quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Duas vezes Salomé

Nos poemas abaixo, Myriam Fraga e Plínio de Almeida, poetas de origem baiana, revisitam, cada um a seu modo, a passagem bíblica na qual Salomé, uma linda princesa, enteada do Rei Heródes, cujo amor pelo apóstolo João Batista não era correspondido, “enfeitiça” o Rei com a Dança dos sete Véus. Heródes, enlouquecido de paixão, diz a ela que peça o que quiser. Salomé, influenciada por sua mãe, exigiu a cabeça do profeta numa bandeja de prata. Vendo a cabeça de João Batista na bandeja, horrorizada, e sinceramente arrependida, Salomé diz que, finalmente, ele havia olhado para ela.

SALOMÉ
Myriam Fraga

Tantos anos depois
Não faz nenhum sentido,
Estória tão antiga...

— Eu te amo, eu disse,
Em meu vestido azul
Que um girassol floria.

— Eu também. E teu corpo
Encostado
Ao meu corpo, tremia.

Embriagada eu dançava,
Dilacerando os vestidos.

A interdição entre nós
Crescia como um bicho,
Serpente de pele lisa
E anéis coloridos.

Tantos anos depois
Ainda sonho com isso,
Um brilho de lâmina
E o sangue
A escorrer no ladrilho.

O tempo todo e eu sabia
Que, arrancados os véus,
Restaria o suplício. Restariam
As feridas. Um corpo ausente
E a lenda, de um remoto país
Onde habitei um dia.

Ó funesta tentação
De voltar àquela tarde
Em que dançando selvagem
Ao som de flautas,
Congelei a tua imagem
No fundo das retinas.

O topázio do sol
Ardia como brasa
E eu lavei as mãos
E limpei as sandálias.
No espelho, meu rosto,
Tinha a carne das estátuas.

Na espessura do silêncio,
Um gotejar de mágoa.
Na bandeja, os despojos,
Ainda tintos de vinho,
A cabeleira e os olhos
Acesos como círios.

Tantos anos depois
Não faz mesmo sentido
Mas guardo ainda o espelho
Onde espreito minha sorte,

Onde dia e noite espreito
A sombra que flutua
E se cola
Como máscara, em meu rosto,
Como chaga no coração,
Bem no peito onde o tempo
Enfiou sua adaga.

E danço como nunca mais
Dancei. O rei agora dorme,
Dourado, em seu sarcófago.

Mas ainda tenho os véus,
A bandeja e a espada.

Em: Femina, Fundação Casa de Jorge Amado, 1996.


SALOMÉ
Plínio de Almeida

Nessa tua obsessão pelo Batista,
Sentes nas veias do teu corpo em flor,
Vibrar uma vontade ardente, mista
De uma ânsia de posse e de pavor!

Que importa pelos teus fique malvista
A rubra incandescência desse amor?
Salomé, sensual, tu és realista:
Queres é possuir o Pregador.

Os beijos de São João serão troféus!...
Pensas nisto, e divina, esguia e leve,
Voas na dança sutil dos sete véus...

Mas esse amor se enflora na ironia,
Ensangüentado que ninguém descreve:
Teu beijo quente em boca morta e fria...

Em: Obra Reunida, Editus, 2009.

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