Décimas ante um retrato
de Camões é um dos poemas mais bem realizados de Ariano
Suassuna. Há meses o tenho lido e relido, impressionado com a exatidão de cada
palavra, cada metáfora, e com a sua musicalidade. Pesquisando, descobri que
fora inspirado por um desenho de Camões, feito por Aloísio Magalhães, artista
plástico e designer pernambucano.
O
primeiro aspecto que nos chama a atenção nesse poema é a sua forma, toda vazada
em Martelo Agalopado, que é a configuração, por excelência, dos cantadores
nordestinos. Diante do retrato de Camões, e porque não, diante de Camões, Ariano
é o desenhista da palavra a retraçar a expressão misteriosa, uma espécie de
significante de uma vida.
No
poema, Ariano privilegia certos vocábulos que, por virem grafados em letra
maiúscula, tornam-se insígnias a serem decifradas pelo leitor, como a palavra “Olhos”,
no oitavo verso da primeira estrofe, uma referência direta ao fato de Camões,
quando servindo o exército português em África, ter tido o olho direito
inutilizado. É o mesmo caso da palavra “Rei” (quarto verso da segunda estrofe),
uma provável alusão ao mitológico Dom Sebastião, a quem Os Lusíadas é dedicado.
Atentar
ainda para a teia de metáforas que compõem a parte final do poema, em que o
rosto de Camões é comparado a uma caravela, cuja fronte é cortadora proa e a barba
barroca é Quilha e madeirame. Concluindo a passagem, uma referência à
Infanta Dona Maria, filha de Dom Manuel, um dos amores do poeta, simbolizada neste
verso: E o Cedro, a Infanta, a coifa de
beirame.
A
última estrofe é quase uma oração, de um poeta a outro, um pedido para que o anjo
do poeta maior receba o seu poema numa
Páscoa de fogo e tenso Canto. O resultado é uma composição singular, em
que, com perspicácia, Ariano consegue seu intento maior, o de traçar um retrato
verbal da imagem à sua frente ao mesmo tempo em que estabelece um diálogo em
alto nível com o maior poeta da língua portuguesa.
Sem
mais delongas, vamos então, ao poema.
Décimas
ante um retrato de Camões
Ariano
Suassuna
Se, na noite de chuva,
a Tempestade
em solitários galhos
acoitados,
revivesse os Navios
naufragados
e o travoso gemer da
Soledade;
se, da grave assonância
da Vontade
entrevesse se pudesse o
sacrifício
nesse claro e cansado
Frontispício
quem, mais do que teus
Olhos, cantaria
da vida o Caso cego e a
galhardia,
a Luz flamante e o
sacro Desperdício?
Teus olhos! Mas quem
pode apaziguá-los?
Se, num, a flecha
agónica demora,
noutro há bruma,
salgueiro e Harpa sonora,
entre os passos do Rei
com seus vassalos.
O pó e o sangue,as
patas dos Cavalos
repousam nesse sulco
fatigado.
E, se o bravo Queixume
informulado
evoca os destroços
areais,
o ressonar dos Bosques
provençais
doura na Morte a mágoa
do pecado.
Pensar que foste
criança e que aspiraste
o cheiro da Madeira mal
queimada;
que, ao perseguir,
insone, a Madrugada,
a chama do Desterro
desejaste.
O Sal marinho, as
folhas que esmagaste,
e vida e nome, pássaro
e Memória.
Pois, se Fortuna e
treva derisória
urdiram tua Sorte alada
e escura,
foi que o porvir
tecera, na Espessura,
da Cadência já morta o
Canto e a glória.
Pureza e dolo. A Sombra
se amontoa
- destroço ressurrecto
e trespassado -
na prisão a quem a um
tempo foste atado,
no Barco que te chama e
te enevoa.
Debalde! A Fonte é
cortadora Proa,
barba barroca é Quilha
e madeirame.
E o Cedro, a Infanta, a
coifa de beirame,
tudo isso e tudo mais
que não se exprime
- que não se diz - e é
o que talvez redime
o atravessar das águas
e o Velame.
Assim, não mais o som
desse Acalanto,
não mais o Apelo, só,
do já passado:
que teu Anjo o receba,
dissipado,
numa Páscoa de fogo e
tenso Canto.
Pois se o Eco de sono e
louro acanto
não te pôde levar o que
pressente,
num sussurro fraterno e
Sopro ardente
chegue a ti meu Duende
extraviado
e o Sonho, anseio
extinto e renovado,
que é Pena e mudez de
meu presente.
Em: O Pasto incendiado
-1953.
Um comentário:
belíssimo poema, eu não conhecia. estou mt cansado. vou dormir pra acordar amanhã e lê-lo melhor e lê-lo mais.
raimundo bernardes
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