quinta-feira, 17 de março de 2011

O mito de Don Juan


Existem livros que nos embevecem, ora pelo rol de conhecimentos que nos proporcionam, ora pela mestria com que o autor conduz o texto, embora nem sempre se consiga unir estilo e conhecimento sem alguma perda. No caso de Do Penhor à Pena: estudos do mito de Don Juan, desdobramentos e equivalências, de Jorge de Souza Araújo, Editus, 2005, as duas situações ocorrem simultaneamente. Nessa que deve ser a maior obra de análise do tema e obras donjuanescas relacionadas, Jorge dá um show em relação à estilística e profundidade na análise a partir, naturalmente, do Don Juan Tenório, de Tirso de Molina, e sua peça trágica El burlador de Sevilla y el convidado de piedra, publicado originalmente por volta de 1630.
Sob o ponto de vista mítico donjuanesco, Jorge de Souza Araújo estuda o seu percurso no teatro, poesia, ficção e ensaio, perpassando por Molière e Guerra Junqueiro, tão díspares entre si, até seu equivalente Casanova. Para tanto, não poupa elogios a Byron ou Baudelaire e seu “Don Juan no Inferno”, nem ao Pushkin em “O Convidado de Pedra”, como também não se conteve frente ao “120 dias de Sodoma”, afirmando que nenhuma qualidade literária possui o livro de Sade.
Além das análises, Jorge também nos brinda, ao final do livro, com um anexo exclusivamente de poemas donjuanescos de autores de língua portuguesa, entre os quais destaco Sombra de Don Juan, do Álvares de Azevedo e o Don Juan de Manuel Bandeira.

Don Juan
(Manuel Bandeira)

Ser de eleição em cujo olhar a natureza
Acendeu a fagulha altiva que fascina,
Tu trazias aquela aspiração divina
De realizar na vida a perfeita beleza.

Creste achá-la no amor, na indizível surpresa
Da posse - o sonho mau que desvaira e ilumina.
Vencido, escarneceste a virtude mofina...
Tua moral não foi a da massa burguesa.

Morreste incontentado, e cada seduzida
Foi um ludíbrio à tua essência. Em tais amores
Não encontraste nunca o sentido da vida.

Tua alma era do céu e perdeu-se no inferno...
Para os poetas e para os graves pensadores
Da imortal ânsia humana és o símbolo eterno.


Don Juan no Inferno
(Charles Baudelaire)

Quando ao mundo da treva desceu Don Juan,
Assim que a Caronte o óbolo pagou,
Um mendigo sombrio, mirada malsã
E braço vingador, cada remo tomou.

Com as roupas abertas e os seios de fora,
Um bando de mulheres, na negra manhã,
Rebanho sensual que matadouro implora,
Mugia atrás do herói num lânguido cancã.

Leporelo, a zombar, o salário cobrava.
O velho Don Luís, totalmente tantã,
Apontava a um morto, que ali passava,
O filho que jogou na lama o seu clã.

Histérica de dor, a casta e magra Elvira,
Ao marido traidor que era o seu afã,
Suplicava um último olhar sem mentira,
Um sorriso com a velha pose de galã.

O gigante de pedra, visão imponente,
Assomava à proa tal Leviatã,
Mas o calmo herói, a tudo indiferente,
Olhava sem temor o reino de Satã.

Tradução: Jorge Pontual

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