Morreu na manhã de hoje (25), vítima de complicações renais e infecção generalizada decorrentes do diabetes, o poeta, compositor, teatrólogo e jornalista amazonense Anibal Beça, de 62 anos.
De acordo com o filho do escritor, Ricardo Beça, que também é médico e acompanhou o pai na luta contra o diabetes, Aníbal foi internado por conta de complicações renais, que culminaram em uma infecção generalizada. "Todos os procedimentos médicos foram realizados, mas infelizmente ele não resistiu", disse. Foi desse modo que recebi a notícia da morte do poeta, através do portal amazônia, da globo.com.
De acordo com o filho do escritor, Ricardo Beça, que também é médico e acompanhou o pai na luta contra o diabetes, Aníbal foi internado por conta de complicações renais, que culminaram em uma infecção generalizada. "Todos os procedimentos médicos foram realizados, mas infelizmente ele não resistiu", disse. Foi desse modo que recebi a notícia da morte do poeta, através do portal amazônia, da globo.com.
Poeta tão bom, homem tão humano, por isso mesmo é que trata-se de uma tremenda perda, que nos entristece, e sobre a qual, neste momento, temos pouca, quase nenhuma condição de refletir. Faço minha homenagem ao Anibal publicando um artigo (que ele gostava muito) que escrevi sobre os seus haicais.
Vá com Deus poeta, leva consigo o silêncio das borboletas...
Entrevista de Anibal Beça, concedida a Rodrigo Leão: http://www.geocities.com/SoHo/Lofts/1418/aniball.htm
Anibal Beça: tropicalmente oriental
Anibal Beça: tropicalmente oriental
Gustavo Felicíssimo
Há poucos dias recebi alguns livros do poeta amazonense Anibal Beça. Entre eles destaco “Folhas da Selva”, o único que pude ler até o momento, um livro todo constituído por formas de origem japonesa, onde se inserem inúmeros haicais, forma poética pela qual tenho especial interesse e venho estudando faz alguns anos, mais detalhadamente há pouco mais de seis meses. O fruto desse nosso estudo será a publicação de um livro-ensaio sobre o haicai na Bahia, previsto para vir a público ainda neste ano de 2009.
Mas nosso interesse aqui é o livro de Anibal. “Folhas da Selva”, no primeiro momento, nos impressionou pela quantidade de páginas, 358 no total, divididas em doze partes, e o que percebemos é uma poesia vibrante e equilibrada, totalmente alinhada ao cânone japonês, onde o poeta imprime imagens impressionantes, fruto de uma percepção e técnica aguçadas pelo total respeito e amor à natureza, berço do haicai. O poeta adota a espontaneidade em sua poesia, o karumi, aspecto cujo expediente resulta em fazer parecer que não há arte em sua arte, apesar desse recurso ser conseguido apenas ao custo de muito talento, extrema elaboração e anos de prática.
Como o haicai está intimamente ligado à vivência pessoal do poeta, nada mais natural que a natureza amazônica permeie recorrentemente todo o livro. E como apenas desse modo poderia ser, Anibal canta o que lhe é tão caro:
Vento de candura –
vai no vôo leve a lã
da sumaumeira.
ou ainda
De repente folhas
caminham em fila na trilha –
formigas tucandeiras.
“Folhas da Selva” ainda é composto por outras formas, uma delas é a renga, ainda pouco conhecida no Brasil. A estudiosa Rosa Clement define a renga como uma “forma de poesia que realça a arte da transição ao encadear, respectivamente, estrofes sazonais de três e dois versos escritos por dois ou mais autores”. Anibal Beça quebra essa regra ao compor uma renga solo: “Renga-solo de verão”, capítulo composto por sete poemas. Vejamos um deles, de forte apelo social, o segundo da série:
Sol do meio-dia –
o caramujo se abriga
sem pressa na concha.
Noite e dia ao relento
sob a marquise os sem-teto.
