sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Aspirina & Poesia


Na postagem anterior, publicamos um poema da polonesa Wislawa Szymborska que versa sobre o comprimido, sua eficácia e praticidade. Imediatamente lembrei-me de João Cabral de Melo Neto, do seu Num Monumento à Aspirina, publicado originalmente em A Educação Pela Pedra, obra de 1966.
Mas não é apenas a coincidência temática deste caso que une poetas tão distantes. Em ambos encontramos uma poesia que reflete ao mesmo tempo em que refrata a vida cotidiana, as coisas concretas. Trata-se de poetas bastante prosaicos. Embora isso, suas criações são sofisticadas e por isso conseguem encantar o leitor.
Cabral, no poema, trata a Aspirina como um remédio milagroso, o que todos os comprimidos parecem ser, “de emprego fácil, portátil e barato” imunes às reviravoltas do tempo, funcionando a todo o momento. Um sol “polido a esmeril e repolido a lima” que torna a vida menos dolorida e ainda “reafina” o sangue, como o próprio autor expõe no último verso, reduzindo assim, segundo a ciência, os riscos de acidentes cardiovasculares. Enfim, um comprimido, e como tal, digno da melhor poesia.

Num Monumento à Aspirina
João Cabral de Melo Neto

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

***

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

Um comentário:

BAR DO BARDO disse...

De quem domina a arte (seu fazer - poiésis).