quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Ariano Suassuna e o retrato de Camões

Décimas ante um retrato de Camões é um dos poemas mais bem realizados de Ariano Suassuna. Há meses o tenho lido e relido, impressionado com a exatidão de cada palavra, cada metáfora, e com a sua musicalidade. Pesquisando, descobri que fora inspirado por um desenho de Camões, feito por Aloísio Magalhães, artista plástico e designer pernambucano.
O primeiro aspecto que nos chama a atenção nesse poema é a sua forma, toda vazada em Martelo Agalopado, que é a configuração, por excelência, dos cantadores nordestinos. Diante do retrato de Camões, e porque não, diante de Camões, Ariano é o desenhista da palavra a retraçar a expressão misteriosa, uma espécie de significante de uma vida.
No poema, Ariano privilegia certos vocábulos que, por virem grafados em letra maiúscula, tornam-se insígnias a serem decifradas pelo leitor, como a palavra “Olhos”, no oitavo verso da primeira estrofe, uma referência direta ao fato de Camões, quando servindo o exército português em África, ter tido o olho direito inutilizado. É o mesmo caso da palavra “Rei” (quarto verso da segunda estrofe), uma provável alusão ao mitológico Dom Sebastião, a quem Os Lusíadas é dedicado.
Atentar ainda para a teia de metáforas que compõem a parte final do poema, em que o rosto de Camões é comparado a uma caravela, cuja fronte é cortadora proa e a barba barroca é Quilha e madeirame. Concluindo a passagem, uma referência à Infanta Dona Maria, filha de Dom Manuel, um dos amores do poeta, simbolizada neste verso: E o Cedro, a Infanta, a coifa de beirame.
A última estrofe é quase uma oração, de um poeta a outro, um pedido para que o anjo do poeta maior receba o seu poema numa Páscoa de fogo e tenso Canto. O resultado é uma composição singular, em que, com perspicácia, Ariano consegue seu intento maior, o de traçar um retrato verbal da imagem à sua frente ao mesmo tempo em que estabelece um diálogo em alto nível com o maior poeta da língua portuguesa.
Sem mais delongas, vamos então, ao poema.

Décimas ante um retrato de Camões
       Ariano Suassuna

Se, na noite de chuva, a Tempestade
em solitários galhos acoitados,
revivesse os Navios naufragados
e o travoso gemer da Soledade;
se, da grave assonância da Vontade
entrevesse se pudesse o sacrifício
nesse claro e cansado Frontispício
quem, mais do que teus Olhos, cantaria
da vida o Caso cego e a galhardia,
a Luz flamante e o sacro Desperdício?

Teus olhos! Mas quem pode apaziguá-los?
Se, num, a flecha agónica demora,
noutro há bruma, salgueiro e Harpa sonora,
entre os passos do Rei com seus vassalos.
O pó e o sangue,as patas dos Cavalos
repousam nesse sulco fatigado.
E, se o bravo Queixume informulado
evoca os destroços areais,
o ressonar dos Bosques provençais
doura na Morte a mágoa do pecado.

Pensar que foste criança e que aspiraste
o cheiro da Madeira mal queimada;
que, ao perseguir, insone, a Madrugada,
a chama do Desterro desejaste.
O Sal marinho, as folhas que esmagaste,
e vida e nome, pássaro e Memória.
Pois, se Fortuna e treva derisória
urdiram tua Sorte alada e escura,
foi que o porvir tecera, na Espessura,
da Cadência já morta o Canto e a glória.

Pureza e dolo. A Sombra se amontoa
- destroço ressurrecto e trespassado -
na prisão a quem a um tempo foste atado,
no Barco que te chama e te enevoa.
Debalde! A Fonte é cortadora Proa,
barba barroca é Quilha e madeirame.
E o Cedro, a Infanta, a coifa de beirame,
tudo isso e tudo mais que não se exprime
- que não se diz - e é o que talvez redime
o atravessar das águas e o Velame.

Assim, não mais o som desse Acalanto,
não mais o Apelo, só, do já passado:
que teu Anjo o receba, dissipado,
numa Páscoa de fogo e tenso Canto.
Pois se o Eco de sono e louro acanto
não te pôde levar o que pressente,
num sussurro fraterno e Sopro ardente
chegue a ti meu Duende extraviado
e o Sonho, anseio extinto e renovado,
que é Pena e mudez de meu presente.

Em: O Pasto incendiado -1953.

Um comentário:

Anônimo disse...

belíssimo poema, eu não conhecia. estou mt cansado. vou dormir pra acordar amanhã e lê-lo melhor e lê-lo mais.

raimundo bernardes