texto apresentado nesta quinta-feira, 23 de
agosto, no Seminário sobre o autor Capixaba, promovido pela Universidade
Federal do Espírito Santo
Rascunhos
do Absurdo[1],
obra de Jorge Elias Neto, se inicia com uma questão ontológica basilar: o
sentido do Ser. Sua lírica insiste em um discurso de cariz filosófico, marcadamente
existencialista, e reflete o esvaziamento de valores do homem moderno,
abandonado em si mesmo e desnorteado ante a desestabilização de verdades
universais, frente às quais está solitário, pois imerso em um processo de
massificação, reificação e desumanização das relações. Trata-se de uma poesia
contemporânea, poesia do desconexo, do descontínuo, fragmentada, cujo discurso
denuncia um mundo que se desestruturou, ao mesmo tempo é a poesia que busca,
nesse mesmo mundo, uma nova construção de sentido para o homem.
Criador
de imagens cortantes, observador e crítico da condição humana, Jorge Elias Neto,
desde Verdes Versos[2],
seguindo dictum próprio, chega ao seu
segundo livro propondo uma poesia que, carregada de um arsenal reflexivo, sabe que
o poema não é apenas um fenômeno de linguagem, mas também de idéias, devendo
partir da realidade vívida e vivida para a apreensão de um sentido maior. Desse
modo, o poeta constrói seus poemas tateando o indizível, em sua busca da ciência de desinventar (1º de
janeiro de 2008, p. 74), sem nunca perder de vista aqueles que nada entendem da solidão (idem).
Como
médico cardiologista, Jorge enfrenta no seu cotidiano inúmeras situações
limites entre vida e morte que ajudam a acentuar o caráter metafísico da sua
poesia, e isso, para o autor, tornou-se uma questão de vida: trabalhar a idéia de morte e entender a
multiplicidade de atitudes do homem frente a essa locomotiva... Por isso a
sua naturalidade poética não poderia ser outra: o Expressionismo
existencialista, no que este tem de mais visceral - ou como diz Jorge de Souza
Araujo a respeito da poesia de Adelmo Oliveira -, verdadeiramente íntimo e interiorizado, não desdobrável, não amoldável[3]
a circunstâncias outras que não seja a consciência de mundo, na qual predomina
a visão pessoal do artista e não uma poesia que aspire capturar a realidade,
mas que seja um reflexo da reflexão do poeta frente ao seu tempo. O poeta
transmite sua angústia criticando a exploração do homem pelo homem, toda sorte
de estupidez e misérias. Por isso,
Disseste
que a corda
apazigua
os desencantados.
Disseste
que a terra treme
nas
bordas do despenhadeiro.
A
terra não tem nada a ver
com
teu descontentamento.
Ela
é acima de qualquer suspeita.
É
que a luz só atinge tuas costas.
Hoje,
a estupidez não é mais um traço:
é
um demônio que se agiganta.
(Noir,
p. 58)
Em Ser e Tempo,
Heidegger propõe a pergunta acerca do sentido do ser. Pode-se dizer que tal
pergunta apresenta o propósito de retomar o antigo questionamento ontológico
sobre o ser dos homens, visando ao mesmo tempo uma explicitação da própria
compreensão de ser.
Jorge
Elias Neto encontrou na linguagem poética a sua maneira de investigar o ser
humano, seus desejos, seus medos e frustrações, ou seja, o que está interno em
nós e não a exteriorização, a superficialidade. É com a poesia, neste caso com
Rascunhos do Absurdo, que ele empreende a sua busca pelo sentido do Ser, pois
este não é o resultado de algo postiço ou acrescentado, mas um constituinte do
poeta enquanto indivíduo. E desse livro o leitor não sai incólume, pois os
melhores poemas nele inseridos são justamente aqueles que refletem o sentido
trágico da vida, justamente aqueles que ganham dimensão cada vez maior toda vez
que relido e repassado, como acontece aos “poemas gêmeos”, Corpo tombado (p. 64) e Poema
ao morto (p. 65), também a Circo
(p. 71) e Poema para o homem
contemporâneo (p. 77), assim como a outro belo espécime da fauna versificatória
brasileira, capaz de arrebentar a cabeça do leitor incauto, que é Cristo de pão:
Herdei
de meu pai
esse
Cristo forjado em miolo de pão.
Esse
crucifixo que, pacientemente,
foi
moldado no almoço de domingo;
em
seus dedos, amassado,
em
seus lábios umedecido.
Um
Deus criado
pelo
provedor de minha casa
durante
o eterno silêncio
comigo
repartido.
E
eu aprendi que da bolinha de massa
se
forja um ídolo.
Ao
final da refeição, meu pai me estendeu
o
Cristo na cruz.
Eu
o peguei
e
ele se partiu.