Anibal ainda cultiva o haibun, haicai precedido por prosa poética, destacada por José Marins como “um texto breve, enxuto, sem rebuscamentos, ao qual se acrescenta o haicai ou os haicais, no máximo três”; também o senryu, que nada mais é que um haicai de contornos cômicos, irônicos ou satíricos, trata do cotidiano, dos hábitos e atribulações do homem; poetrix, uma forma brasileira não original, totalmente devedora ao haicai, e que ainda não compreendemos; e ainda uma forma de haicai aclimatado ao modo de Guilherme de Almeida, um dos principais divulgadores do haicai no Brasil. Nesse modo de compor, o primeiro verso rima com o terceiro e ainda há uma rima interna entre a segunda e sétima sílabas do segundo verso, como neste:
Quando o gongo bate
é hora que aflora a espora
do galo em combate.
Por fim, resta-nos discorrer sobre o que no livro nos chamou mais a atenção, as excelentes rengas compostas a quatro mãos entre Anibal Beça e José Félix, poeta angolano radicado em Portugal. Falamos de “Chá das quatro”, compostas por “Palhas de outono”, “Galhos de inverno”, “Talos da primavera” e “Ramas de verão”, respectivamente, enfeixadas, cada uma, por 36 poemas, conforme proposto por Basho, em homenagem aos 36 poetas imortais do Japão.
Também chamadas de kasen, a poesia dos sábios, é marcada por uma sutil transição dos poetas, alternando a construção das estrofes. Um dos poetas faz o haicai 5/7/5 sílabas e o outro o seu link, o complemento, com 7/7 sílabas. Na transição, os poetas se referem ao link imediatamente anterior, o terceiro verso da primeira estrofe. Uma vez que um aspecto de certo tema foi usado, o poeta seguinte muda para outro aspecto desse mesmo assunto. É tudo tão sutil que impressiona. No poema a seguir, a primeira estrofe é de Anibal Beça e a segunda de José Félix:
Silêncio no lago –
o vento frio vai levando
o que voa leve.
A pétala de jasmim
desliza na borla da água.
E neste os poetas se invertem na construção:
Indo para a igreja
a beata olha para o céu –
Cruzeiro do Sul.
Na madrugada de outono
sons de sinos e cigarras.
Ficamos nós, que já conhecíamos alguma coisa da poesia de Anibal Beça mais alinhada ao cânone ocidental, maravilhados por conhecer essa sua outra face, a de haijin. Entretanto, observamos apenas que, para um livro ainda mais acessível, um glossário de termos e expressões amazonenses poderia vir a somar e ser muito útil à obra e ao leitor, ausência que não chega a prejudicar o belíssimo “Folhas da Selva”.
Há poucos dias recebi alguns livros do poeta amazonense Anibal Beça. Entre eles destaco “Folhas da Selva”, o único que pude ler até o momento, um livro todo constituído por formas de origem japonesa, onde se inserem inúmeros haicais, forma poética pela qual tenho especial interesse e venho estudando faz alguns anos, mais detalhadamente há pouco mais de seis meses. O fruto desse nosso estudo será a publicação de um livro-ensaio sobre o haicai na Bahia, previsto para vir a público ainda neste ano de 2009.
Mas nosso interesse aqui é o livro de Anibal. “Folhas da Selva”, no primeiro momento, nos impressionou pela quantidade de páginas, 358 no total, divididas em doze partes, e o que percebemos é uma poesia vibrante e equilibrada, totalmente alinhada ao cânone japonês, onde o poeta imprime imagens impressionantes, fruto de uma percepção e técnica aguçadas pelo total respeito e amor à natureza, berço do haicai. O poeta adota a espontaneidade em sua poesia, o karumi, aspecto cujo expediente resulta em fazer parecer que não há arte em sua arte, apesar desse recurso ser conseguido apenas ao custo de muito talento, extrema elaboração e anos de prática.
