terça-feira, 10 de agosto de 2010

ENTREVISTA COM JORGE AMADO

Hoje, 10 de agosto, dia em que Jorge Amado completaria 98 anos se vivo estivesse, reproduzo uma belíssima entrevista autobiográfica, talvez a mais importante que o autor de “Mar Morto” concedeu em toda sua vida. Ocorrida em julho de 1981 ao jornalista Antônio Roberto Espinosa para o caderno Literatura Comentada da Editora Abril.

É PRECISO VIVER ARDENTEMENTE

LITERATURA COMENTADA - Há meio século, Jorge Amado, você lan­çou seu primeiro livro. Em setembro de 1981 comemora-se o cinqüentená­rio de O País do Carnaval. Esta entre­vista será incluída num livro dedicado especialmente a você, que será lança­do no dia 10 de agosto, exatamente o dia em que você estará completando 69 anos de idade. Nossa intenção é fa­zer uma entrevista biográfica. Mas, nu­ma entrevista de 1980, à revista france­sa Lui, você disse que não gostava de falar de si mesmo. Por quê?
JORGE AMADO
- É verdade, não gosto. Tem gente que adora fa­lar de si próprio, alguns porque não têm importância nenhuma e falam para se dar importância, e outros, que são importantes, falam porque gostam. Agora, eu não sou importan­te e não gosto de falar sobre mim; aliás, não gosto nem de ouvir falar a meu respeito: fico encabuladíssimo, fico assim sem jeito... eu não gosto, é uma maneira de ser.

LC - Portanto, é normal que o públi­co tenha uma grande curiosidade so­bre o homem Jorge Amado. Em grande parte, os leitores de Literatura Comentada são jovens que não viveram tudo isso e querem saber suas opiniões, suas versões. Insistindo: essa entrevista tem um objetivo basicamente biográfico.
JA
- Está bem, concordo. Estou às ordens. Toca o bonde!

LC - Para começar, você poderia fa­lar um pouco sobre seu pai, João Ama­do de Faria, e sobre dona Eulália Leal, a dona Lalu, sua mãe.
JA
- Eu quero falar um pouco tam­bém sobre o meu nascimento porque há uma coisa controvertida. Há notícias diferentes, erradas. Há muitíssimos anos, na Enciclopédia Larousse, da França, existe um verbete que me dá como nascido em Piranji. Pi­ranji é uma coisa que não existe mais. Deve existir outro no Brasil, porque aquele teve que mudar de no­me, passou a ser Itajuípe. Outro dia, num texto que escrevi para uma re­vista que dedicou um número a mim, a Vogue, eu disse que não nas­ci em Piranji, ao contrário, Piranji eu vi nascer. Eu assisti ao seu nasci­mento, desde as primeiras casas que foram construídas.
Em geral, me dão como nascido em Ilhéus, o que é muito compreen­sível, pois eu fui pra Ilhéus com um ano, ou, para ser exato, com um ano e cinco meses, pois fui pra lá em janeiro de 14 e nasci em agosto de 12. Mas eu nasci realmente numa fazen­da de cacau que meu pai estava montando, perto de um arraial cha­mado Ferradas, distrito do municí­pio de Itabuna. O nome da fazenda era Auricídia... hoje, o arraial cres­ceu, chegou lá, chegou até a casa on­de nasci. Aliás, faz poucos anos, eu estive lá e a população foi muito ge­nerosa comigo, muito cordial, todo mundo me esperando na rua...
Sou nascido em Ferradas, distrito de Itabuna, sou itabunense, ou seja, sou um grapiúna da região do ca­cau. Mas Ilhéus também é minha ci­dade no sentido de que é o lugar on­de eu vivi a minha infância - a in­fância, um tempo muito importante na vida da gente. E também a mi­nha adolescência, as férias. Ilhéus é uma cidade extremamente ligada à minha vida, como todo o sul da Ba­hia, toda a região do cacau. Itabuna fica a 25 quilômetros de Ilhéus. Quando estava em Ilhéus, ia pra Ita­buna sempre. Quando morreu meu irmão Jofre, nós fomos pra Itabuna porque minha mãe não quis ficar em Ilhéus. Passamos lá um ano e tanto, foi quando nasceu meu irmão Joelson, que é médico e mora em São Paulo. Dos três irmãos, o único nascido em Ilhéus é James.
Assim, eu sou, ao mesmo tempo, um menino de Itabuna e Ilhéus, co­mo o Adonias Filho, que é nascido em ltajuípe, o antigo Piranji, e cria­do em Ilhéus.

