Pitada de pitacos
para a receita de Gustavo Felicissimo:“Dendê no haikai – Aspectos do Haikai na Bahia”,
tese em andamento aumentativo
[Tomo II]
Carlos Verçosa
“Sempre
é o espírito que acerta,
o
espírito que mata. Pontaria
é um talento
todo na ideia."
GUIMARÃES ROSA (1908-1967)
[in Grande Sertão: Veredas]
“As
fontes da poesia são:
espontaneidade,
intuição
e
aperfeiçoamento espiritual.
Elas
se alcançam pela visão direta
e
não na projeção do ego
num bom
hokku.”
MATSUO BASHÔ (1644-1694)
Uns e Outros
Naturalmente, na Bahia, os primeiros
nomes importantes a serem lembrados para a viagem que você fará nesta quase
centenária estrada do haikai são os de Oldegar
Vieira (1915-2006) e Abel Pereira
(1908-2006), além do pioneiríssimo Afrânio
Peixoto (1876-1947).
Aqueles pelo elevado grau alcançado
em sua arte haikai, e, este, pelas entradas e bandeiras do haikai no Brasil e
nas Américas, demonstrando sua visão aguçada e avançada para o seu tempo.
Mas claro
que vale documentar, também, a existência de todos os demais autores que se
dedicaram ou que se dedicam ao haikai por aqui, ainda que esporadicamente.
Trata-se,
naturalmente, de uma lista incompleta, pois muitos são os apontamentos e
registros existentes, tanto de haikaistas confessos como daqueles que o
praticam sem sabê-lo ou que se aproximam do espírito haikai.
Daí, que irei citar, inicialmente, os primeiros nomes que me
ocorrem, prometendo enviar-lhe novas dicas sempre que as tiver da baianada.
Uns assim, outros assado. Não importa. O importante não é
apenas a seta no centro do alvo. Às vezes o tiro irregular do arqueiro é mais
importante por preservar a mosca.
[Na arte cavalheiresca do arqueiro das palavras precisas e
certeiras que vêm das minas gerais – e das veredas: grande sertão – a lição de
boa pontaria se justificava porque ali as flechas de chumbo eram atiradas com o
espírito.]
Vale o repeteco da sabedoria da epígrafe:
Outra flecha nonada do nosso maior
escritor:
"O silêncio, é a gente mesmo muito."
O nome da rosa dessa boa pontaria é teoria que só se consegue
na prática, na muita prática. Assim, também com o haikai.
[Aliás, acho que vale a pena lembrar: Guimarães Rosa foi também haikaista. E dos bons. Só não entrou na
primeira edição de “Oku – Viajando com
Bashô” porque não obtive autorização para tal.]
Explico. À época, 1995, tentei descolar uma cópia do primeiro
livro de Rosa, “Magma” (premiado no
concurso da Academia Brasileira de Letras em 1936).
Existiam,
confirmados, apenas três exemplares datilografados pelo autor – um deles em
mãos do escritor e bibliófilo carioca Plinio
Doyle (1906-2000).
[Era aquele que promovia os famosos Sabadoyles, reunindo escritores na sua casa todo sábado – entre doces e salgados – para molhar as palavras e jogar conversa fora junto às boas vibrações dos quase 30 mil livros, fascículos e raridades da sua biblioteca.]
Plinio Doyle me confirmou, para minha alegria, que
havia, realmente, uma seção específica de haikais no primeiro livro de Rosa – “Magma” – que, apesar de premiado pela
ABL em 1936, sua existência e ineditismo – lendário e mal justificado – eram um
mistério até então.
Porém – há
sempre um porém – Doyle alegou que,
por decisão dos familiares de Guimarães
Rosa, enquanto persistisse uma pendenga judicial entre a eles e a editora
(que pretendia incluir “Magma” na
obra roseana completa), nada do seu conteúdo poderia ser revelado.
Curiosidade
saciada, pesquisa que deu frutos, dica confirmada, mas, como deixar Rosa fora do livro?
Cheguei
mesmo a pensar em publicar haikais que eu havia ‘pescado’ na sua obra (ele
passou efetivamente a inseri-los no contexto da sua prosa poética já no estouro
da boiada das palavras de “Sagarana”),
mas desisti.
Resultado: “Oku” saiu sem a necessária presença de Guimarães Rosa entre os escritores
brasileiros identificados como haikaistas e, um ano depois (1997), pendenga
judicial acordada, eis “Magma”,
finalmente nas livrarias de todo o país.
O livro da poesia de estreia de Guimarães Rosa (publicado tardiamente, 41 anos depois, em 1967)
trazia todos os haikais que eu tinha escutado de Plinio Doyle pelo telefone e alguns mais.
Fiquei de bem com ele, que gostou e escreveu palavras
carinhosas sobre meu livro, mas de mal com os leitores de “Oku” pela omissão dessa informação importante. E, principalmente,
de mal comigo mesmo pela vacilada de não ter incluído pelo menos os haikais
roseanos identificados e dispersos nos seus demais livros.
