sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Micro entrevista com W. J. Solha

A vontade de entrevistar W. J. Solha para um novo livro que preparo, nasceu das leituras que fiz de duas obras suas, ambas belíssimas: “Trigal com corvos” e “Relato de Prócula”. O primeiro de poesia, o segundo, um romance. Para esse livro tenho preparadas trinta entrevistas com pessoas que trafegam por diversas configurações artísticas a fim de oferecer ao leitor um amplo e democrático conceito de poesia. Esse projeto começou ainda em 2008 e muitas entrevistas já foram publicadas por aqui ou no antigo blog que mantínhamos. São apenas três perguntas para cada entrevistado, e cada entrevista um set diferente de perguntas.

Gustavo Felicíssimo - Poeta, romancista, dramaturgo, artista plástico, ensaísta. São muitas as áreas da arte por onde você transita com desenvoltura. Como a poesia dialoga com todas essas linguagens e o que determina, na prática, o que você vai fazer hoje?
W.J.Solha
– Na verdade, tudo é poesia, como diz a origem grega da palavra. Sempre ouvi falar de escritores que andam com cadernos de anotações – hoje, talvez, laptops – em que registram o que “pescam” no dia a dia, para utilização em seus romances e contos. Jorge Amado, por exemplo, colheu muita expressão ou jeito peculiar na Baixa do Sapateiro e arredores, para seus livros. Como eu tinha, quando comecei a escrever, o expediente de oito horas a dar no Banco do Brasil, acostumei-me, já que sempre vivi cercado de livros de arte, muitos de fotografia, a perambular... dentro deles, nas horas livres de que dispunha, coisa que faço até hoje, quando – aposentado - disponho de todo o tempo do mundo. Lembro-me de que uma descrição da chegada a cavalo do personagem principal de meu romance “A Canga”, criei-a – sem imaginar para que ela me serviria – ante uma reprodução do monumento Colleoni, de Verrocchio, “a presença com a cara macha e arrasadora, da cabeça aos cacos”. Sempre mantive, assim, um “banco de frases”. Meus romances eu sempre os escrevi como as histórias me chegam, sem qualquer preocupação literária. Feito isso, vou enxertando, neles, os “achados” obtidos pelo artifício. Meu primeiro livro publicado – “Israel Rêmora” – é composto de capítulos em que a narrativa é feita na terceira pessoa, intercalados de poemas na primeira. Esses poemas eram, nada mais, nada menos, do que as frases de meu “banco”, desvinculadas da intenção de contar, o que produzia um efeito de ... elevação, quando entravam no contexto. Vai daí que, um belo dia, me perguntei “Por que não faço um poema longo seguindo o mesmo sistema?” Foi assim que surgiu “Trigal com Corvos”, foi assim que surgiu (ou está surgindo agora ) um outro livro no mesmo formato.

Quanto ao que você também me pergunta: o que determina, na prática, o que vou fazer hoje, minha resposta é que para isso agem forças internas e externas. Em 78, levado pelos brios da cidadania ferida, fiz versos de cordel, martelo agalopado e gemedeira para a primeira cantata da língua portuguesa, a criada pelo maestro José Alberto Kaplan para cantar a luta épica dos camponeses paraibanos pela reforma agrária. A “Cantata pra Alagamar” foi apresentada por corais de vários pontos do país e gravada pela Marcus Pereira, de São Paulo, em 1980, sob os auspícios de Dom Hélder. Já no ano passado, recebi a encomenda de produzir versos para outra obra pioneira, “A Ópera Dulcineia e Trancoso”, a primeira armorial, para o maestro Eli-Eri Moura, e ela teve estreia com tudo que tinha direito, no Teatro de Santa Isabel, do Recife. Mas de repente me vem o desejo de dar à juventude pessoense uma ideia – num só lance de vista - do que é a obra completa de Shakespeare, e paro tudo, em 1997, para trabalhar durante nove meses no painel que se pode ver no auditório da reitoria da UFPB, um retângulo de 2 metros por 7 metros e vinte, composto de trinta e seis telas, cada uma alusiva a uma das peças do Bardo. Doutra feita, o jogador Edmundo quis insultar um juiz de futebol e o chamou de “Paraíba”, o que causou muita revolta no estado e fez com que eu, em reação, oferecesse a um dos principais jornais daqui a ideia de homenagear todos os paraibanos de nome nacional com um retrato de página inteira, na capa dos suplementos de domingo. Passei o ano 2000 e metade de 2001 retratando gente como Assis Chateaubriand, Zé Lins do Rego, Augusto dos Anjos, Walter e Vladimir Carvalho, Pedro Américo, José Dumont, Sivuca, Zé e Elba Ramalho, Geraldo Vandré, o jogador Júnior, o pintor Antonio Dias, a atriz Marcélia Cartaxo, etc, etc, isso enquanto escrevia meu poema longo “Trigal com Corvos”. Até que o cineasta Marcus Vilar resolveu fazer um curta-metragem com um trecho de meu romance “A Canga”, joguei tudo pra cima e fui fazer roteiro e storyboard, acabando, inclusive, no papel principal no filme. Daí me nasceu a angústia de não ter, ainda, contado como eu, o colega do BB, José Bezerra Filho, e todo o povo da cidade de Pombal, no alto sertão, produzimos o primeiro longa-metragem de ficção, em 35 mm, da Paraíba, e escrevi meu último romance, “Relato de Prócula”. Terminado o livro, veio-me a vontade de, novamente, trabalhar a longo prazo com novo poema longo... e assim vai...