Como o haicai está intimamente ligado à vivência pessoal do poeta, nada mais natural que a natureza amazônica permeie recorrentemente todo o livro. E como apenas desse modo poderia ser, Anibal canta o que lhe é tão caro:
Vento de candura –
vai no vôo leve a lã
da sumaumeira.
ou ainda
De repente folhas
caminham em fila na trilha –
formigas tucandeiras.
“Folhas da Selva” ainda é composto por outras formas, uma delas é a renga, ainda pouco conhecida no Brasil. A estudiosa Rosa Clement define a renga como uma “forma de poesia que realça a arte da transição ao encadear, respectivamente, estrofes sazonais de três e dois versos escritos por dois ou mais autores”. Anibal Beça quebra essa regra ao compor uma renga solo: “Renga-solo de verão”, capítulo composto por sete poemas. Vejamos um deles, de forte apelo social, o segundo da série:
Sol do meio-dia –
o caramujo se abriga
sem pressa na concha.
Noite e dia ao relento
sob a marquise os sem-teto.
Anibal ainda cultiva o haibun, haicai precedido por prosa poética, destacada por José Marins como “um texto breve, enxuto, sem rebuscamentos, ao qual se acrescenta o haicai ou os haicais, no máximo três”; também o senryu, que nada mais é que um haicai de contornos cômicos, irônicos ou satíricos, trata do cotidiano, dos hábitos e atribulações do homem; poetrix, uma forma brasileira não original, totalmente devedora ao haicai, e que ainda não compreendemos; e ainda uma forma de haicai aclimatado ao modo de Guilherme de Almeida, um dos principais divulgadores do haicai no Brasil. Nesse modo de compor, o primeiro verso rima com o terceiro e ainda há uma rima interna entre a segunda e sétima sílabas do segundo verso, como neste:
Quando o gongo bate
é hora que aflora a espora
do galo em combate.
Por fim, resta-nos discorrer sobre o que no livro nos chamou mais a atenção, as excelentes rengas compostas a quatro mãos entre Anibal Beça e José Félix, poeta angolano radicado em Portugal. Falamos de “Chá das quatro”, compostas por “Palhas de outono”, “Galhos de inverno”, “Talos da primavera” e “Ramas de verão”, respectivamente, enfeixadas, cada uma, por 36 poemas, conforme proposto por Basho, em homenagem aos 36 poetas imortais do Japão.
Também chamadas de kasen, a poesia dos sábios, é marcada por uma sutil transição dos poetas, alternando a construção das estrofes. Um dos poetas faz o haicai 5/7/5 sílabas e o outro o seu link, o complemento, com 7/7 sílabas. Na transição, os poetas se referem ao link imediatamente anterior, o terceiro verso da primeira estrofe. Uma vez que um aspecto de certo tema foi usado, o poeta seguinte muda para outro aspecto desse mesmo assunto. É tudo tão sutil que impressiona. No poema a seguir, a primeira estrofe é de Anibal Beça e a segunda de José Félix:
Silêncio no lago –
o vento frio vai levando
o que voa leve.
A pétala de jasmim
desliza na borla da água.
E neste os poetas se invertem na construção:
Indo para a igreja
a beata olha para o céu –
Cruzeiro do Sul.
Na madrugada de outono
sons de sinos e cigarras.
Ficamos nós, que já conhecíamos alguma coisa da poesia de Anibal Beça mais alinhada ao cânone ocidental, maravilhados por conhecer essa sua outra face, a de haijin. Entretanto, observamos apenas que, para um livro ainda mais acessível, um glossário de termos e expressões amazonenses poderia vir a somar e ser muito útil à obra e ao leitor, ausência que não chega a prejudicar o belíssimo “Folhas da Selva”.
Um comentário:
Bonito texto, Gustavo. O Aníbal escrevia leve como uma pena mas era capaz de estremecer montanhas. Bom que lhe disse tudo isto em vida.
Um abraço,
David Rodrigues
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