sábado, 27 de fevereiro de 2010

Cordel do Fogo Encantado chega ao fim

Que pena! Desfez-se há poucos dias um dos grupos mais importantes do cenário pop nacional, o Cordel do Fogo Encantado, que, com a estrela luminosa de Lirinha levava aos palcos do país a mais pura poesia matuta, como o antológico “Ai se sesse”, de Zé da Luz, e também aquela, digamos, mais universal, como “Canto dos Imigrantes”, de Alberto da Cunha Melo.

Lembro-me muito bem de um dos meus encontros com Lirinha, se não me engano no ano de 2005, no auditório da CHESF de Salvador, onde ele foi fazer uma palestra sobre cultura popular, onde ratificou e certificou toda a grandiosidade da poesia que o move. Modesto, afirmou que tinha mais dúvidas que certezas sobre o assunto abordado e diz que seu antecessor no projeto, o escritor e mestre paraibano Ariano Suassuna, teria mais a contribuir que ele. No entanto, com firmeza trata de temas polêmicos e afirma a universalidade da literatura de cordel.

Neste dia, juntamente com outros poetas, pude entrevistar o Lirinha para uma das edições do tablóide literário SOPA. Abaixo, os principais trechos.

Entrevista

Gustavo Felicíssimo – Você tem juntado muita água em peneira?
Lirinha
– (risos) Você fala sobre o impossível?

Gustavo Felicíssimo – Em um poema Manuel de Barros aborda essa questão...
Lirinha
– Eu acho que ele fala do impossível, já que estar nesse mundo capitalista onde os objetivos são ligados ao lucro e você viver de poesia, eu acho que é juntar água na peneira, não só viver de poesia, mas fazer poesia num ambiente tão adverso, tão contrário a isso nesse momento, onde se espera um objetivo prático de todas funções humanas, principalmente nesse momento de acentuação dessa relação mais cruel do capital, onde vai vendo reduzido o espaço para esse tipo de vôo, esse tipo de sonho. Mas eu não acredito que desaparece, que morre-se, eu não acredito que vai acontecer uma geração que não faça poesia, eu não acredito, a poesia foi inventada em algum momento e agora não tem mais fim. Essa forma de expressão através das palavras e a busca por aquilo que emociona não tem fim. Como diz Prítido Monteiro de Brito: “tirar de onde não têm e botar onde não cabe” parece que tem o mesmo sentido de “carregar água na peneira”. Poetas de lugares diferentes que tiveram a mesma idéia. Eu vejo assim.

Jotacê Freitas – Você falou em sua palestra sobre a questão do resgate. Você tem consciência que o surgimento do grupo Cordel do Fogo Encantado estimulou a leitura do cordel pela juventude?
Lirinha
– Pode ter estimulado, mas isso não provoca o ressurgimento de uma manifestação inteira, porque pra isso acontecer é necessário a criação, e o Cordel do Fogo Encantado não distribui uma criação que preencha os espaços da falta da Literatura de Cordel, inclusive a gente nem faz folhetos de cordel. Eu acredito que o que o Cordel do Fogo Encantado pode ter facilitado é a descoberta de pessoas com essa potência poética nelas, mas não acredito que seja o Cordel (a banda) que favoreça essa, digamos, revolta da literatura, essa volta da literatura (de cordel). Eu acredito que a banda joga uma luz, um holofote pra um ambiente onde, por vários fatores, estava mal iluminado, na escuridão, e jogando esse holofote as pessoas tiveram a grandiosidade à frente da Literatura de Cordel. As pessoas, não o Cordel do Fogo Encantado. Volto a dizer, não pára, o que tem é muito garoto e muita garota que fazem, mas não encontram uma necessidade de publicação disso, ou então não têm a necessidade de aprofundamento nessa sabedoria adquirida. Então você estimula através do exemplo e eu acho que o Cordel é isso, um exemplo para uma geração, um exemplo de possibilidade, de que é possível. Pra minha cidade o meu grupo tem essa função que é estimular a possibilidade e isso faz com que as pessoas saiam de uma determinada condição de submissão, de achar que não vai conseguir com aquilo ir pra algum lugar. Então é isso, é mais uma abertura de possibilidades que a gente proporciona.

