segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Pitada de Pitacos do Carlos Verçosa - Tomo IV


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Pitada de pitacos
para a receita de Gustavo Felicissimo:“Dendê no haikai –   Aspectos do Haikai na Bahia”,
tese em andamento aumentativo
 [Tomo IV]
Carlos Verçosa
  
“Os haikai são diferentes. Não têm dessa eloquência. Sua eloquência é outra. É a eloquência de sugerir. De modo que uma simples leitura de nada vale. O essencial é senti-los, é escutar o eco dos três versos n’alma.” OLDEGAR VIEIRA (prefácio do livro “Folhas de Chá”, de 1940). 
Na foto (de 1942), com a esposa 
Edith e Paulo, primogênito).


  
 Não sigo a pegada dos antigos. Procuro o que eles procuraram.

MATSUO BASHÔ (1644-1694)
desenho de Yosa Buson,1716-1783


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“Folhas de Chá”, (1940), o livro de estreia de Oldegar Vieira
teve capa e ilustrações da pintora estopim da bomba que explodira 
no Modernismo, Anita Malfatti (1889-1964).



     Eis algumas daquelas primeiras ‘folhas de chá’, entre luminosas e iluminadas, de Oldegar Vieira:

Todas as manhãs
meu jasmineiro fragrante
cobre o chão de flores…

***

A boca da noite
Avançou na lua cheia;
um quarto minguante.

***

Brutos lenhadores!
Mas uma árvore pouparam.
Havia, nela, um ninho.

***

A fogueira branca
dos vagalumes parece
um baile de estrelas.

***

As sombras se adensam
Mas a noite é uma urupemba
peneirando estrelas…

***

Em revoadas brancas
sobre os rochedos escuros,
gaivotas e espumas…

*** 

A cidade dorme.
Só os cães enfiam longos
uivos no silêncio.

*** 

São os seus cabelos
soltos no vento, ou um erradio
trapo da noite?

*** 

A noite se empoa
com o pom-pom da lua cheia
no espelho do dique.

*** 

- Quem foi que apagou
a iluminação da rua?
– Um amigo da lua.

           Imagine você que Oldegar Vieira escreveu estes haikais naquela Bahia acanhada dos anos 1930!
Devo registrar, também, que todos esses haikais, reunidos no seu primeiro livro, eram, originalmente, encimados por títulos.
Mas, mais de uma vez, durante as entrevistas que fiz com mestre Oldegar, ele próprio me solicitou que, ao reproduzir qualquer dos seus haikais, eu deveria fazê-lo sem o título.

O seu depoimento: “Prefiro assim. É o certo. Mas naquela época toda poesia tinha de ter título. Como a gente não conhecia muito o haikai, era comum fazer com título também. Só muito depois, estudando mais o assunto, é que vim a descobrir que o haikai não deve ter título. No Japão é assim. Aqui também deve ser assim. Ele amplia suas possibilidades de encantamento e entendimento sem o título. O leitor participa mais do haikai”. 

O engraçado é que, mais tarde, ele passou não a excluir, mas a separar completamente os títulos dos seus haikais, de modo a permitir a leitura como ela deve acontecer, sem forçar a barra.
Mesmo assim foi a força do hábito que imperou: ao incluir minúsculos rodapés de página em corpo seis, Oldegar ainda estava a sugerir o que poderiam ser os títulos ou identificações dos haikais, inclusive daqueles que traduzia (transcriava).

[Isso aconteceu inclusive no seu último livro de haikais, “Gravuras no vento” (1994), 54 anos depois das primeiras “Folhas de Chá”]

Quando eu cobrei dele essa contradição, Oldegar Vieira ficou em silêncio por uns momentos e, em seguida, sorrindo maliciosamente, sapecou: "É mesmo. Fica parecendo faz-o-que-eu-digo-mas-não-faz-o-que-eu-faço… Mas não leve isso a sério não, é hábito de poeta velho. Toda vez que eu cometer algum haikai com título, você risca. Pronto.”

           Devidamente autorizado, passei a ignorá-los (os títulos) desde então (a partir de sua transcrição em “Oku”).


Mais haikais de Oldegar Vieira. O primeiro deles recebeu ilustração especial de Anita Malfatti.


Bendizendo a chuva,
dois namorados juntinhos
sob um guarda-chuva.


Em sombra e silêncio
     na imponente nave, a humilde
     luz da lamparina.

  
Particularmente, gosto muito de alguns haikais desse autêntico haijin (poeta haikaista) brasileiro, desde a primeira viagem.