LC - Seu pai era fazendeiro, pioneiro do cacau ...
JA
- Meu pai foi um homem que viera muito cedo de Sergipe, da cida­de de Estância. Viera no início do sé­culo, quando das grandes lutas en­volvendo o cacau, ele se envolveu nessas lutas, participou delas...

LC - Lutas pela posse das terras?
JA
- A terra não era de ninguém, era mata, ele veio para ocupar a ma­ta. A luta era para ver quem ficava com as melhores terras para plantar cacau. Meu pai plantou essa fazenda Auricídia - aliás, a saga que es­tá contada em Terras do Sem Fim - e, bastante tempo depois, casou­-se com minha mãe, dona Eulália Leal, que também era de uma famí­lia de desbravadores da terra.

LC - Em conseqüência você acabou fugindo. Conta essa fuga.
JA
- Quando terminei o segundo ano, pedi a meu pai que não me mandasse mais pro colégio interno. Como eu estava indo bem na escola, o Vieira era o melhor colégio de Salvador e meu pai podia pagar, ele dis­se que sentia muito, mas como eu já estava lá, queria que eu continuas­se. Cheguei aqui pra ir pro Vieira e o meu tio Alvaro, esse personagem formidável da minha infância, me le­vou até a porta do colégio e me dei­xou lá com o dinheiro pra pagar as despesas.
Bem, aí ele foi para um lado, eu fui pro outro e fugi. Eu tinha menos de treze anos naquela época. Foi uma coisa muito importante pra mim essa fuga.

LC - E foi pra onde?
J A
- Eu atravessei todo o sertão da Bahia até Sergipe. É uma via­gem hoje, você pode fazer em horas... tão poucas horas, mas, na­quele tempo, eu levei dois meses pa­ra atravessar, dois meses vagabun­dando.
Pelo caminho, eu fui parando, fa­zendo amizades. Meu dinheiro aca­bou logo. Gastei rapidamente o di­nheiro que tinha, logo no início da viagem. Comprei uma coleção de re­vistas de cinema num sebo de li­vros. Mas consegui atravessar e vi­ver sem nenhuma dificuldade. Cheguei até Itaporanga, onde vivia meu avô, o velho Zé Amado, pai de meu pai. E o curioso é que meu pai dei­xou.

LC - Ficou acompanhando à distân­cia?
JA
- À distância. Pronto, natural­mente para intervir se qualquer coi­sa de pior me passasse, mas ele dei­xou... Depois, quando chegou junho, as férias de São João, meu pai pediu pra tio Álvaro ir me buscar.
Eu vim certo que ia levar uma surra, mas quando cheguei em casa ele só perguntou por que tinha fugi­do. Eu disse que não queria mais es­tudar. Pois muito bem, ele respon­deu, você vai pra fazenda.

LC - Foi plantar cacau?
JA
- Eu fiquei lá seis meses. No fim do ano, ele me perguntou se queria voltar a estudar e eu disse que queria. Ele me mandou pro ginásio Ipiranga, um internato que fica aqui pertinho. No Ipiranga, fui cole­ga do Adonias Filho. No Vieira, fui contemporâneo de muita gente de­pois importante, como o Mirabeau Sampaio, meu amigo até hoje, o Gio­vanni Guimarães, o Paulo Peltier de Queirós, o Antônio Balbino, que foi governador da Bahia, o jurista Maximiano da Mata Teixeira, o poeta Hélio Simões, o jornalista Jorge Calmon.

