesse modo de compor, o primeiro verso rima com o terceiro e ainda há uma rima interna entre a segunda e sétima sílabas do segundo verso, como neste:

Quando o gongo bate
é hora que aflora a espora
do galo em combate.

Por fim, resta-nos discorrer sobre o que no livro nos chamou mais a atenção, as excelentes rengas compostas a quatro mãos entre Anibal Beça e José Félix, poeta angolano radicado em Portugal. Falamos de “Chá das quatro”, compostas por “Palhas de outono”, “Galhos de inverno”, “Talos da primavera” e “Ramas de verão”, respectivamente, enfeixadas, cada uma, por 36 poemas, conforme proposto por Basho, em homenagem aos 36 poetas imortais do Japão.
Também chamadas de kasen, a poesia dos sábios, é marcada por uma sutil transição dos poetas, alternando a construção das estrofes. Um dos poetas faz o haicai 5/7/5 sílabas e o outro o seu link, o complemento, com 7/7 sílabas. Na transição, os poetas se referem ao link imediatamente anterior, o terceiro verso da primeira estrofe. Uma vez que um aspecto de certo tema foi usado, o poeta seguinte muda para outro aspecto desse mesmo assunto. É tudo tão sutil que impressiona. No poema a seguir, a primeira estrofe é de Anibal Beça e a segunda de José Félix:

Silêncio no lago –
o vento frio vai levando
o que voa leve.

A pétala de jasmim
desliza na borla da água.

E neste os poetas se invertem na construção:

Indo para a igreja
a beata olha para o céu –
Cruzeiro do Sul.

Na madrugada de outono
sons de sinos e cigarras.

Ficamos nós, que já conhecíamos alguma coisa da poesia de Anibal Beça mais alinhada ao cânone ocidental, maravilhados por conhecer essa sua outra face, a de haijin. Entretanto, observamos apenas que, para um livro ainda mais acessível, um glossário de termos e expressões amazonenses poderia vir a somar e ser muito útil à obra e ao leitor, ausência que não chega a prejudicar o belíssimo “Folhas da Selva”.

2 comentários:

Lívio Oliveira disse...

Gostei do blog e aderi, ainda mais porque vi Aníbal Beça por estas bandas de cá. Dê uma olhada, também, no meu: www.oteoremadafeira.blogspot.com
Abraço.

Jiddu Saldanha disse...

Bravos!
Ótimo ensaio sobre a obra de Aníbal Beça. Deve ser um livro extraordinário, gostaria que o texto incluísse alguma dica de como podemos adquirir este livro.
(Jiddu)