[“Magma” foi, portanto, nas minhas
contas, o terceiro livro de haikais escrito no Brasil, considerando a
obra antecipatória de Afrânio Peixoto,
in “O ‘haikái’ japonês ou epigrama lírico
– Ensaio de naturalização” (revista Exselsior,
jan. 1928), reproduzida no livro “Missangas”
(1931) e a publicação do livro “Haikais”
(1933), do escritor paulista Waldomiro
Siqueira Jr.]
Olha aí
alguns haikais retirados das páginas magmas deste haikaista brasileiro
pioneiro, que foi o grande Guimarães
Rosa:
Turismo sentimental
Viajei
toda a Ásia
ao
alisar o dorso
da
minha gata angorá...
Imensidão
Cheiro
salgado
de
um cavalo suado.
Quem
galopa no mar?…
Romance - I
No
cinzeiro cheio
de
cigarros fumados,
os
restos de uma carta…
Turbulência
O
vento experimenta
o
que irá fazer
com
sua liberdade…
Mundo pequeno
O
albatroz prepara
breve
passeio
de
Pólo a Pólo…
Como quem procura
acha, basta mergulhar de cabeça na obra roseana, pois que há muitas sacadas,
aqui e ali, onde haikais nacarados estão incrustados na concha dos textos,
esperando só serem sacados para brilharem. Exemplos:
é
num minuto de segundo
que
a paineira branca
se
enfolha
*
um
vaga-lume
lanterneiro
que riscou
um
psiu de luz
*
Deitado
no chão, fofo de tantas chuvas
Acompanho
as pontas de cipó que oscilam,
O
respirar das folhas…
*
entre
as folhas
de
um livro-de-reza
um
amor perfeito cai
Isso aí. Como ensina esta rosa do Rosa:
“Atirei. Atiravam. Isso não
é isto?
Nonada. A aragem.”
Resumindo. O poeta traça o dô (caminho) do haikai pelas sendas que fazem o cotidiano e busca a
poesia na esperança de que seja simples, sensível, iluminada.
Mas, errante navegante, o poeta erra. Erra mais e mais, muito
mais, do que acerta. Há sempre uma pedra no meio do caminho do poeta.
Por isso, desconfiado das palavras que escreve – que não
conseguem transportar fielmente nem a natureza e nem própria sensibilidade
entre as pedras de sua trilha – ao poeta
resta apenas continuar praticando, continuar aprendendo. Experimentando
sempre.
Vale a tentativa. A procura da jóia do trigo em meio ao joio.
Algumas vezes, poucas vezes, brota um bom haikai no terreno
árido dessa longa estrada.
Mas o poeta não se apega a ele: sai logo em busca de outro.
De uns e outros.
////// C’EST FINI LE TOME II //////
7 comentários:
Professor Carlos e Gustavo, que legal essa iniciativa, heim?!
Professor, um "quase haikai" não seria um "haiquase"?
Abraços
... lí o texto denovo. tá tudo mais leve. que prazer!
... e folha por folha
despetalou-se
guimarães rosa...
Muito interessante. Dá vontade de tentar escrever. Mas isso fica para os artistas. Como tu. Eu vou para o rio. Neste momento exato. Agorinha.Pedro Montalvão.
Puxa, amei!
É sempre um prazer passar por aqui...
Que post incrível. Gostei especialmente disso: “As fontes da poesia são:
espontaneidade, intuição
e aperfeiçoamento espiritual.
Elas se alcançam pela visão direta
e não na projeção do ego
num bom hokku.”
Só podia ser BASHÔ.
Vou compartilhar no facebook. Abraço!
Aiquase
hokku
haiku
haikai
haicai
aiquase:
bashô um cammings
em meu vodu
Heitor Brasileiro filho
(Este poema da título ao meu livro, ainda inédito, mas conhecido por vários escritores amigos meus (e solicitado por Piligra).O título original seria Hai-kai. Divulguei o nome antes do lançamento, coicidência ou não, um livro foi lançado por dois escritores em Salvador.Minha frustração foi amenizada quando descobi que o poeta Capinam já havia utilizado a expressão "hai-quase" num prefácio de seu livro. Daí a opção pelo brasileiríssimo "Aiquase", com poemas dessa natureza.Mas,deliberadamente,sem a pretensão de atigir o cânon do Haicai. O poema LIRIUM, integra esse livro.
LIRIUM
quem
bem me
quer
não me
despe
ta
la
Grande abraço ao Gustavo e ao Mither e parabéns ao Carlos.
Heitor
Errata:
1)O título original Seria Hai-Quase (e não Hai-Kai);
2)O nome do poeta norte-americano é cummings (de e.e. cummings, assim mesmo, tudo em minúsculas, como ele fazia questão de grafar), distraidamente, grafei "cammings", conforme a pronúncia;
3)Não consegui ordenar o despe/ta/la, do poema LIRIUM, na sua forma original (com "ta" e o "la" logo abaixo "pe".
Desconsiderem cochilo e estamos "acertatos".
Grato,
Heitor
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