domingo, 15 de fevereiro de 2009

Os versos preciosos de Giuseppe Ghiaroni

Faz poucos dias recebi um e-mail do poeta capixaba Jorge Elias Neto, com poemas de Giuseppe Ghiaroni, mineiro de Paraíba do Sul. Após, busquei reler “A máquina de escrever”, o último livro do poeta, lançado em 1997, que levou-o ao Programa do Jô Soares, na Tv Globo. Transferindo-se para o Rio de Janeiro, Ghiaroni trabalhou no Jornal A Noite, onde desenvolveu intensa atividade jornalística, também teve seus poemas lidos na Rádio Nacional, onde, segundo consta, eram muito apreciados. Mas isso não foi suficiente para livrar sua obra do quase total e completo esquecimento.
Entretanto, a qualidade dos seus poemas, enfeixados por grande senso humanista, atestam que, no nosso entendimento, Giuseppe Ghiaroni, ao lado de Octávio Mora, são dois dos grandes poetas brasileiros injustiçados. Dentre suas obras publicadas e mais conhecidas, encontramos, além de “A máquina de escrever”, também “O Dia da Existência”, seu primeiro livro, de 1941, “A Graça de Deus”, 1945 e “Canção do Vagabundo”, de 1948.
Faleceu em Fevereiro de 2008, com quase 89 anos.
Abaixo, dois poemas:



Depois

Depois de ter tentado e conseguido,
depois de ter obtido e abandonado;
depois de ter seguido e ter chegado;
depois de ter chegado e prosseguido!

Depois de ter querido e ter amado;
depois de ter amado e ter perdido;
depois de ter lutado e ter vencido;
depois de ter vencido e fracassado!

Depois que o sonho comandou: ''Avança!"
Depois que a vida ironizou:"Criança!"
Depois que a idade sentenciou: ''Jamais!"...

Depois de tudo que escarnece e exalta,
depois de tudo, quando nada falta,
depois de tudo, falta muito mais!



A Máquina de Escrever

Mãe, se eu morrer de um repentino mal,
vende meus bens a bem dos meus credores:
a fantasia de festivas cores
que usei no derradeiro Carnaval.

Vende ese rádio que ganhei de prêmio
por um concurso num jornal do povo,
e aquele terno novo, ou quase novo,
com poucas manchas de café boêmio.

Vende também meus óculos antigos
que me davam uns ares inocentes.
Já não precisarei de duas lentes
para enxergar os corações amigos.

Vende , além das gravatas, do chapéu,
meus sapatos rangentes. Sem ruído
é mais provável que eu alcance o Céu
e logre penetrar despercebido.

Vende meu dente de ouro. O Paraíso
requer apenas a expressão do olhar.
Já não precisarei do meu sorriso
para um outro sorriso me enganar.

Vende meus olhos a um brechó qualquer
que os guarde numa loja poeirenta,
reluzindo na sombra pardacenta,
refletindo um semblante de mulher.

Vende tudo, ao findar a minha sorte,
libertando minha alma pensativa
para ninguém chorar a minha morte
sem realmente desejar que eu viva.

Pode vender meu próprio leito e roupa
para pagar àqueles a quem devo.
Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa
esta caduca máquina em que escrevo.

Mas poupa a minha amiga de horas mortas,
de teclas bambas,tique-taque incerto.
De ano em ano, manda-a ao conserto
e unta de azeite as suas peças tortas.

Vende todas as grandes pequenezas
que eram meu humílimo tesouro,
mas não! ainda que ofereçam ouro,
não venda o meu filtro de tristezas!

Quanta vez esta máquina afugenta
meus fantasmas da dúvida e do mal,
ela que é minha rude ferramenta,
o meu doce instrumento musical.

Bate rangendo, numa espécie de asma,
mas cada vez que bate é um grão de trigo.
Quando eu morrer, quem a levar consigo
há de levar consigo o meu fantasma.

Pois será para ela uma tortura
sentir nas bambas eclas solitárias
um bando de dez unhas usurárias
a datilografar uma fatura.

Deixa-a morrer também quando eu morrer;
deixa-a calar numa quietude extrema,
à espera do meu último poema
que as palavras não dão para fazer.

Conserva-a, minha mãe, no velho lar,
conservando os meus íntimos instantes,
e, nas noites de lua, não te espantes
quando as teclas baterem devagar.


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