quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Irmandade da Boa Morte: Poesia e Fé

Com informações do blog da jornalista Alzira Costa e do jornal Correio da Bahia

A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte surgiu nas senzalas, há cerca de 150 anos e tinha como objetivo alforriar negros ou dar-lhes fuga.
Com o fim da escravidão, as senhoras que participavam do movimento se aproximaram da Igreja, fundando a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. A festa é comemorada em Cachoeira, cidade histórica do recôncavo baiano e monumento nacional, no período de 13 a 15 de agosto.
A festa de Nossa Senhora da Boa Morte é considerada a mais importante manifestação sincrética religiosa da Bahia, une rituais católicos com elementos do culto afro-brasileiro. Os tradicionais festejos da Irmandade, composta por mulheres afrodescendentes com idade acima de quarenta anos, começa no dia 13, com o ritual do traslado do esquife de Nossa Senhora, às 18 horas, com saída da Capela d'Ajuda, com destino à capela da Irmandade, na Rua 13 de Maio, onde haverá uma celebração religiosa em memória das falecidas. Nesse dia, as irmãs vestem-se de branco em sinal de luto. Em seguida, participam da Ceia Branca, com familiares e convidados. A ceia é composta por alimentos à base de peixes, frutos do mar, pão e vinho. Os pratos não levam azeite de dendê, por isso esse nome.
No dia 14, segundo dia da festa, as integrantes da Irmandade usam a beca com saia preta plissada, blusa branca bordada, cobrem os cabelos com um lenço branco bordado, chamado biôco. Elas usam também um chale de veludo que possui duas faces: uma preta e outra vermelha. Durante o ritual da procissão, que simboliza o enterro de Nossa Senhora, as irmãs usam o chale com a face preta à mostra e percorrem as principais ruas do centro histórico de Cachoeira, seguida de filarmônicas que tocam marchas fúnebres.
No dia 15, o último dia das celebrações públicas, acontece a grande procissão da Assunção de Nossa Senhora. O cortejo sai da igreja da irmandade após a missa, marcada para as 8 horas. Nesse dia, considerado o ponto alto da programação, as integrantes da Irmandade vestem a beca, usam, jóias e deixam à mostra as contas de seus orixás, além de deixar a face vermelha do xale exposta. Essa manifestação é marcada pelas cores das flores que decoram o andor de Nossa Senhora da Glória, foguetório e muita alegria. Para as irmãs é o dia da Ressurreição de Nossa Senhora e por isso é festejado com muita alegria. Após a procissão, as irmãs trocam o traje de gala por saias coloridas e blusa branca. Todas participam do samba de roda em homenagem à Nossa Senhora. A irmandade oferece um farto banquete com feijoada, assados e saladas.

Estive nesta festa participando de um recital, se não me engano, em 2004, atendendo ao convite do poeta e amigo João de Moraes Filho. Foi para mim um grande acontecimento. Saí de Cachoeira acompanhado por fortes impressões. Meu corpo não calava, minha mente não calava, era um turbilhão que apenas cessou, parcialmente, quando parei para escrever alguns poemas, todos eles marcados pelas fortes imagens que ainda carrego daquele local.
Esses poemas, um tempo depois, foram traduzidos para o francês e publicados na terra de Rimbaud por Pedro Vianna, graças à indicação do meu querido amigo, Miguel Carneiro. São cinco poemas no total, dos quais trago três para que conheçam.

Poemas à beira do rio
Poèmes au bord de la rivière

II
Sentada à margem do rio imenso
imersa em suas lembranças
a negra de cabelos brancos,
Senhora dos segredos dos cântaros,
ainda é uma criança:
brinca de roda e cabra-cega
enquanto ignora o tempo

II
Assise au bord de la rivière immense
immergée dans sa souvenance
la femme noire aux cheveux blancs,
La Dame aux arcanes des cruches,
est encore une enfant:
elle joue à colin-maillard elle danse la ronde
pendant qu'elle ignore le temps

III
Vejo o rio cortando a terra
e ao longe o carreiro ligeiro
apressado bate o mancá,
fuma um Paraguassu
e vê a cidade no rio;
tão linda em dia de festa.
Enigmática para os forasteiros
a urbe e o rio navegam
no espaço do tempo mistério,
num périplo em torno da morte.

III
Je vois la rivière qui fend la terre
et au loin le charretier rapide
pressé fait grincer les moyeux
fume un cigare Paraguassu
et dans la rivière voit la ville
si belle les jours de fête.
La rivière et le bourg
énigmatique pour l'étranger naviguent
dans l'espace du temps mystère
dans un périple autour de la mort.

IV
As pessoas se banham nas águas do rio
como se banhassem o próprio rio,
acariciando-o com seus corpos quentes.
Vigoroso, ele leva consigo o que a gente não quer,
não rejeita nem o que já não é,
nasce limpo, morre sujo,
reflexo das pessoas que também não são.

IV
Les gens se baignent dans les eaux de la rivière
comme s’ils baignaient la rivière elle-même,
la caressant de leurs corps chauds.
Vigoureuse, elle emporte en son sein ce dont on ne veut pas,
elle ne rejette même pas ce qui n’est plus,
elle naît propre, elle meurt sale
reflet des gens qui eux non plus ne sont pas.
Foto: Ceia Branca, Jomar Lima

Um comentário:

Ramon Barbosa Franco disse...

Uma energia, uma festa que eu gostaria de presenciar.