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Pitada de pitacos
para a receita de Gustavo Felicissimo:“Dendê no haikai – Aspectos do
Haikai na Bahia”,
tese em andamento aumentativo
[Tomo IV]
Carlos Verçosa
“Os haikai são diferentes. Não têm dessa eloquência.
Sua eloquência é outra. É a eloquência de sugerir. De modo que uma simples leitura de nada vale. O essencial é senti-los, é escutar o eco dos três versos n’alma.” OLDEGAR VIEIRA (prefácio do livro “Folhas de Chá”, de 1940).
Na foto (de 1942), com a esposa
Edith e Paulo, primogênito).
MATSUO BASHÔ (1644-1694)
desenho de Yosa Buson,1716-1783
desenho de Yosa Buson,1716-1783
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“Folhas de Chá”, (1940), o livro de estreia de Oldegar Vieira,
teve capa e ilustrações da pintora estopim da bomba que explodira
no Modernismo, Anita Malfatti (1889-1964).
Eis algumas
daquelas primeiras ‘folhas de chá’,
entre luminosas e iluminadas, de Oldegar
Vieira:
Todas as
manhãs
meu
jasmineiro fragrante
cobre o
chão de flores…
A boca da
noite
Avançou na lua cheia;
Avançou na lua cheia;
um quarto
minguante.
Brutos
lenhadores!
Mas uma árvore pouparam.
Havia, nela, um ninho.
Mas uma árvore pouparam.
Havia, nela, um ninho.
A fogueira
branca
dos vagalumes
parece
um baile de
estrelas.
As sombras
se adensam
Mas a noite
é uma urupemba
peneirando estrelas…
Em revoadas
brancas
sobre os rochedos escuros,
gaivotas e espumas…
sobre os rochedos escuros,
gaivotas e espumas…
A cidade
dorme.
Só os cães
enfiam longos
uivos no
silêncio.
São os seus
cabelos
soltos no vento, ou um erradio
trapo da noite?
soltos no vento, ou um erradio
trapo da noite?
A noite se
empoa
com o
pom-pom da lua cheia
no espelho
do dique.
- Quem foi que apagou
a iluminação da rua?
a iluminação da rua?
– Um amigo da lua.
Imagine você
que Oldegar Vieira escreveu estes
haikais naquela Bahia acanhada dos anos 1930!
Devo registrar, também, que todos esses haikais, reunidos no
seu primeiro livro, eram, originalmente, encimados por títulos.
Mas, mais de uma vez, durante as entrevistas que fiz com
mestre Oldegar, ele próprio me
solicitou que, ao reproduzir qualquer dos seus haikais, eu deveria fazê-lo sem
o título.
O seu depoimento: “Prefiro assim. É o certo. Mas
naquela época toda poesia tinha de ter título. Como a gente não conhecia muito
o haikai, era comum fazer com título também. Só muito depois, estudando mais o
assunto, é que vim a descobrir que o haikai não deve ter título. No Japão é assim. Aqui também deve
ser assim. Ele amplia suas possibilidades de
encantamento e entendimento sem o título. O leitor participa mais do haikai”.
O engraçado é que, mais tarde, ele passou não a excluir, mas
a separar completamente os títulos dos seus haikais, de modo a permitir a
leitura como ela deve acontecer, sem forçar a barra.
Mesmo assim foi a força do hábito que imperou: ao incluir
minúsculos rodapés de página em corpo seis, Oldegar ainda estava a sugerir o que poderiam ser os títulos ou
identificações dos haikais, inclusive daqueles que traduzia (transcriava).
[Isso aconteceu inclusive no seu último livro de haikais, “Gravuras no vento” (1994), 54 anos
depois das primeiras “Folhas de Chá”]
Quando eu cobrei dele essa contradição, Oldegar Vieira ficou em silêncio por uns momentos e, em seguida,
sorrindo maliciosamente, sapecou: "É mesmo. Fica parecendo
faz-o-que-eu-digo-mas-não-faz-o-que-eu-faço… Mas não leve isso a sério não, é
hábito de poeta velho. Toda vez que eu cometer algum haikai com título, você
risca. Pronto.”
Devidamente
autorizado, passei a ignorá-los (os títulos) desde então (a partir de sua
transcrição em “Oku”).
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Mais haikais de Oldegar Vieira. O
primeiro deles recebeu ilustração especial de Anita Malfatti.
Bendizendo
a chuva,
dois
namorados juntinhos
sob um
guarda-chuva.
Em sombra
e silêncio
na imponente nave, a humilde
luz da lamparina.
na imponente nave, a humilde
luz da lamparina.
Particularmente, gosto muito de alguns haikais desse
autêntico haijin (poeta haikaista)
brasileiro, desde a primeira viagem.