LC - Só que, apesar de tudo, você acabou voltando a um internato,
JA
- O Ipiranga era um internato muito mais brando. A gente pulava o muro todas as noites e ia pras ca­sas de putas, ia pras festas, para a rua Carlos Gomes, pro beco de Ma­ria Paz ... eu fui amigado com uma rapariga chamada Benedita e então, toda noite, à meia-noite, pulava o muro e ia ficar com ela.
O Ipiranga era muito mais livre que o Antônio Vieira. Isaías Alves de Almeida era um homem que dei­xava o barco correr. A meu ver, tinha mais sensibilidade pra tratar com os jovens do que os jesuítas- ­hoje não, mas, naquela época, os pa­dres eram mais presos, mais conser­vadores. Um grupo de internos pula­va o muro do colégio todas as noites e saía para a vida.
Passei lá um ano mas, no fim, já tinha liberdade de sair sem precisar fugir. No outro ano, já estava com catorze anos de idade, não voltei mais para o internato, cumprira mi­nhas primeiras prisões.

LC - Em 1927, ao voltar pra Salva­dor, você fica externo do colégio e pu­blica um poema?
JA
- Ah! publicado na Luva, uma revista considerada importante. O tí­tulo era Poema ou Prosa: Uma sáti­ra aos poemas da época, poema­-prosa, prosa-poema... é uma coisa as­sim, uma espécie de gozação, um cer­to tipo de poesia modernista.
Bem, ao voltar, eu comecei a vi­ver a vida do povo da Bahia. Para mim, foi a coisa mais importante de todas. Eu tinha catorze anos e come­cei a trabalhar em jornal, primeiro no Diário da Bahia, depois num jornal chamado O Imparcial - onde eu viria a trabalhar de novo, em 43, depois de ser solto pela polícia do Rio. Como eu dizia, em 27 comecei a trabalhar em jornal e a viver mistu­rado com o povo da Bahia. Era o pior estudante do mundo... vivia num casarão, no Pelourinho. Hoje tem uma placa no sobrado onde ha­bitei, atualmente um hotel. Uma placa, falando de Suor, que eu iria escrever em 34. Eu morava naquele casarão, numa água-furtada, nos al­tos. Quando morei lá, via aqueles ra­tos que subiam escada acima ... era cada rato deste tamanho, um negó­cio terrível! Mas eu não achava ter­rível na época, eu era um garoto. Co­mia nos botecos mais incríveis, por­que não tinha dinheiro.

LC - Doenças venéreas já com cator­ze, quinze anos?
JA
- E, eu tinha uma vida muito ativa e misturada: festinhas popula­res, casas de raparigas. Posso dizer que a minha educação, em grande parte, se processou nas casas de ra­parigas.

LC - Enfim, para um adolescente dos anos 20, você tinha uma boa vida?
JA
- E tem mais. O pessoal dos sa­veiros, por exemplo, era todo meu amigo. Eu saía, tomava um saveiro, ia pra Cachoeira, Valença, Porto Se­guro, Maraú. Eu tinha uma vida muito livre, admirável no sentido de gostosa, de agradável.

LC - No início dessa entrevista, você disse que adquiriu consciência do pro­blema racial em Salvador, em 1927...
JA
- Foi quando eu passei a viver misturado com o povo da Bahia que o problema racial começou a me afe­tar. Foi sobretudo a minha relação com o povo dos candomblés, vendo a perseguição terrível de que eram ob­jeto os cultos afro-brasileiros.
Mas eu nunca tive dúvidas: o pro­blema racial é conseqüência do pro­blema social. Não existe um proble­ma racial isolado do contexto social. Se você isolar, vai errar na apreciação do problema e na busca das soluções. A solução não é você botar os pretos e os brancos a se matarem en­tre si.

LC - A solução é fazê-Ios dormir uns com os outros?
JA
- Exato. Não há outra solução para o problema de raça no mundo senão a mistura. Não há outra e, se alguém tiver, que me apresente... quero ver! Não é um racismo diferente, seja racismo preto, seja racismo árabe ou judeu, que vai acabar com o problema. Você não acaba com o racismo botando racismo con­tra racismo. Isso é uma coisa idiota, '' que está em moda, mas é uma moda superficial... é como uma dessas erupções que se tem na pele, brotoejas, coceiras, que acabam passando.