GF - Você acredita que há um papel relevante destinado à crítica ou o artista deve ser o grande crítico de si mesmo?
Solha
– Crítica é sempre uma atividade perigosa. Monteiro Lobato acabou com a vida de Anita Malfatti. Rachmaninoff passou dois anos em tratamento, depois da crítica violenta que sua primeira sinfonia recebeu nos jornais de Petersburgo. O artista deve ser o grande crítico de si mesmo, ou não aguenta rebordosas desse tipo. Mas que há um papel relevante destinado à crítica, há. Não há textos que eu goste mais de ler do que os dos grandes críticos que são historiadores de arte, como Argan, Gombrich e Faure. Quem não gostou imensamente de “O Escorpião Encalacrado”, de Davi Arrigucci Júnior sobre Cortazar, ou – aqui na Paraíba – de “Signo e Imagem em Castro Pinto”, de João Batista de Brito?
Sinto uma necessidade enorme de mostrar, sempre, a três ou quatro pessoas os meus livros quando chegam àquele ponto em que não consigo acrescentar nem tirar mais nada, deles. Lembro-me de que tinha certeza de ter produzido uma obra-prima, quando terminei meu primeiro romance. Pedi, então, ao poeta e crítico Jurandy Moura que me lesse os originais, mais para ouvir os aplausos do que para outra coisa. Daí que tive um choque quando ele me disse que achara o romance muito ruim, que na verdade ali não estava um, estavam dois, três livros. E, cabeça fria, deu-me um enorme conselho:
- Anote a data de hoje aí na capa, vá fazer outra coisa e, daqui a seis meses, releia esses originais.
Foi o que fiz. Seis meses depois, tive o impacto. “Jurady tinha razão!” Mandei, então, a obra para o Prêmio Fernando Chinaglia e ganhei-lhe o primeiro lugar.
A verdade é que ninguém faz arte para si mesmo, por mais que faça basófia do contrário. Arte é comunicação e “quem não se comunica, se trumbica”. Claro que há obras mais e menos populares. Com menor ou maior número de leitores. Mas todas foram feitas para os outros. Pouca coisa deprime mais um dramaturgo do que ver o teatro vazio numa estreia sua. Porque ele escreveu para a multidão que deveria estar enchendo aquele espaço enorme das poltronas, frisas, camarotes e galeria.
Quando cheguei onde poderia chegar com meu romance “Relato de Prócula” (lançado em 2009 por A Girafa, hoje Arte Pau Brasil) submeti-o a quatro cobras – três do Rio, um de São Paulo. Dois me disseram que eu fizera uma obra-prima, dois, que eu me dera mal com o livro. Retrabalhei a história em cima dos comentários negativos, submeti-a, então, a um quinto leitor, esse gaúcho, que me fez mais críticas ainda e, esgotados todos esses recursos, submeti os originais à editora A Girafa, que os aprovou e publicou. Um dos que não tinham gostado do romance antes – o grande poeta e tradutor Ivo Barroso – releu a obra já publicada e lhe deu um tremendo elogio, no Estadão.
Com poesia isso é ainda mais complicado. Fico besta quando vejo um gênio como Oliveira de Panelas fazendo repentes e me lembro de que passei catorze anos trabalhando intermitentemente no “Trigal com Corvos”. No meio dessa trabalheira fiquei entre os finalistas do Nestlé de 1991, dei um descanso ao livro e voltei a retrabalhá-lo, até que resolvi mandá-lo para o Affonso Romano de Sant´Anna, que o considerou “notável”, avisando-me, no entanto, que eu não encontraria editor para ele. Consegui que a Palimage, de Portugal fizesse uma co-edição com a Imprell da Paraíba – paga por mim - e o poema acabou recebendo o Prêmio João Cabral de Melo Neto da UBE Rio, 1992.