Gustavo Felicíssimo – Como é que foi essa transição de um grupo de teatro que tinha a poesia inserida nele para um grupo musical que leva a poesia de cordel adiante?
Lirinha
– A música foi uma descoberta recente do grupo. A gente não se juntou pra fazer um grupo de música. Era um espetáculo de poesia e foi no contato do dia-a-dia com os instrumentos que a gente começou a compor, então isso é interessante porque eu poderia - se não tivesse entrado nessa vida artística – morrer sem saber que tenho essa força criadora, agora, a nossa poesia, a poesia que eu cresci escutando tem uma musicalidade intrínseca, a métrica e a rima dão uma cadência que é muito musical. Talvez essa poesia da cantoria de viola e da Literatura de Cordel sejam uma das poesias mais musicais do mundo. Eu lembro que quando fui me apresentar no exterior pela primeira vez, na Alemanha, eu dizia uma poesia de Zé da Luz sozinho no palco, e muitas pessoas depois chegavam me dizendo em alemão que a música que eu tinha cantado sozinho era linda, e eu disse através de um tradutor que era uma poesia. Aí eu vim perceber o quanto eu canto no desenvolvimento dessa poesia por conta principalmente da métrica, mas como dizem: todo sertanejo fala metrificado.

Jotacê Freitas – Zé Ramalho já escreveu e publicou um folheto, Alceu Valença tem prometido um que diz que vai virar filme, e você tem algum folheto escrito?
Lirinha
– Eu tenho algumas coisas que vou publicar em algum momento, mas eu te digo outros que lançaram: Bráulio Tavares, Lenine com o seu Cordel Cibernético que está no segundo disco dele e que é um cordel musicado; Djavan também incursiona em vários momentos por referências à cantoria de viola e como influência, inclusive, em uma música ele fala isso: (cantando) “certa vez fugimos de uma função de cantadores do nordeste”; Siba faz cordel e é bom pra caramba. A gente se entendeu muito. Quando cheguei em São Paulo foi ele que me recebeu primeiramente, ele já estava lá e a gente fez muita coisa em São Paulo, inclusive, ele hoje tomou opção pela poesia de improviso. Mestre Ambrósio não existe mais e ele deu uma mergulhada nessa coisa, até lançou uma coletânea de poetas da mata norte, com vários poetas e vários estilos: embolador, cantador de viola, puxadores de maracatu, tudo que envolve improviso e métrica.

Fátima Santiago – Percebi que você tem uma memória espetacular e que tem inúmeros poemas decorados, como é que essa poesia chegou até você?
Lirinha
– Esse aí é um ponto interessante, pois não adiantaria eu ter boa memória e não ter tido o conhecimento, não ter sido apresentado a essa poesia. Fui apresentado dentro da minha família que já curtia muito a cantoria de viola e tinham livrinhos em minha casa de Patativa do Assaré, de Zé Laurentino, de Chico Pedroza que meus tios pegavam com ele e muita cantoria de viola no sítio em que meu pai nasceu. Então eu decorei uma poesia sozinho e isso tornou-se impressionante, depois em toda festa da casa e batizado pediam pra eu dizer, foi aí que Ivanildo Vilanova viu e me convidou para ir com ele a um festival de violeiros, depois comecei a viajar com eles para fazer participações nos intervalos das cantorias. O que eu acho interessante nessa história é que havia um livro na minha família e estava disponível para que eu pegasse esse livro e decorasse, então acredito, deveria ser algo com efeito prático se esse conhecimento estivesse mais ao acesso da juventude e isso que vocês fazem tem esse peso social importante, pois pode ser que uma criança em algum momento decore uma poesia e isso mude a vida dela, que ela vá viver disso.

