Acordo
nesta manhã de um domingo primaveril, nublado e renitente em Ilhéus, sem praia,
portanto, enquanto uma notícia me acerta o fígado como um cruzado certeiro de Éder
Jofre. Leio-a e silencio. Leio-a e entendo porque o céu está enegrecido: lutuoso
chora a morte de um deus que se disfarçou de homem para dar-nos alegrias
dominicais.
Somente
um deus extremamente generoso deixaria o conforto do Olimpo, a companhia das
ninfas, os banquetes báquicos, para se misturar ao povo e encarnar o que ele tem
de melhor a fim de proporcionar-lhe um pouco de diversão, passatempo com altas
doses de emoção, anestésicos toques de calcanhar amenizando os efeitos da
opressão.
“Morreu
o Doutor Sócrates”, diz a notícia do jornal enquanto pela casa emana a voz de
Gonzaguinha ampliando a melancolia experimentada. “Não se espante, cante”, diz
a canção enquanto o meu coração teima em se pronunciar: “Não, ele não morreu”. Afinal,
a morte é um exagero para quem amou a vida, para quem nos braços do povo jamais
morrerá.
Tivera
tempo ou não de fazer como Manuel Bandeira em Consoada? “Alô, iniludível”, a mesa não estava posta! Deixou
esposa, seis filhos e uma legião de admiradores; parte deles por conta do
refinadíssimo futebol que jogava no Corinthians ou na Seleção; outra parte por
conta de posturas corajosas frente à realidade do país no seu tempo de jogador,
sobretudo no início dos anos 80.
Politizado,
fato raro para um jogador de futebol ainda hoje, Sócrates, o Calcanhar de ouro,
deixou-se envolver pelo movimento Diretas
Já ao ponto de garantir que se a emenda Dante de Oliveira, que estabelecia
o voto direto no País, fosse aprovada, ele permaneceria jogando aqui, mesmo
sendo muito assediado por clubes europeus. Como isso não aconteceu, se transferiu
para a Itália no ano de 1984. Como jogador foi craque, como homem foi um
intelectual. Escreveu para o teatro, fez letras de música e atuou na imprensa escrita
e televisiva brasileira, nem sempre falando apenas sobre futebol.
No
ano de 1992, durante as Olimpíadas de Barcelona, me encontrei ocasionalmente
com Sócrates no Vesúvio. Cada um tomava seu chopinho durante a final do vôlei
contra a Holanda, jogo que consagrou aquela geração formada por Tande, Giovane,
Marcelo Negrão, Maurício e companhia. Como as mesas estavam muito próximas, o
papo rolou naturalmente, e continuou após o jogo. Entre um gole e outro, falamos
inevitavelmente de futebol, sobretudo fut-volei, que ele andava praticando. Tudo
sem tietagem. Tenho horror a isso.
Quando
soube que sou natural de Marília, Sócrates começou a relembrar algumas partidas
que havia feito na cidade. A muitas delas eu assisti. Sim, embora fosse apenas
um garoto, e sãopaulino, tive o prazer de vê-lo ao vivo desfilar sua elegância
por um campo de futebol.
Agora
essa notícia... Embora isso, foi emocionante acompanhar pela TV tantas
homenagens, tantos minutos de silêncio nos estádios, tanto respeito por sua
figura. Quem acompanhou às resenhas pôde perceber que não houve especialista
que não o reverenciasse.
Sócrates
deixou a sua marca e foi em paz, no dia em que seu time de coração se sagrou
pentacampeão brasileiro, deixando-nos com a certeza de termos visto um Poeta do
futebol.
Adeus,
adeus Doutor. Sabes, agora, como é frágil a nossa existência. Sabes, agora,
sobre as nuvens pétreas, conheces o cais de onde partimos e como num passe de
mágica visitastes as maravilhas do mundo. Batestes suas asas de colibri e fostes, no fluxo do vento, beijar outra flor em outro jardim.
Gustavo Felicíssimo
Um comentário:
Blog linkado, Gustavo.
Abraços,
www.cinzasdiamantes.blogspot.com
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