sexta-feira, 18 de junho de 2010

Morre José Saramago, aos 87 anos

A notícia da morte de José Saramago, aos 87 anos, corre o mundo nesta sexta-feira. O que é pouco divulgado é o fato de que o escritor português iniciou sua carreira com um livro de poesia, Terra do Pecado (1947).
Prêmio Nobel de Literatura possuía autoridade para levantar sua voz tantas vezes contra as injustiças, a Igreja e os grandes poderes econômicos, tendo afirmado em 2008, durante apresentação em Madri de "As Pequenas Memórias", obra em que recorda sua infância entre os cinco e 14 anos, que: "Estamos afundados na merda do mundo e não se pode ser otimista. O otimista, ou é estúpido, ou insensível ou milionário", Afirmação impossível de ser contestada atualmente. Trata-se realmente de uma grande perda.

Abaixo, três poemas de Saramago.

Retrato do Poeta Quando Jovem

Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.


Science-fiction I

Talvez o nosso mundo se convexe
Na matriz positiva doutra esfera.

Talvez no interspaço que medeia
Se permutem secretas migrações.

Talvez a cotovia, quando sobe,
Outros ninhos procure, ou outro sol.

Talvez a cerva branca do meu sonho
Do côncavo rebanho se perdesse.

Talvez do eco dum distante canto
Nascesse a poesia que fazemos.

Talvez só amor seja o que temos,
Talvez a nossa coroa, o nosso manto.


Fala do velho do restelo ao astronauta

Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.

Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.

No Blog da Companhia da Letras, Luiz Schwarcz, editor do Saramago no Brasil, se despede do amigo com um texto que vale ser lido. Eis o link:
http://www.blogdacompanhia.com.br/2010/06/saudade-nao-tem-remedio/

2 comentários:

Neuzza Pinheiro disse...

a gente sempre sente tanto, Gustavo,
quando se vai pra sempre um homem desses
Tomara que sintam também, um dia, a nossa falta

um abraço

O Neto do Herculano disse...

Definitivamente, 2010 tem sido um ano triste para a literatura.