terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

CONFISSÕES DE UM DISCÍPULO E ADMIRADOR DA POESIA DE MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS

Confesso que passei meses a fio na tentativa de escrever algo significativo sobre a poesia de Maria da Conceição Paranhos, mestra. Mas o que se pode dizer sobre a obra de alguém que possui, como Borges, tão profundo entendimento da arte? Qualquer coisa que se diga resvalará no que já foi tantas vezes enunciado sobre sua genialidade, será o mesmo que se valer de uma mola desgastada pelo tempo, pois Conceição é a essência da poesia em esmero, artesania, conhecimento, dedicação e paciência.
Foi através de suas mãos que eu e tantos outros, postulantes a poeta, adquirimos instrumental suficiente para continuarmos nossa caminhada com as musas. Fora ali, na varanda de sua casa, no Rio Vermelho, em Salvador, que muitas das minhas sextas-feiras, sempre no pôr-do-sol, se transformavam em delírio, ouvindo-a discorrer elegantemente sobre versificação, declamando poemas em pelo menos meia dúzia de idiomas, para que notássemos, mesmo às vezes sem perceber o que estava sendo dito, que existem elementos em um poema que são universais. Só agora entendo. Sempre rigorosa, nenhuma aresta ficaria por aparar, o que não se resolvia na oficina era tratado como dever de casa, e na semana seguinte cobrava-se. Assim fomos apurando nosso verso.
Quantas e quantas foram as vezes que nos estendíamos para além do horário regular do transporte coletivo, e no meu caso, como morava longe, às vezes dormia na casa de algum colega, em outras ficava na casa da mestra, estirado pelos sofás da sala, indo embora com o raiar do dia. Trata-se de um tempo que jamais esquecerei.
Meu primeiro contato com a poesia de Maria da Conceição Paranhos, antes mesmo de iniciarmos a oficina, foi o mais impactante. Seus primeiros poemas a chegar às minhas mãos foram os luxuriosos “Quatro Sonetos Cardinais”, uma pérola do erotismo em língua portuguesa, deles emergem metáforas e imagens tão bem elaboradas e consistentes quanto aquelas dos maiores cultores do gênero. Outras leituras vieram até me deparar com “Delírio do Ver”, escritos que correm trinta anos de poesia, sobre os quais seu contemporâneo, e também mestre, Ildásio Tavares se manifestou dizendo que poucas pessoas estarão fazendo poesia tão pacientemente construída, tão inteligentemente elaborada neste país de poemas em rascunho. Não há como discordar.
Em janeiro de 2008, novamente, a poesia erótica de Conceição Paranhos volta a me arrebatar, desta vez através dos “Sonetos de uma Semana Perfeita”. São oito poemas inéditos a serem inseridos no livro que por enquanto traz o título de “Coita de Amor”. Vejamos um desses poemas:

1. SEGUNDA-FEIRA

A quem não foder bem cá neste mundo
há castigos previstos em triste averno,
e por salvar-te aqui do mal profundo
vai logo te afastando desse inferno.

Corre, ó Amado, deste mal imundo,
e entrai a salvo no meu paraíso,
pois foder é sinal de muito siso –
neste penar da vida, é bem jocundo.

Devêssemos guardar a castidade,
para que Deus nos daria o tesão,
se não para foder com liberdade?

Não duraremos para a eternidade:
se as horas do prazer só vêm e vão,
fodamos já, que é curta a nossa idade.

Posto ser sempre muito difícil e temerário falarmos elogiosamente sobre a obra daqueles a quem queremos bem e admiramos, por não dispormos da isenção necessária para a emissão de uma opinião imune a essa influência, é que esse “não dizer nada” desta crônica sobre a poesia de Maria da Conceição Paranhos, não é, senão, mostrar a quem de direito como se faz urgente a publicação de mais livros seus, pois possui, a mestra, hoje, um arsenal de boa poesia para se imprimir em qualquer compêndio. Sobretudo, penso ser urgente e necessária a publicação de toda a sua poesia erótica, édita e inédita, capaz de se converter em um marco do gênero em língua portuguesa.


