Mergulhando
a imaginação nos vermelhos Reinos feéricos e cabalísticos de Satã, lá onde
Voltaire faz sem dúvida acender a sua ironia rubra como tropical e sanguíneo cactos
aberto, encontrei um dia Baudelaire, profundo e lívido, de clara e
deslumbradora beleza, deixando flutuar sobre os ombros nobres a onda pomposa da
cabeleira ardentemente negra, onde dir-se-ia viver e chamejar uma paixão. (...)
A
boca, lasciva e violenta, rebelde, entreaberta num espasmo sonhador e
alucinado, tinha brusca e revoltada expressão dantesca e simbolizava aspirar,
sofregamente, anelantemente, intensos desejos dispersos e insaciáveis. (...)
Mas,
a sua atitude serena, concentrada, isolada de tudo, traía a meditação
absorvente, fundamental, que o encerrava transcendentemente no Mistério.
E
eu, então, murmurei-lhe, quase em segredo:
—
Charles, meu belo Charles voluptuoso e melancólico, meu Charles nonchalant, nevoento aquário de spleen, profeta muçulmano do Tédio, ó
Baudelaire desolado, nostálgico e delicado! Onde está aquela rara, escrupulosa
psicose de som, de cor, de aroma, de sensibilidade; a febre selvagem daqueles
bravios e demoníacos cataclismos mentais; aquela infinita e arrebatadora
Nevrose, aquela espiritual doença que te enervava e dilacerava? Onde está ela?
Os tesouros d'ouro e diamante, as pedrarias e marchetarias do Ganges, as
púrpuras e estrelas dos firmamentos indianos, que tu nababescamente possuíste,
onde estão agora? (...)
Ó
Baudelaire! Ó Baudelaire! Ó Baudelaire! Augusto e tenebroso Vencido!
Inolvidável Fidalgo de sonhos de imperecíveis elixires! Soberano Exilado do
Oriente e do Letes! Três vezes com dolência clamado pelas fanfarras plangentes
e saudosas da minha Evocação! Agora que estás livre, purificado pela Morte, das
argilas pecadoras, eu vejo sempre o teu Espírito errar, como veemente sensação
luminosa, na Aleluia fúlgida dos Astros, nas pompas e chamas do Setentrião,
talvez ainda sonhando, nos êxtases apaixonados do Sonho...
Cruz e Souza,
em Evocações (Edição póstuma - 1898).
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