Rio de Janeiro, a água
é a tua bandeira,
agita as suas cores,
sopra e retine no vento,
cidade,
negra náiade,
de claridade sem fim,
de abrasadora sombra,
de pedra com espuma
é o teu tecido,
o cadenciado balanço
da tua rede marinha,
o azul movimento
dos teus pés areentos,
o aceso ramo
dos teus olhos.
Rio, Rio de Janeiro,
os gigantes
salpicam a tua estátua
com pontos de pimenta,
deixaram
na tua boca
dorsos do mar, barbatanas
perturbadoramente mornas,
promontórios
da fertilidade, tetas da água,
declives de granito,
lábios de ouro,
e entre as pedras quebradas
o sol marinho
iluminando
rutilantes espumas.
Ó Beleza,
ó cidadela
de pele fosforescente,
romã
de carne azul, ó deusa
tatuada em sucessivas
ondas de ágata negra,
da tua nua estátua
um aroma de jasmim molhado
se desprende, vem no suor, um ácido
pegajoso
de cafezais e de frutarias
e pouco a pouco sob o teu diadema,
entre a dupla maravilha
dos teus seios,
entre cúpula e cúpula
da tua natureza
aparece o dente da desgraça,
a cancerosa cauda
da miséria humana,
nos montes leprosos
o cacho inclemente
das vidas,
pirilampo terrível,
esmeralda
extraída
do sangue,
o teu povo estende-se
até aos confins da selva
num rumor abafado,
passos e surdas vozes,
migrações de esfomeados,
escuros pés com sangue,
o teu povo,
para lá dos rios,
na densa
amazônia,
esquecido,
no Norte
de espinhos,
esquecido,
com sede nos planaltos,
esquecido,
nos portos mordido
pela febre,
esquecido,
à porta
da casa de onde o expulsaram,
pedindo-te
apenas um olhar,
esquecido.
Noutras terras,
reinos, nações,
ilhas,
a cidade capital,
a coroada,
foi colméia
de trabalhos humanos,
amostra do azar
e do acerto,
fígado da pobre monarquia,
cozinha da pálida república.
Tu és a espelhante
montra
de uma sombria noite,
a garganta
coberta
de águas marinhas
e ouro
de um corpo
abandonado,
és a porta
delirante
de uma casa vazia,
és
o antigo pecado,
a salamandra
cruel,
intacta
na fogueira
das longas dores do teu povo,
és
Sodoma,
Sim,
Sodoma
deslumbrante,
com um fundo sombrio
de veludo verde,
rodeada
de crespa sombra, de águas
ilimitadas, dormes
nos braços
da desconhecida
Primavera
dum planeta selvagem.
Rio, Rio de Janeiro,
quantas coisas tenho
para te dizer. Nomes
que nunca esquecerei,
amores
que amadurecem o seu perfume,
encontros contigo, quando
do teu povo
uma onda
agregue ao teu diadema
a ternura,
quando
à tua bandeira de águas
subam as estrelas
do homem,
não do mar,
não do céu,
quando
no esplendor
da tua auréola
eu veja
o negro, o branco, o filho
da tua terra e do teu sangue,
elevados
até à dignidade da tua formosura,
iguais na luz resplandecente,
proprietários
humildes e orgulhosos
do espaço e da alegria,
então, Rio de Janeiro,
quando
alguma vez
para todos os teus filhos,
e não somente para alguns,
abrires o teu sorriso, espuma
de morena náiade,
então
eu serei o teu poeta,
chegarei com a minha lira
para cantar em teu aroma
e na tua cintura de platina
dormirei,
na tua areia
incomparável,
na frescura azul do leque
que tu abrirás no meu sono
como as asas de uma
gigantesca
borboleta marinha.
Pablo Neruda, 1956
Nota: Poema extraído do livro : "Odas Elementales" de Pablo Neruda, traduzido para o português por Luis Pignatelli (Publicações Dom Quixote) Lisboa / 1999.