LC - Você já fazia literatura nesse pe­ríodo?
JA
- Subliteratura. Naquele tem­po, as idéias viajavam em navio de carga e levavam anos pra chegar. O Modernismo, que explodiu em São Paulo em 22, levou cinco, seis anos pra chegar aqui... chegou por volta de 26, 27, com o primeiro livro de Eugênio Gomes, o poema Moema, com o primeiro livro de Godofredo Filho, A Balada de Ouro Preto. Por volta de 27, formaram-se aqui três grupos de jovens: o grupo Arco e Fle­cha, que publicava a revista Arco e Flecha, o Samba, que tinha a revis­ta Samba, e a Academia dos Rebel­des, que editava a revista Meridia­no.
O Arco e Flecha tinha como guru o Carlos Chiacchio, crítico literário do jornal A Tarde,·e reuniu pessoas como Pedro Aguiar, Hélio Simões, Carvalho Filho, o próprio Godofredo - Godofredo era mais velho -, Queirós Júnior e Eurico Alves.
O nosso grupo era a Academia dos Rebeldes, de uma rebeldia arretada. Na Academia estavam pessoas que depois foram literariamente muito importantes: o contista Dias da Cos­ta, o grande ensaísta e etnógrafo Edison Carneiro, o grande poeta So­sígenes Costa, João Cordeiro, Wal­ter da Silveira, Clóvis Amorim, Ai­dano do Couto Ferraz. Nosso guru era um homem chamado Pinheiro Viegas, poeta panfletário muito im­portante.
Era um homem de quase oitenta anos, que é um pouco o Pe­dro Ticiano do meu primeiro, livro, O País do Carnaval. Eu e o Edison Carneiro vivíamos juntos o dia intei­ro. Nós, mais o Dias da Costa, íamos juntos pras casas de mulheres, vivía­mos comendo no mercado das Sete Portas ... comendo. sarapatel à meia­ noite na feira de Água de Meninos.
Brigávamos uns grupos com os ou­tros, mas todos queríamos a mesma coisa, a renovação literária e modifi­cações na sociedade. Era o tempo do "tenentismo".
Nós éramos muito ligados à vida popular. O Edison já começava seus estudos de etnografia, de antro­pologia social. Com ele e Artur Ra­mos, comecei a freqüentar os candomblés. Outro dia, a Menininha de Gantois recordava que ela me conhe­ce há mais de cinqüenta anos, daí pra lá... ela jovem mãe-de-santo, ho­je está com 84 anos, devia ter uns, trinta anos.
Nessa época me tornei amigo do pai-de-santo Procópio. Foi ele quem me deu o primeiro título de candom­blé, Ogan de Oxóssi. Procópio foi o pai-de-santo que mais perseguição sofreu da polícia por causa da questão religiosa. Ele tinha as costas marcadas pelas torturas. A questão religiosa, racial, era muito mais in­tensa do que hoje... muito mais vio­lenta.
A polícia chegava, invadia, pren­dia. Eu marquei isso, primeiro em Jubiabá, depois em Tenda dos Mila­gres.

LC - Aliás, você é um dos doze Obás da Bahia, não?
JA
- Sou, o Carybé é outro e o Caymmi também. E não é por aca­so. Tenho vários títulos, um título dado por Joãozinho da Goméia, Ogan de Iansã no candomblé da Go­méia. Joãozinho foi meu amigo e seu caboclo Pedra Preta foi herdado pela minha amiga Mirinha do Portão, que dançou tão bonito outro dia na festa do povo pra Carybe. Es­sa gente toda é minha amiga, eu sou um deles.
Não é por acaso que tenho esses tí­tulos. Desde criança eu vivo mistu­rado com o povo dos candomblés. Em 43, quando a polícia do Rio me soltou e me forçou a viver em Salva­dor - e eu vivi aqui até 44, dois anos -, não fiz outra coisa senão ir à polícia buscar as armas de santo e as coisas todas dos candomblés que a polícia invadia, tomava os emble­mas sagrados e os levava. Eu ia lutar para tirar meus amigos da ca­deia ... Fui amigo de Procópio, de Aninha, a mãe- de-santo Aninha, uma figura extraordinária de mu­lher. Quando ela morreu, em 38, o enterro dela foi acompanhado por 5 mil pessoas, um enterro nagô, mag­nífico.

