Existem livros que nos embevecem,
ora pelo rol de conhecimentos que nos proporcionam, ora pela mestria com que o
autor conduz o texto, embora nem sempre se consiga unir estilo e conhecimento sem
alguma perda. No caso de Do Penhor à
Pena: estudos do mito de Don Juan, desdobramentos e equivalências, de Jorge
de Souza Araújo, Editus, 2005, as duas situações ocorrem simultaneamente. Nessa
que deve ser a maior obra de análise do tema e obras donjuanescas relacionadas, Jorge dá um show em relação à
estilística e profundidade na análise a partir, naturalmente, do Don Juan Tenório, de Tirso de Molina, e
sua peça trágica El burlador de Sevilla y
el convidado de piedra, publicado originalmente por volta de 1630.
Sob
o ponto de vista mítico donjuanesco,
Jorge de Souza Araújo estuda o seu percurso no teatro, poesia, ficção e ensaio,
perpassando por Molière e Guerra Junqueiro, tão díspares entre si, até seu
equivalente Casanova. Para tanto, não poupa elogios a Byron ou Baudelaire e seu
“Don Juan no Inferno”, nem ao Pushkin em “O Convidado de Pedra”, como também
não se conteve frente ao “120 dias de Sodoma”, afirmando que nenhuma qualidade literária possui o livro
de Sade.
Além
das análises, Jorge também nos brinda, ao final do livro, com um anexo
exclusivamente de poemas donjuanescos
de autores de língua portuguesa, entre os quais destaco Sombra de Don Juan, do
Álvares de Azevedo e o Don Juan de Manuel Bandeira.
Don Juan
(Manuel
Bandeira)
Ser de eleição em cujo olhar a natureza
Acendeu a fagulha altiva que fascina,
Tu trazias aquela aspiração divina
De realizar na vida a perfeita beleza.
Creste achá-la no amor, na indizível surpresa
Da posse - o sonho mau que desvaira e ilumina.
Vencido, escarneceste a virtude mofina...
Tua moral não foi a da massa burguesa.
Morreste incontentado, e cada seduzida
Foi um ludíbrio à tua essência. Em tais amores
Não encontraste nunca o sentido da vida.
Tua alma era do céu e perdeu-se no inferno...
Para os poetas e para os graves pensadores
Da imortal ânsia humana és o símbolo eterno.
Acendeu a fagulha altiva que fascina,
Tu trazias aquela aspiração divina
De realizar na vida a perfeita beleza.
Creste achá-la no amor, na indizível surpresa
Da posse - o sonho mau que desvaira e ilumina.
Vencido, escarneceste a virtude mofina...
Tua moral não foi a da massa burguesa.
Morreste incontentado, e cada seduzida
Foi um ludíbrio à tua essência. Em tais amores
Não encontraste nunca o sentido da vida.
Tua alma era do céu e perdeu-se no inferno...
Para os poetas e para os graves pensadores
Da imortal ânsia humana és o símbolo eterno.
Don Juan no Inferno
(Charles
Baudelaire)
Quando
ao mundo da treva desceu Don Juan,
Assim
que a Caronte o óbolo pagou,
Um
mendigo sombrio, mirada malsã
E
braço vingador, cada remo tomou.
Com
as roupas abertas e os seios de fora,
Um
bando de mulheres, na negra manhã,
Rebanho
sensual que matadouro implora,
Mugia
atrás do herói num lânguido cancã.
Leporelo,
a zombar, o salário cobrava.
O
velho Don Luís, totalmente tantã,
Apontava
a um morto, que ali passava,
O
filho que jogou na lama o seu clã.
Histérica
de dor, a casta e magra Elvira,
Ao
marido traidor que era o seu afã,
Suplicava
um último olhar sem mentira,
Um
sorriso com a velha pose de galã.
O
gigante de pedra, visão imponente,
Assomava
à proa tal Leviatã,
Mas
o calmo herói, a tudo indiferente,
Olhava
sem temor o reino de Satã.
Tradução: Jorge Pontual
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