O primeiro deles, transcrito abaixo, antecipa em 16 anos o
famoso poema do(s) galo(s) “Tecendo a
manhã” (1956), de João Cabral de Melo Neto:
Pouco a pouco, vai
o canto claro dos galos
clareando o dia.
o canto claro dos galos
clareando o dia.
Um velho coqueiro
interrogativamente
mira-se no rio…
interrogativamente
mira-se no rio…
***
No calor
da tarde
estão
parados os leques
das
carnaubeiras.
***
Cantam passarinhos
sobre as sepulturas. Penso
na vida ou na morte?
sobre as sepulturas. Penso
na vida ou na morte?
***
Os
mastros na noite
parecem
dedos que apontam
contando
as estrelas.
Uma borboleta!
O bastante para que
Se desfolhe a rosa.
O bastante para que
Se desfolhe a rosa.
Aliás, este último também foi destacado pelo poeta Manuel Bandeira (1886-1968) como um dos
“exemplares perfeitos do haikai entre
nós”.
Escrevendo sobre haikais (em crônicas elogiosas aos baianos Oldegar Vieira e Abel Pereira, publicadas em A
Manhã e Jornal do Brasil, 3 de
fevereiro de 1957), Bandeira
destacou a velha forma de poesia japonesa “levada
à sua perfeição por Bashô e seus
discípulos no século XVII”. Nesta crônica, Manuel
Bandeira – que se considerava “enamorado
do haikai” e também registra alguns na sua obra - cravou uma das melhores
definições que conheço sobre haikai (a do ‘milagre
da gota de água’, que está destacada na epígrafe deste tomo).
Manuel Bandeira ainda conservava os haikais de Oldegar Vieira numa estante especial, a dos livros da sua
preferência. Quando Oldegar o
visitou nos anos 1950 no apartamento da Esplanada do Castelo, no Rio de
Janeiro, Bandeira lhe disse que eram
os livros que estava “sempre lendo e
relendo e relendo, sempre”.
Palavras de Manuel
Bandeira ao ‘colega poeta menor’
baiano: “Oldegar,
gosto tanto de você que ‘Folhas de Chá” não sai daqui desta minha estante. O
seu livro tá aí, onde eu guardo os livros da minha predileção.”
Sobre a primeira edição de “Folhas de Chá”, ela foi viabilizada por iniciativa da revista Cadernos da Hora Presente, em São Paulo,
dirigida pelo jornalista Rui Arruda. “Ali foram publicados muitos moços
intelectuais da época, que se tornavam cada vez mais conhecidos, como Santiago Dantas, Miguel Reale, Tasso da
Silveira, entre outros”, conta Oldegar.
Os haikais do primeiro livro de Oldegar Vieira foram selecionados pelo jornalista Jorge Lacerda (1914-1958).
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[No jornal A Manhã, Jorge Lacerda foi responsável pelo
suplemento “Letras e Artes”, que
representou um marco importante na literatura brasileira. Mais tarde, nos anos
1950, ele seria governador de Santa Catarina.]
[Já o jornalista e
intelectual Rui Arruda tinha
dirigido o jornal A Razão, órgão de
imprensa do Partido Republicano Paulista (PRP), no início dos anos 1930 e as
revistas de cultura Panorama (1936) e
Cadernos da Hora Presente (a partir
de 1939). Eram revistas de matiz nacionalista e integralista, com a
participação de grande parte da intelectualidade brasileira daqueles anos.]
Oldegar Vieira revela que eles tinham
uma grande capacidade de distribuição e que, por isso, seu livro ficou
rapidamente conhecido em todo o Brasil: “Começaram a surgir críticas bastante
elogiosas do Rio Grande do Sul ao Pará”, conta.
Pois é: ao longo dos anos suas “Folhas de Chá” foram conquistando cada vez mais leitores, alguns
muito ilustres. Entre outros:
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Joaquim Ribeiro
(1907-1964): Uma das obras mais originais da poesia brasileira.
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Pedro Calmon
(1902-1985): Verdadeira e bela poesia.
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Leo Magnino (autor de “Liriche giapponese”, 1943): Refletem profundamente aquele
sentido oriental.
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Jorge Amado
(1912-2001): Que beleza!
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Malba Tahan
(1895-1974): São haikais realmente maravilhosos.
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Luiz da Câmara Cascudo (1898-1986): É livro claro e lindo!
Octavio de Faria (1908-1980): Clássico!
Alceu Amoroso Lima (1893-1983): Suas ‘Folhas de Chá’ nunca envelhecem.
Pois é. Muita gente boa participou sem cerimônia da leitura
destas “Folhas de Chá” perfumadas de
poesia haikai.
Na verdade, até o lançamento de “Folhas de Chá”, nenhum outro escritor tinha tocado este gênero
poético com tanta profundidade e maestria.
Daí, considerar que Oldegar
Vieira foi realmente o primeiro mestre haijin
(poeta de haikai) nascido no Brasil.
////// FIM DO TOMO IV //////
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