segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

INFÂNCIA RECONTADA I


Ainda vivo a ternura da infância, por isso canto aquele tempo raro, no fossilismo da minha memória, as casas simples da Rua Rio Claro. O antigo prédio do INPS e Zé Grande que era bem pequenino, a vida que passava sem estresse no interior do meu tempo menino. Lembro do velho cego, Seu João, enxergando as meninas com as mãos, e a bodeguinha do seu Joaquim. Agora, depois de tantas andanças, anda correndo nas minhas lembranças o lugar que fora feito pra mim.
A vida simples não me incomodava, nem a mesa coxa junto à parede, nem o pequeno cômodo da casa dividido por folhas compensadas. Mamãe trabalhava em um lar burguês, lavava e passava pela manhã, à noite, feito boi no matadouro, era operária em multinacional. Eu vivia feliz num internato, não tinha ciência da situação, queria apenas saber de brincar. Exigia cuidados redobrados. Da Titia Vilder furtava pães, de papai corria pra não ser pego.
Eu sempre preferi raspar panelas e roubar mangas nos quintais vizinhos, sempre joguei pedras em passarinhos e quebrei vidros de muitas janelas. Nos telhados, velhas telhas partidas, subindo e descendo atrás de uma pipa. E atrás da bola, moleque chulipa,
cantando as peladas sempre vencidas. E qual peixinho eu nadava no rio, eu brincava até debaixo do frio. Lá, naquele tempo, tudo era lúdico. Minha vida eram doces de bananas, doce de leite e duelos com as manas, com as vizinhas brincava de médico.
Eu fremia ao andar de bicicleta, andava bem louco em todo quintal, e na rua o êxtase era geral quando empinava minha monareta. Fui mesmo o rei das bolinhas-de-gude, tinha uma gaveta cheinha delas. Brincar de mata-mata é que eram elas, brinquei até dentro da juventude. Coisa legal era correr no campo, espantar boi, tomar banho em cascata sem nunca ter preocupação com o tempo. Meu tempo era algo que não se media, felicidade era palavra farta, entalhada em tudo quanto eu fazia.


Esse texto é o prólogo de “Infância Recontada”, livro de crônicas ao qual me dedico a escrever neste momento.

2 comentários:

Unknown disse...

Sinto-me como criança após ler seu texto...é como entrar em um túnel do tempo e reviver uma infância lúdica, sadia e gostosa. Obrigada Felicíssimo por tão lindas palavras.
Chris Bezerra

Gerana Damulakis disse...

O texto traz uma honestidade, uma tão vibrante honestidade, que é como se nós, leitores, estivéssemos assistindo as cenas.