quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O Centenário de Elizabeth Bishop e algum comentário sobre sua poesia


Estava relendo Elizabeth Bishop, em tradução de Paulo Henriques Britto, edição bilíngue da Cia das Letras, quando me dei conta de que há poucos dias, se estivesse viva, uma das mais expressivas poetas modernas de língua inglesa estaria completando 100 anos. Recorri às páginas especializadas em literatura na internet e percebi uma tímida e quase inexistente repercussão do fato no Brasil, país em que viveu bastante tempo, inspirando-a fortemente.

Muitos poemas de Bishop agradam, mas dois deles me impressionam sobremaneira: O Iceber Imaginário, poema que de tão belo dá nome ao compêndio que tenho em minhas mãos, e, Uma Arte, poderosa constatação existencial e, de certo modo, angustiada, sobre repetidas perdas (bens, lembranças, amores) que a poeta colecionou em sua vida. Mas esses dois poemas não refletem o que há de mais recorrente na obra da poeta norte amaricana, que é a sua capacidade de descrever lugares e animais, como em O Peixe; Posto de Gasolina; Manuelzinho, todos eles, bastante prosaicos, refletindo uma atitude relaxada frente à poesia, mais sensorial que rigorosa.
Um dos seus últimos poemas, concluído em 1979, Cadela Rosada, é um achado ilustrativo e metafórico. Alude sobre um episódio famoso, de 1962, quando se denunciou que mendigos cariocas estariam sendo assassinados pelo Esquadrão da Morte, que jogava os cadáveres no Rio da Guarda. Bishop identifica a cadela rosada com um mendigo e pergunta:

se estão fazendo isso com gente, os estúpidos,
com pernetas ou bípedes, sem escrúpulos,
o que não fariam com um quadrúpede?

Outra leitura desse poema é possível, pois em inglês, bitch (cadela) significa, também, prostituta, o que admite uma interpretação que vincula os acontecimentos da época à uma possível metaforização da condição feminina.

O Iceber Imaginário

O iceberg nos atrai mais que o navio,
mesmo acabando com a viagem.
Mesmo pairando imóvel, nuvem pétrea,
e o mar um mármore revolto.
O iceberg nos atrai mais que o navio:
Queremos esse chão vivo de neve,
mesmo com as velas do navio tombadas
qual neve indissoluta sobre a água.
Ó calmo campo flutuante,
sabes que um iceberg dorme em ti, e em breve
vai despertar e talvez pastar na tua neve?

Esta cena um marujo daria os olhos
pra ver. Esquece-se o navio. O iceberg
sobe e desce; seus píncaros de vidro
corrigem elípticas no céu.
Este cenário empresta a quem o pisa
uma retórica fácil. O pano leve
é levantado por cordas finíssimas
de aéreas espirais de neve.
Duelo de argúcia entre as alvas agulhas
e o sol.  O seu peso o iceberg enfrenta
no palco instável e incerto onde se assenta.

É por dentro que o iceberg se faceta.
Tal como jóias numa tumba
ele se salva para frente, e adorna
só a si, talvez também as neves
que nos assombram tanto sobre o mar.
Adeus, adeus, dizemos, e o navio
segue viagem, e as ondas se sucedem,
e as nuvens buscam um céu mais quente.
O iceberg seduz a alma
(pois os dois se inventam do quase invisível)
a vê-lo assim: concreto, ereto, indivisível.


Uma Arte

A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

Um comentário:

Fátima Santiago disse...

Se fosse tão simples assim: "A arte de perder não é nenhum mistério"! Com quem se aprende essa arte? Aliás, é possível? Belo poema.