é a tua bandeira,
agita as suas cores,
sopra e retine no vento,
cidade,
negra náiade,
de claridade sem fim,
de abrasadora sombra,
de pedra com espuma
é o teu tecido,
o cadenciado balanço
da tua rede marinha,
o azul movimento
dos teus pés areentos,
o aceso ramo
dos teus olhos.
Rio, Rio de Janeiro,
os gigantes
salpicam a tua estátua
com pontos de pimenta,
deixaram
na tua boca
dorsos do mar, barbatanas
perturbadoramente mornas,
promontórios
da fertilidade, tetas da água,
declives de granito,
lábios de ouro,
e entre as pedras quebradas
o sol marinho
iluminando
rutilantes espumas.
Ó Beleza,
ó cidadela
de pele fosforescente,
romã
de carne azul, ó deusa
tatuada em sucessivas
ondas de ágata negra,
da tua nua estátua
um aroma de jasmim molhado
se desprende, vem no suor, um ácido
pegajoso
de cafezais e de frutarias
e pouco a pouco sob o teu diadema,
entre a dupla maravilha
dos teus seios,
entre cúpula e cúpula
da tua natureza
aparece o dente da desgraça,
a cancerosa cauda
da miséria humana,
nos montes leprosos
o cacho inclemente
das vidas,
pirilampo terrível,
esmeralda
extraída
do sangue,
o teu povo estende-se
até aos confins da selva
num rumor abafado,
passos e surdas vozes,
migrações de esfomeados,
escuros pés com sangue,
o teu povo,
para lá dos rios,
na densa
amazônia,
esquecido,
no Norte
de espinhos,
esquecido,
com sede nos planaltos,
esquecido,
nos portos mordido
pela febre,
esquecido,
à porta
da casa de onde o expulsaram,
pedindo-te
apenas um olhar,
esquecido.
Noutras terras,
reinos, nações,
ilhas,
a cidade capital,
a coroada,
foi colméia
de trabalhos humanos,
amostra do azar
e do acerto,
fígado da pobre monarquia,
cozinha da pálida república.
Tu és a espelhante
montra
de uma sombria noite,
a garganta
coberta
de águas marinhas
e ouro
de um corpo
abandonado,
és a porta
delirante
de uma casa vazia,
és
o antigo pecado,
a salamandra
cruel,
intacta
na fogueira
das longas dores do teu povo,
és
Sodoma,
Sim,
Sodoma
deslumbrante,
com um fundo sombrio
de veludo verde,
rodeada
de crespa sombra, de águas
ilimitadas, dormes
nos braços
da desconhecida
Primavera
dum planeta selvagem.
Rio, Rio de Janeiro,
quantas coisas tenho
para te dizer. Nomes
que nunca esquecerei,
amores
que amadurecem o seu perfume,
encontros contigo, quando
do teu povo
uma onda
agregue ao teu diadema
a ternura,
quando
à tua bandeira de águas
subam as estrelas
do homem,
não do mar,
não do céu,
quando
no esplendor
da tua auréola
eu veja
o negro, o branco, o filho
da tua terra e do teu sangue,
elevados
até à dignidade da tua formosura,
iguais na luz resplandecente,
proprietários
humildes e orgulhosos
do espaço e da alegria,
então, Rio de Janeiro,
quando
alguma vez
para todos os teus filhos,
e não somente para alguns,
abrires o teu sorriso, espuma
de morena náiade,
então
eu serei o teu poeta,
chegarei com a minha lira
para cantar em teu aroma
e na tua cintura de platina
dormirei,
na tua areia
incomparável,
na frescura azul do leque
que tu abrirás no meu sono
como as asas de uma
gigantesca
borboleta marinha.
Pablo Neruda, 1956
Nota: Poema extraído do livro : "Odas Elementales" de Pablo Neruda, traduzido para o português por Luis Pignatelli (Publicações Dom Quixote) Lisboa / 1999.
Um comentário:
Pablo Neruda é, sem sombra de dúvida, uma das grandes vozes da terra.
Obrigado, poeta, por trazer a estas páginas virtuais o sabor que nunca deverá ser esquecido.
James Vasconcellos de Lima.
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