LC - Logo depois disso, Jorge, você se ligou ao Partido Comunista, um par­tido marxista, materialista ...
JA
- Em Tenda dos Milagres, que é o romance meu de que mais gosto, a certa altura, o professor de medici­na pergunta a Pedro Archanjo como é que ele, sendo um materialista, conciliava isso com sua atividade no candomblé. Pedro Archanjo respon­deu que "o meu materialismo não me limita".
Eu sou materialista, mas meu ma­terialismo não me limita. Então, se o povo dos candomblés me dá um tí­tulo e eu aceito, eu tenho que cum­prir as obrigações desse título. Se­não, eu não estaria tendo com eles o mesmo tipo de relacionamento, de amizade que eles têm comigo. Por is­so, quando entro no Axé Opô Afon­já, com meus colares, faço tudo o que tenho que fazer e faço exatamen­te tudo com o maior prazer... Eu não poderia escrever sobre a Bahia, ter a pretensão de ser um romancista da Bahia se não conhecesse realmen­te por dentro, como eu conheço, os candomblés, que é a religião do povo da Bahia.

LC - Em 1935, você lançaria Jubiabá, em 1936 publicaria Mar Morto ... mas no começo de 1936 foi preso.
JA
- No começo de 36. Em novem­bro de 35, no dia 27, houve o levan­te do III Regimento de Infantaria. Fomos presos vários intelectuais... Eu acho que alguém que foi preso antes, foi espancado e falou. Graci­liano Ramos foi preso em Maceió e levado pro Rio. Eu fiquei preso dois meses na Polícia Central. Vários in­telectuais foram presos na época, Santa Rosa, Caio Prado Júnior, Di Cavalcanti, Hermes Lima, Eneida, Castro Rebelo, Aporelly, Álvaro Mo­reyra etc.

LC - Nunca te interrogaram?
JA
- Nunca me interrogaram. Fi­quei lá um bocado de tempo... era uma prisão muito ruim por ser na Policia Central, com presos sendo torturados à noite. Eu não fui tortu­rado, mas estive preso com gente que foi terrivelmente espancada.

LC - Você atribui sua prisão a seus li­vros?
JA
- Eu tive uma militância gran­de na Aliança Nacional Libertado­ra... O Congresso Juvenil Proletá­rio- Estudantil... não me lembro mais o nome, de 34, foi convocado com três assinaturas: a minha, a do Carlos Lacerda e a de um rapaz cujo nome não recordo, que era secretá­rio da Juventude Comunista.

LC - Só um parêntesis: em outras en­trevistas, em artigos e verbetes de enci­clopédia, consta que você só entrou no Partido Comunista em 1945.
JA
- Meu contato com o Partido é anterior a essa época. Em 45 minha militância fica pública. Eu era liga­do à juventude. Naquele tempo, ha­via Juventude Comunista.

LC - Como foi sua libertação?
JA
- Em certo momento me bota­ram em liberdade. Nunca me ouvi­ram. Fiquei dois meses lá, jogado. Saí, fui pra Sergipe, a cidade em que meu pai nasceu, Estância, e lá terminei Mar Morto. Em 37, a coisa tinha melhorado um pouco, acabara o estado de guerra, a candidatura de Zé Américo estava lançada. Aí eu viajei por toda a América Latina: Uruguai, Argentina, Chile, Méxi­co ... onde conheci Orozco e Rivera, escritores como Alfonsus Reves. E depois fui até os Estados Unidos, onde conheci Michael Gold, vários escritores, John dos Passos.

LC - Você voltou pouco antes do gol­pe do Estado Novo?
JA
- Eu cheguei a Belém em outu­bro. O Dalcídio Jurandir foi me ver às escondidas e disse pra eu sair imediatamente do Brasil que ia ha­ver um golpe. Ele achava que eu se­ria mais útil no exterior, pra gritar contra o golpe lá fora.

