Na
postagem anterior, publicamos um poema da polonesa Wislawa Szymborska que versa
sobre o comprimido, sua eficácia e praticidade. Imediatamente lembrei-me de João
Cabral de Melo Neto, do seu Num Monumento
à Aspirina, publicado originalmente em A Educação Pela Pedra, obra de 1966.
Mas
não é apenas a coincidência temática deste caso que une poetas tão distantes.
Em ambos encontramos uma poesia que reflete ao mesmo tempo em que refrata a
vida cotidiana, as coisas concretas. Trata-se de poetas bastante prosaicos.
Embora isso, suas criações são sofisticadas e por isso conseguem encantar o
leitor.
Cabral,
no poema, trata a Aspirina como um remédio milagroso, o que todos os
comprimidos parecem ser, “de emprego fácil, portátil e barato” imunes às
reviravoltas do tempo, funcionando a todo o momento. Um sol “polido a esmeril e
repolido a lima” que torna a vida menos dolorida e ainda “reafina” o sangue,
como o próprio autor expõe no último verso, reduzindo assim, segundo a ciência,
os riscos de acidentes cardiovasculares. Enfim, um comprimido, e como tal,
digno da melhor poesia.
Num Monumento à Aspirina
João Cabral de Melo Neto
Claramente:
o mais prático dos sóis,
o
sol de um comprimido de aspirina:
de
emprego fácil, portátil e barato,
compacto
de sol na lápide sucinta.
Principalmente
porque, sol artificial,
que
nada limita a funcionar de dia,
que
a noite não expulsa, cada noite,
sol
imune às leis de meteorologia,
a
toda hora em que se necessita dele
levanta
e vem (sempre num claro dia):
acende,
para secar a aniagem da alma,
quará-la,
em linhos de um meio-dia.
***
Convergem:
a aparência e os efeitos
da
lente do comprimido de aspirina:
o
acabamento esmerado desse cristal,
polido
a esmeril e repolido a lima,
prefigura
o clima onde ele faz viver
e
o cartesiano de tudo nesse clima.
De
outro lado, porque lente interna,
de
uso interno, por detrás da retina,
não
serve exclusivamente para o olho
a
lente, ou o comprimido de aspirina:
ela
reenfoca, para o corpo inteiro,
o
borroso de ao redor, e o reafina.
Um comentário:
De quem domina a arte (seu fazer - poiésis).
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