segunda-feira, 13 de julho de 2009

A poesia transcendental de Jorge Elias Neto:

Foi, para mim, motivo de enorme alegria receber de Jorge Elias Neto, poeta e médico capixaba, o convite para a preparação dos seus poemas objetivando a publicação do segundo livro de sua lavra, pois trata-se da obra de um poeta que, sobretudo, é um formidável esteta, criador de imagens cortantes, observador e crítico da condição humana.
Jorge Elias Neto, desde “Verdes Versos”, seguindo seu próprio dictum, chega a “Rascunhos do Absurdo” com uma poesia extremamente madura. Sua busca se inicia com a questão ontológica basilar: o sentido do ser. Sua obra poética é marcadamente filosófica, metafísica e existencialista, partindo da realidade vivida para a apreensão de um sentido maior, através da poesia.
Nesse contexto, pautado nas questões essenciais que afligem o homem moderno: a ausência de deidades, a morte, a angústia, o ser e a existência, o poeta se lança na investigação identitária de si mesmo e no descortinar do sentido da vida, pulsante na concretude do mundo em que se enquadra “Rascunhos do Absurdo”, refletindo o espasmo do homem frente a esse mesmo mundo, por ele criado, e sua busca na ressignificação da vida.
Abaixo, alguns poemas do inédito “Rascunhos do Absurdo”.

A prazo

Levem-me as horas
para os caprichos mundanos!

Já destaquei a etiqueta.

Tomei posse do indivíduo.

Será que não vêem
no meu ante-braço
o carimbo de “pago”?


O possível

Eu te daria meus vícios
se isso não me fizesse órfão.

Já o aconchego da pedra,
o travesseiro de folhas,
esses não são meus;
deles se serve qualquer poeta.


Balada da carne

Já que o dia é par: falemos de amor.

Já que à frente sempre restará o horizonte:
não me enterrarei além dos olhos.

Já que é no vazio insalubre da cura
que se percebe a alma evanescendo:
tragam-me uma taça.

Já que eu disse sim:
limitem os convidados
presentes à minha embriaguez.

Já que a palavra é uma puta:
rasguem o poema.

Já que a rima é farta e o poeta um estorvo:
que se recompense o primeiro idiota
a me cortar a carne.


Um pouco antes

Um pouco antes do desespero
entregarei as cartas;

não estas falsas memórias
principiadas em momentos de luxúria.

Somente a coragem de um moribundo
permite alguma crueza nas letras.

Talvez eu comece a entender Rimbaud
diante de meu cadafalso.

Por enquanto, tudo é entretenimento;
só cuspe e falsidade.

As cores são vivas e fortes
em meu semblante de camaleão.

Ao menos não me persigno;
não faço falsas preces.


Micro entrevista com JORGE ELIAS NETO

Gustavo Felicíssimo – Jorge, o exercício da cardiologia, uma área tão delicada da medicina, foi que te trouxe esse arsenal existencialista impresso na sua poesia, ou isso é algo inerente ao seu ser?
Jorge Elias Neto
- Quando pequeno, muito me chamou a atenção a estória de David Copperfield que desde a mais tenra idade teve que lidar com a idéia de morte e de perda. De alguma forma, ficou em mim incutida a impressão que eu deveria ser uma pessoa forte a lidar com a morte e que, em algum momento, me confrontaria com a “inesperada das gentes”. Percebi, com o tempo, que essa tarefa não me seria assim tão fácil...
Tornei-me médico, lidei com inúmeros casos graves, presenciei, ao longo dos últimos 25 anos, as diversas formas como o homem, à beira da morte, bem como os seus convivas, enfrentavam esse momento único e, para mim, definitivo (a verdade básica da vida).
E esse enfrentamento tornou-se uma questão de vida: trabalhar a idéia de morte e entender a multiplicidade de atitudes do homem frente a essa locomotiva que “sempre chega pontualmente na hora incerta”. Passei a entender a relevância desse entendimento na minha formação como homem. Li as reflexões nos Ensaios de Montaigne, n’O sofrimento do jovem Werther, de Goethe, Nietsche, Kant, Camus e fui fazendo meu percurso.
Hoje, tenho a tendência a crer que a morte é branca, que é o nosso retorno à irracionalidade e à nossa perfeita integração ao caos universal. Entendi que esse absurdo – a coexistência entre o homem e o universo –, só vale a pena se repisarmos cada segundo e que, para mim, já não é mais permitido o alento da religião. É difícil, eu sei, mas esse é o meu caminho.
Daí minha poesia ser carregada de questões metafísicas, existencialistas. Nela busco expressar minhas meias-verdades.