Foi
duro para mim
ver
Deus quebrar-se em minhas mãos.
(p.
79)
Trata-se
de um poema dessacralizador, desorientador. Logo no primeiro dístico o poeta nos
apresenta um “Cristo forjado em miolo de pão” para no final admitir que lhe
fora duro “ver Deus quebrar-se em minhas mãos”. Não se trata apenas,
possivelmente, da revelação de um “eu” profundo, descrente frente às “verdades”
seculares, mas de uma experiência
reputada indizível que expressa-se e comunica-se pela imagem[4].
Imagem que não explica, antes convida-nos
a recriá-la e, literalmente, a revê-la[5].
Nesse sentido, o poema é um intermédio entre uma experiência original,
avassaladora, e um conjunto de ações e vivências posteriores, que apenas
adquirem consistência e sentido com referência à experiência primeva,
fundadora, que o poema consagra no presente. E se é presente só existe neste agora e aqui de sua presença
entre os homens. Para ser presente o poema necessita fazer-se presente entre os
homens, encarnar na história[6].
Afinal, o homem é um ser histórico e fala das coisas que são suas e de seu
tempo.
O
tempo em Rascunhos do Absurdo, apenas para lembrarmos Vinícius de Morais, não
é “quando”, mas o presente. Essa constatação reflete no significado último do
poema que não é dito de maneira explícita, mas é o fundamento da poética de
Jorge Elias Neto até aqui. Poesia feita no presente, para o tempo presente e
para o advir, pelo menos enquanto o homem – ser temporal e relativo – for este
que vemos aí, no mundo, conquistador de espaços que mal são desbravados se transformam em cinzas.
Rascunhos do Absurdo é composto por
quatro capítulos: “Livro de Notas”, “O Estalo da Palavra”, “Gaza” e “O
encantamento do poeta Maratiba”, este último dedicado a Miguel Marvilla, também
poeta, amigo e incentivador de Jorge, falecido em seus braços, na emergência de
um hospital.
O
primeiro capítulo se configura por apresentar poemas extremamente líricos, muitos
deles nos remetem à própria poesia ou à função do poeta – / barriga de aluguel (Ventre Vazio, p. 29), ao convívio
familiar, como em Dever de Casa, um poema imagético e sensorial, quase
palpável, onde o poeta assegura à amada
Fazer
por onde
sempre
tê-la ao meu lado
para
dizer-te, sempre:
Eu
Te Amo.
(p.
39)
Suas palavras, sem qualquer
prolixidade, tornam seus pensamentos consecutivamente compreensíveis, levando o
poeta à busca de apurar seu discurso no sentido de transmitir o mais claramente
possível seu enunciado, pois são plasmadas com coloquialidade, sem perder a
elegância. É a necessidade de ser entendido e sua mensagem apreendida que
servem de alimento necessário à sede do poeta.
O segundo capítulo é marcado por aquela
temática que reflete o estranhamento do homem no mundo, impregnado por um
sentido de deslocamento frente à ruptura de valores da modernidade e à queda de
paradigmas, antes institucionalizados e agora questionados ou até mesmo
negados. É nessa atmosfera movediça da contemporaneidade que sobrevive o poeta.
Sua lírica reflete o esvaziamento de valores do homem moderno, abandonado em si
mesmo e desnorteado ante a desestabilização de verdades universais, como atesta
o exemplar poema A Prazo:
Levem-me
as horas
para
os caprichos mundanos!
Já
destaquei a etiqueta.
Tomei
posse do indivíduo.
Será
que não vêem
no
meu ante-braço
o
carimbo de “pago”?
(p.
63)
Esse poema capta e revela o momento
histórico da humanidade, em que o poeta tornou-se um alijado no seu tempo. Então
Já
que a palavra é uma puta:
rasguem o poema.
Já
que a rima é farta; e o poeta
um estorvo,
que
se recompense o primeiro idiota
a me cortar a carne.
(Balada
da Carne, p. 69)
Em Gaza, terceiro capítulo, Jorge
Elias Neto apresenta-nos uma poesia de forte apelo social e grande senso
humano, preocupada – naquele momento de sua escrita – com os últimos
desdobramentos do confronto entre palestinos e judeus, fazendo coro à
indignação que toma conta dos povos desde os tempos da criação do estado de
Israel, em 1948, quando Gandhi se manifestou dizendo que
O
que está acontecendo na Palestina, não é justificável por nenhuma moralidade ou
código de ética. Certamente, seria um crime contra a humanidade reduzir o
orgulho árabe para que a Palestina fosse entregue aos judeus parcialmente ou
totalmente como o lar nacional judaico[7].