ENTREVISTA COM MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS

Gustavo Felicíssimo – Professora, poetisa e crítica literária, contista, romancista, cronista e pesquisadora, fluente em diversos idiomas, inúmeros livros publicados. Figura de ponta da poesia baiana desde a década de 60. Quando vão te chamar para a Academia de Letras da Bahia?
Maria da Conceição Paranhos
– Ninguém chama ninguém para as Academias... Provavelmente algumas conversas prévias, alguns interesses políticos guiam a escolha do futuro acadêmico. Por votação, claro, pelo que ouvi contar. Particularmente, creio não fazer o perfil de acadêmica de academias de letras - de malhação, talvez. Meu personal trainer sempre me solicita muito trabalho de corpo, e trabalhar é via de acesso à vida e à vida social. Quanto ao que você se refere ter eu incorporado à minha pessoa, trata-se de ora destinação, desígnio (ficcionista / narradora, poeta, outras artes), ora genética combinada com algum esforço (várias línguas), ora contingências profissionais enquanto professora. De ponta? Sou de ponta esquerda para sempre. A favor, portanto, das forças processuais irrestritas da paridade de condição existencial dos seres humanos em sociedade.

GF – Como a senhora conceitua a poesia e o poema em si?
MCP
– Poesia é viver o mundo como se o inaugurasse, seria uma definição? Poesia é prazer de fonemas rolando na boca e criando sons, significações, expressão do mundo experienciado pela voz por detrás do eu poético. Poema é lua-de-mel com linguagem e língua nativa, os manes observando, intervindo e aconselhando num círculo de formas e significações de amores idos e vividos, digamos assim, para designar os poetas e artistas que nos cercaram desde sempre. Poema é também inauguração – da linguagem desta vez.

GF – Em que pese ter trazido maior liberdade e certo sentido de brasilidade à nossa poesia, o Modernismo, por outro lado, segundo algum dos seus críticos, também nos prestou algum desserviço, propiciando justamente a partir dessa liberdade, que se caísse na permissividade e no vulgarismo. Como a senhora vê essa questão?
MCP
– O Modernismo no Brasil foi um artefato de vanguarda de programação. Houve incalculáveis perdas e mal-entendidos que persistem, a exemplo do que se pensa ser poesia – verso livre, poema curto, poema-piada – que preexistiam, aliás, de modo não programático. Em verdade, o momento histórico de maior liberdade formal e inventividade na poesia – inclusive a brasileira – foi o Romantismo, como estilo de época, claro. O repúdio modernista ao Parnasianismo, ao Simbolismo e ao próprio Romantismo se foi benéfico no que diz respeito ao epigonismo, foi e é lamentável enquanto desfeiteia a face espaço-temporal da poesia e a faz ahistórica, distanciando-a, portanto, do pulsar expressional autenticamente brasileiro. Claro, o Modernismo de programação, em termos de avaliação crítica de suas três fases (conforme a historiografia brasileira divisou), não consegue abafar a voz dos verdadeiros poetas, mesmo daqueles como Mário de Andrade, Manoel Bandeira e Jorge de Lima – que se forçaram a ser modernistas à la carte.

GF – A chamada pós-modernidade e a ditadura midiática chegam a te apavorar?
MCP
– Por que o fariam? Vivemos mergulhados nesse caldo sócio-artístico-cultural e assim nos movemos – de modo crítico desejavelmente, sem que nossa percepção amorteça com os chavões já estratificados da pós-modernidade palradora ou o anestesia da mídia.

GF – Como a senhora viu a bienal do vazio, em São Paulo? Quem merece mais a cadeia, a tal pichadora ou os seus curadores?
MCP
– Olhe, não tomo partido não. Não porque tenha receio de me posicionar, mas porque gato e rato são pares inseparáveis e volta e meia começa esse minueto macabro.
A pichadora é ex-cêntrica, não é mesmo? Bem maluca. Se pensou em contribuir para com o estado mórbido de nossa cultura contemporânea, conseguiu... Os curadores, como você diz, transitam em todas as instâncias da cultura com sua armadura viciada de vícios seculares. Preferirei sempre o homem anônimo que presencia e repudia esses tristes espetáculos de uma sociedade melancólica e agonizante, geradora de subprodutos culturais.

Um comentário:

neuza pinheiro disse...

Gustavo

cheguei a estralar a língua lendo -
quase ouvindo - a fala certeira, encorpada e sinuosa de Maria Conceição Paranhos. E bebe-se com gosto, o poema licoroso.
E brinquem aí, saltando, cantando e rindo, no carnaval da cidade, nesses lugares que vc relata no seu poema, como se fosse irreal tanta naturalidade.
Vida longa para sua Sopa!!!