"Ninguém deixou de sentir alguma vez que o destino é poderoso e estúpido, que é inocente e também inumano. Para essa convicção, que pode ser passageira ou contínua, mas que ninguém evita, podemos escrever nossos versos"
Jorge Luis Borges

GF- Em que medida você vê o poeta marcado pelos elementos do mito de Sísifo?
JEN
- Por que viver? Em um poema onde retrato o suicida, eu narro um fato real. Um amigo “comum”, trabalhador, bem situado profissionalmente, do tipo “família”, após realizar sua grande obra profissional – suicidou-se. Retirei seu corpo do mar juntamente com dois amigos: um ascético extremo e um espírita. Naquele momento, olhei meu amigo morto e observei a reação de meus outros amigos. No meu caso, me pareceu clara a decisão dele: cansou-se da rotina de rolar a vida e, ao constatar o absurdo de viver, decidiu dar o salto para o nada.
Como disse Nietsche: “Cada um tem a verdade que é capaz de suportar”.
Quanto ao poeta?... Bem, o poeta, como todo ser humano, é marcado pelos elementos do mito de Sísifo.
O poeta é o protótipo do herói absurdo, tal qual Sísifo. A poesia se faz da vida do poeta, dos seus “guardados”. Respondo esta questão à partir do meu entendimento: optei pela vida e tento levá-la da forma mais intensa possível – tento insistentemente entendê-la.
Rolo as pedras, e coloco em minha poesia meu processo de aprendizado. Quanto a ser um médico ou um poeta, para ambos é necessário o fazer diário, mas com o prazer comedido do eterno aprendiz.
Acho que o poeta é um felizardo ao conseguir, nos momentos em que se encontra no limiar da melancolia, ter a possibilidade de externar seus pensamentos na forma de poema.
Desculpem-me os que vêem a poesia de uma forma mecanicista, mas creio na poesia que parte de uma emoção (com consciência e sem pieguices, é claro).

GF - Não te pedirei escolhas entre a poesia e a medicina. Mas, pegando uma carona em Rilke, eu te pergunto: serias capaz de viver sem uma ou outra atividade?
JEN
- Não. Na minha adolescência iniciei uma pausa de 25 anos em relação ao fazer poético, período este totalmente dedicado a minha formação profissional, durante o qual tudo que escrevi foram textos médicos.
Certo dia, retomei a poesia e sinto que ela também passou a ser essencial no meu sentido de estar vivo. É óbvio que, apesar dos avanços na medicina cada vez aumentarem minha possibilidade de manter-me ativo profissionalmente, tornar-me-ei um profissional ultrapassado, mas isso é algo natural.
Quanto ao poeta, este ainda é muito jovem e pleno de incertezas e imperfeições. Espero que meus conhecimentos como médico, apesar das idiossincrasias cometidas, permitam-me uma terceira idade madura na poesia.
Penso que ambas, a poesia e a medicina, me permitirão um legado sem tragédia.

Sobre o mito de Sísifo

A labuta não respeita o portal das casas.
Dentro e fora – rolam-se pedras.

– Avisem-me
quem joga o bilboquê de pedra
dos dias.

E segue o homem-bastão
entre romper o barbante
ou deixar que lhe caia sobre a cabeça
o peso da tomada de consciência.

O homem é um ser interrompido.

Seja no curtume das horas
ou nas contas do terço,
ele sempre se agasalha
com a tênue esperança.

“roda peão,
bambeia peão...”
No absurdo de agora
e à espera da vida eterna,
Amém!

Blog do Jorge Elias Neto:
http://jeliasneto.blogspot.com/

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