O primeiro deles, transcrito abaixo, antecipa em 16 anos o famoso poema do(s) galo(s) “Tecendo a manhã” (1956), de João Cabral de Melo Neto:


Pouco a pouco, vai
o canto claro dos galos
clareando o dia.


Um velho coqueiro
interrogativamente
mira-se no rio…

***

No calor da tarde
estão parados os leques
das carnaubeiras.

***

Cantam passarinhos
sobre as sepulturas. Penso
na vida ou na morte?

***

Os mastros na noite
parecem dedos que apontam
contando as estrelas.

***

Uma borboleta!
O bastante para que
Se desfolhe a rosa.

Aliás, este último também foi destacado pelo poeta Manuel Bandeira (1886-1968) como um dos “exemplares perfeitos do haikai entre nós”.

Escrevendo sobre haikais (em crônicas elogiosas aos baianos Oldegar Vieira e Abel Pereira, publicadas em A Manhã e Jornal do Brasil, 3 de fevereiro de 1957), Bandeira destacou a velha forma de poesia japonesa “levada à sua perfeição por Bashô e seus discípulos no século XVII”. Nesta crônica, Manuel Bandeira – que se considerava “enamorado do haikai” e também registra alguns na sua obra - cravou uma das melhores definições que conheço sobre haikai (a do ‘milagre da gota de água’, que está destacada na epígrafe deste tomo).

Manuel Bandeira ainda conservava os haikais de Oldegar Vieira numa estante especial, a dos livros da sua preferência. Quando Oldegar o visitou nos anos 1950 no apartamento da Esplanada do Castelo, no Rio de Janeiro, Bandeira lhe disse que eram os livros que estava “sempre lendo e relendo e relendo, sempre”.

Palavras de Manuel Bandeira ao ‘colega poeta menor’ baiano: Oldegar, gosto tanto de você que ‘Folhas de Chá” não sai daqui desta minha estante. O seu livro tá aí, onde eu guardo os livros da minha predileção.”

Sobre a primeira edição de “Folhas de Chá”, ela foi viabilizada por iniciativa da revista Cadernos da Hora Presente, em São Paulo, dirigida pelo jornalista Rui Arruda“Ali foram publicados muitos moços intelectuais da época, que se tornavam cada vez mais conhecidos, como Santiago Dantas, Miguel Reale, Tasso da Silveira, entre outros”, conta Oldegar.

Os haikais do primeiro livro de Oldegar Vieira foram selecionados pelo jornalista Jorge Lacerda (1914-1958).

[No jornal A Manhã, Jorge Lacerda foi responsável pelo suplemento “Letras e Artes”, que representou um marco importante na literatura brasileira. Mais tarde, nos anos 1950, ele seria governador de Santa Catarina.]
 [Já o jornalista e intelectual Rui Arruda tinha dirigido o jornal A Razão, órgão de imprensa do Partido Republicano Paulista (PRP), no início dos anos 1930 e as revistas de cultura Panorama (1936) e Cadernos da Hora Presente (a partir de 1939). Eram revistas de matiz nacionalista e integralista, com a participação de grande parte da intelectualidade brasileira daqueles anos.]

     Oldegar Vieira revela que eles tinham uma grande capacidade de distribuição e que, por isso, seu livro ficou rapidamente conhecido em todo o Brasil: “Começaram a surgir críticas bastante elogiosas do Rio Grande do Sul ao Pará”, conta.

Pois é: ao longo dos anos suas “Folhas de Chá” foram conquistando cada vez mais leitores, alguns muito ilustres. Entre outros:

Joaquim Ribeiro (1907-1964): Uma das obras mais originais da poesia brasileira.


Pedro Calmon (1902-1985): Verdadeira e bela poesia.

Leo Magnino (autor de “Liriche giapponese”, 1943): Refletem profundamente aquele sentido oriental.

Jorge Amado (1912-2001): Que beleza!

Malba Tahan (1895-1974): São haikais realmente maravilhosos.
  
Luiz da Câmara Cascudo (1898-1986): É livro claro e lindo!

Octavio de Faria (1908-1980): Clássico! 

Alceu Amoroso Lima (1893-1983): Suas ‘Folhas de Chá’ nunca envelhecem.
    
Pois é. Muita gente boa participou sem cerimônia da leitura destas “Folhas de Chá” perfumadas de poesia haikai.
Na verdade, até o lançamento de “Folhas de Chá”, nenhum outro escritor tinha tocado este gênero poético com tanta profundidade e maestria.
Daí, considerar que Oldegar Vieira foi realmente o primeiro mestre haijin (poeta de haikai) nascido no Brasil.

//////  FIM DO TOMO IV  //////
  


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