Duda – Na sua opinião, a quem interessa essa compartimentação popular/ erudito, você acredita que existe a colaboração do próprio nordestino para que isso se perpetue?
Lirinha
– Acredito que existiu uma invenção do nordeste, um nordeste que é real, mas que não é apenas isso e que se perpetua no nosso país com uma idéia de que o nordeste, necessariamente, é mais arcaico, mais tradicionalista que o sudeste e isso não é verdade. Isso é perpetuado por uma literatura e muito por causa de várias caricaturas criadas tanto pelo nordestino e também por não nordestinos, mas isso é estruturado e aceito pela nossa população que também se enxerga numa empregada doméstica da novela das nove falando uma linguagem que você vê que não é daqui, mas que é a caricatura do nordeste, que é um sotaque que não é de lugar nenhum, mas que é a caricatura do nordeste e termina você aceitando e se vendo naquilo ali, e até acharia estranho se visse numa novela da Globo uma pessoa de sotaque nordestino dono de uma empresa grandiosa. Então existe essa relação que eu acho que é uma condição política negativa pra gente e que faz com que seja perpetuada uma determinada escravidão, uma submissão.

Duda – Então dentro da literatura o que pareceria um protesto, uma denúncia, virou um estado de ser...
Lirinha
– Não, eu interpreto isso da seguinte forma: quando o modernismo surgiu o regionalismo foi colocado como oposição ao movimento modernista, acredito que pela imprensa, pela mídia da época, não pelos regionalistas e essa oposição até hoje tem raízes muito fortes, como por exemplo: a histórica discussão entre Chico Sciense e Ariano Suassuna. Essa divisão não existe verdadeiramente, é uma divisão conceitual e todos estão praticamente na mesma linha de criação que é a da liberdade, é a da ousadia, que é trazer elementos do seu lugar, algo que é pessoal e isso tem tanto na obra de Ariano quanto na obra de Chico. Aí se criou isso porque Chico tinha dialogado com algo que no caso era o rock’n rol que não é pernambucano e isso fazia com que ele entrasse num time de arte diferente do de Ariano e isso não é verdade. Isso ocasionou um erro gravíssimo que foi o fato de Fred Zero Quatro, vocalista e letrista premiado no país inteiro por dois anos seguidos como o melhor letrista escreveu uma música que é “Os Arianos contra os Africanos” fazendo uma metáfora da raça ariana que seria a pureza, dando uma futucada no Suassuna e aí reside um erro absurdo, fruto desse preconceito porque Ariano foi um dos que mais colocou a discussão sobre o negro na roda dos intelectuais. Isso atrapalha muito a nossa história porque você faz uma trajetória artística e sempre, em todos os prêmios, concorrer a melhor grupo regional, melhor cantor regional e nunca ser colocado num ambiente nacional, nunca, aí você começa a se perguntar o que é isso de regionalismo. Será que isso é sinônimo de nordeste? Isso eu acho que tem que ser discutido. Eu também não quero levantar algo sem ter estrutura para defender, eu não tenho defesa acadêmica pra isso, mas quero jogar essa confusão na cabeça das pessoas. Acho que chegou o momento que essa definição não cabe mais. E se for cultura popular qual vai ser? Veja só: o Samba de Coco de Arco Verde, ele era um grupo que fazia apresentações no quintal da casa deles e era belíssimo, ainda é belíssimo, e aí houve uma modificação desse grupo para um ambiente de palco que foi a diminuição da quantidade de músicas, do tempo das músicas, houve uma adaptação para o ambiente de mercado, mas com total consciência deles que começaram a ter relação com o micro-fone, tecnologia. É muito cruel você ver que eles tomaram uma atitude semelhante a qualquer banda do cenário pop, mas eles ainda são interpretados como uma banda de cultura popular pela raiz de onde eles vêem, por um preconceito. Em vários momentos da pra trocar a palavra “cultura popular” por “pobre” e você não erra na análise.
Pra quem nunca viu a banda:

3 comentários:

Evandro L. Mezadri disse...

Bela entrevista e belo vídeo.
Realmente é uma pena essa separação, esperamos que seja momentânea.
Grande abraço e sucesso!

O Neto do Herculano disse...

Lamentavel, resta esperar, apenas, pelo lançamento do material inédito.

Raymundo Luiz Lopes disse...

Gostei da entrevista e do vídeo, ambos excelentes.
Acompanho o maravilhoso 'Cordel do fogo encantado', desde o seu surgimento.
O Lirinha é extremamente bonito em tudo o que faz. Realmente, uma 'estrela luminosa'.
Lamento a separação do grupo. Que pena!!
Abraços.