Quase seis décadas após, José
Saramago se manifesta sobre o mesmo conflito, utilizando a imagem do franzino
Davi que mata em combate o gigante filisteu, Golias, dizendo que
Aquele
louro David de antanho sobrevoa de helicóptero as terras palestinas ocupadas e
dispara mísseis contra alvos inermes, aquele delicado David de outrora tripula
os mais poderosos tanques do mundo e esmaga e rebenta tudo o que encontra na
sua frente, aquele lírico David que cantava loas a Betsabé, encarnado agora na
figura gargantuesca de um criminoso de guerra chamado Ariel Sharon, lança a
"poética" mensagem de que primeiro é necessário esmagar os palestinos
para depois negociar com o que deles restar[8].
O fato é que Israel suscitou uma
sensibilização mundial em favor da causa palestina, inclusive por parte dos
poetas. Notoriamente, o poeta mais importante nesse contexto é o palestino
Mahmud Darwish (a quem essa parte do livro é dedicada), o precursor de uma
geração de autores da vertente denominada Poesia Palestina de Combate, surgida
após a ocupação de 1967, que inclui os palestinos Samikh Al Qassem, Fadwa Tukan
e Tawfiq Al Zayad. Em Gaza a poesia de Jorge Elias Neto comunga e se amalgama
ao canto desses tantos outros poetas em um grito uníssono, fazendo-se ouvir em
todos os cantos do planeta, pois retratam os absurdos e os horrores desse
conflito desigual e desumano.
Por detrás de todas as guerras percebe-se
a inteira ausência de amor ao próximo, que, na verdade, reforça no poeta (Jorge
Elias Neto) a incerteza quanto às verdades seculares, como a crença em um Deus
que já não é refúgio para suas angústias. O homem passa a ser o criador de suas
verdades e realidades, porém completamente aturdido pelo sentimento de
abandono, por isso diz-nos que Ao poema,
cabe / despejar sobre o chão, / e na cara dos facínoras, / uma resma de dúvidas
(A Praça, p.94), ao invés de bombas, deflagrando o absurdo do existir frente ao
mistério. E refletindo sobre o engajamento de Darwish (que fora expulso de sua
casa, com a família, pelo exército de Israel), Jorge refaz seu caminho, e na
celebração do viver encontra sentido na atitude exemplar do poeta palestino que
Não azulava as dúvidas com preces / e
entendia a sujeira como um vício da realidade.
Enfim, pensar e sentir estão
imbricados num propósito de induzir o homem à revelação da verdade do ser e ao
conhecimento de si. A poesia, nesse ínterim, torna-se a expressão maior de
significados do homem, transcendendo a superficialidade da expressão na busca
de se exprimir o inefável. Nesse contexto, pautado nas questões essenciais que
afligem o homem moderno, em que o ser se lança na investigação identitária de
si mesmo e no descortinar do sentido da vida, pulsante na concretude do mundo,
é que se enquadra Rascunhos do Absurdo, uma obra comprometida com o homem e com
a vida, em que o autor tece suas críticas ao mundo moderno, pragmático e
utilitarista, refletindo o espasmo do homem frente ao mundo por ele criado e
sua busca na ressignificação da vida.
[1] Neto, Jorge Elias. Vitória:
Flor&Cultura, 2010.
[2] Neto, Jorge Elias. Vitória:
Flor&Cultura, 2007.
[3] Oliveira, Adelmo. Poesia Seleta
de Adelmo Oliveira. Ilhéus: Mondrongo, 2012.
[4] Paz, Octavio. Signos em rotação,
Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1972.
[5] Idem.
[6] Ibidem.
[7] Disponível na internet, no site
do Comitê Democrático Palestino – CDP – Brasil. Visitado em 15/04/2011. Link:
http://somostodospalestinos.blogspot.com.br/2011/04/terceira-intifada-palestina.html.
[8]
Disponível na internet, no
site da Fundação José Saramago. Visitado em 10/01/2009. Link: http://caderno.josesaramago.org/20584.html.
3 comentários:
UM POETA QUE UNE A PALESTINA AO BRASIL!
Que maravilha ler um poeta brasileiro, no caso, Jorge Elias Neto, debruçando-se sobre a poesia de combate, do poeta maior da Palestina. Mahumud Darwich, em seu belo poema: "Carteira de Identidade", versa sobre o universo de perseguição que sofreu dos israelenses. "Registra-me/ sou árabe/ o número de minha identidade é cinquenta mil / tenho oito filhos / e o nono ... virá logo depois do verão / vais te irritar por acaso?" Parabéns aos dois poetas, Jorge Elias Neto e Gustavo Felicíssimo e ao poeta do Som dos Cavalos Selvagens, meu amigo Adelmo Oliveira. Abraço os quatro em fraternidade de mundos. Miguel Carneiro
Belo texto! Sobre um poeta de grande talento como o Jorge Elias Neto! Parabéns!
ótima defesa da poesia!
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