GF - Seria a poesia uma espécie de fuga da realidade ou um modo de se chegar à essência do ser humano?
Solha
– Dante, quebrando a tradição que determinava ser obrigatória a abordagem de altos temas somente em latim, fez da Toscana – com a “Divina Comédia” - berço do idioma italiano. Affonso Romano de Sant´Anna, em “Que País é Este”, foi a voz do povo brasileiro revoltado com a ditadura. Foi a minha, pelo menos. Virgílio, com “A Eneida”, deu fundamento mítico a Roma. Sacralizou-a. Brecht, em “Aos que Virão depois de Nós”, diz à posteridade o que era ser alemão na época terrível do nazismo. Mas há versos que vão mais fundo, como os Salmos e o Cântico dos Cânticos (ou Cantares de Salomão), “O Poema dos Dons”, de Jorge Luís Borges, a “Saudação a Walt Whitman”, de Fernando Pessoa. A densidade é tal, nos grandes poetas como Pound, Ferreira Gullar, T. S. Eliot, Baudelaire, Drummond, que acaba gerando uma profundidade que não se consegue por outros meios. Veja Augusto dos Anjos em “O Lamento das Coisas”;

Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
O choro da Energia abandonada!

Isso põe o leitor em conexão com a parte mais funda do ser. Por isso e pela ressonância de seu vocabulário estranho, tornou-se incrível a quantidade de paraibanos que – mesmo sem qualquer preparo intelectual específico - repete esse poema ou “O Monólogo de Uma Sombra”:

Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias.

O poeta, enfim, é aquele inspirado que nos tira as palavras da boca. Como faz Neruda quando diz “Gosto quando te calas porque estás como ausente”, ou como faz Vinicius, quando ao falar de amor, exige:

Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.,

Biografia:
Nasceu em Sorocaba, 1941, renasceu no alto sertão da Paraíba em 62, quando tomou posse no BB. Ali fez literatura, teatro e - com o colega José Bezerra Filho, mais o povo da cidade - produziu O Salário da Morte, o primeiro longa-metragem de ficção, em 35mm, do estado. Trabalhou como ator nesse filme, em Fogo-Morto e em Soledade (ambos de 1975), no curta A Canga, de 2001, nos longas cearenses Lua Cambará, em 2002, e Bezerra de Menezes, em 2008. Em 74 ganhou o Prêmio Fernando Chinaglia com o romance Israel Rêmora, publicado pela Récord no ano seguinte. Em 88 ganhou o prêmio INL com A Batalha de Oliveiros, editado pela Itatiaia. Em 2005 ganhou o Prêmio João Cabral de Melo Neto com o poema longo Trigal com Corvos. Em 2006 ganhou o Prêmio Graciliano Ramos com a coletânea de contos, romances e um roteiro cinematográfico de História Universal da Angústia. Em 2007 ganhou a Bolsa Funarte de Incentivo à Criação Literária com o projeto do romance Relato de Prócula, publicado por A Girafa em 2009. Tem o painel Homenagem a Shakespeare no auditório da reitoria da UFPB e o quadro A Ceia, no Sindicato dos Bancários. Escreveu para o maestro José Alberto Kaplan os versos da Cantata Pra Alagamar, em 78, os versos do Oratório da Via-Sacra para a Prof. Ilza Nogueira em 2005, os versos dA Ópera Dulcineia e Trancoso para o maestro Eli-Eri Moura em 2009. Escreveu e montou os espetáculos A Bátalha de OL contra o Gígante FERR e A Verdadeira Estória de Jesus. Reside em João Pessoa desde 1970.
Relação externa:

4 comentários:

Rilton Primo disse...

Parabéns pela entrevista! Que atenção especial lhe deu Solha, e como é sábio! que bom!

Gerana Damulakis disse...

Q boa conversa. E, falando em conversas, coloquei uma conversa sua no Leitora.

Rafael Noris disse...

Muito interessante a entrevista! Mas o que não me tirou o sorriso do rosto foi esta ideia da micro entrevista estar presente também no meu blog, antes de saber do seu projeto.

;D

abraço!

Evandro L. Mezadri disse...

Bela entrevista, e ele é Sorocabano, praticamente meu conterrâneo.
Grande abraço e sucesso!