LC - Capitães da Areia tinha sido lan­çado em setembro, não?
JA
- Tinha saído e estava sendo apreendido. Em São Paulo, na Ba­hia, estava sendo queimado em pra­ça pública. Em Salvador tem até ata da queima... 1 694 exemplares dos meus romances queimados em pra­ça pública por ordem do comando da 6ª. Região Militar.

LC - Em 1945 você presidiu a delega­ção baiana e foi vice-presidente do Pri­meiro Congresso dos Escritores.
JA
- O Congresso foi a primeira de­monstração pública contra o Estado Novo.
Aqui na Bahia eu escrevi São Jor­ge dos Ilhéus e a primeira versão do Guia da Bahia de Todos os Santos, que teve sucessivas modificações pa­ra se atualizar. E escrevi uma peça de teatro, “D. Amor do Soldado”, pra Bibi Ferreira, que colocou em mi­nha mão um cheque de 20 contos, um dinheiro aloprado naquele tem­po... não resisti, aceitei e escrevi; só que quando terminei, ela já não ti­nha a companhia teatral.
Ai fui pra São Paulo, passei um ano em São Paulo, aceitei mudar porque o Partido decidiu que eu de­via ficar lá. Fui diretor do jornal do Partido, o Hoje, junto com o Caio Prado, o Clóvis Graciano...

LC - E acabou sendo deputado por São Paulo à Assembléia Constitu­inte?
JA
- Eu não queria ser candidato, aceitei por decisão do Partido e aca­bei eleito. O Partido disse: "Você se candidata e depois renuncia". Mas eu fui muito votado, fui um dos qua­tro eleitos, o mais votado foi o José Maria Crispim, o segundo foi o Os­valdo Pacheco, eu fui o terceiro e o quarto, um ferroviário, não lembro o nome dele ... Eu conheci muita gen­te do povo aí, nos comícios ... em San­tos eu tinha tanta popularidade que o Partido, para garantir a eleição do Osvaldo Pacheco, proibiu a ida das minhas cédulas pra lá. Considera­vam que eu estava eleito no Estado, o que era verdade.

LC - Você lembra quantos votos teve?
JA
- Não, não me lembro. Bem ... eu fui eleito, deixei minha carta de renúncia com o Partido e fui pro Uruguai com Zélia. Nós tínhamos casado em julho. Ela não conhecia o Uruguai. Quando estava lá, recebi um telegrama pedindo que eu voltas­se. Queriam que eu assumisse, por­que eu tinha tido uma grande vota­ção e o fato de eu renunciar podia soar mal junto àqueles que tinham votado em mim. Queriam que eu fi­casse três meses.

LC - Falando um pouco de coisas ínti­mas, você se casou em 1933 com Ma­tilde Garcia Rosa.
JA
- É verdade. Fui casado com ela até 44, quase dez anos.

LC - Tiveram filhos?
JA
- Tive uma filha, Lila, em 35, que morreu quando eu estava na Eu­ropa, ela estava com catorze anos.

LC - Sua atual esposa escreveu· Anar­quistas, Graças a Deus. No intervalo da conversa, ela disse que está escre­vendo um livro contando fatos de sua vida.
JA
- Zélia é uma ótima contadora de histórias.

LC - Desde quando vocês estão casa­dos?
JA
- Em 45 me casei com Zélia ... casei sem casar, porque naquele tempo não havia o divórcio. Ontem nós comemoramos três anos de casa­dos pela lei. Legalmente. E temos... faz... vai fazer 36 anos em julho que realmente somos companheiros.

LC - Seus filhos nasceram durante os cinco anos de Europa?
JA
- Não, João Jorge está com 33 anos, nasceu aqui em 47. Paloma nasceu em Praga, em 51, fará trinta anos em agosto.

Um comentário:

Hilton Deives Valeriano disse...

Gostei de você citar Mar Morto. Um livro que gosto muito. Jorge Amado soube nesse livro como poucos escrever uma prosa cheia de lirismo...Um abraço.