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Pitada de pitacos
para a receita de Gustavo Felicissimo:
Dendê no haikai
(Aspectos do Haikai na Bahia),
(Aspectos do Haikai na Bahia),
tese em andamento aumentativo
[Tomo III]
Carlos Verçosa
“O
haikai é um gênero difícil, não pela forma em si, mas por exigir um pouco daquele
milagre da gota de água, que é o de, em sua exiguidade, refletir todo o
universo.”
MANUEL BANDEIRA (1886-1968)
“Vivo sozinho e
escrevo
para a minha alegria.”
MATSUO
BASHÔ (1644-1694),
diário de viagem “Saga Nikki”,
diário de viagem “Saga Nikki”,
epígrafe em “Folhas de Chá” (1940),
de Oldegar Vieira (1915-2006)
Oldegar
Vieira – I
O
velho haijin Oldegar Vieira (1915-2006) curtindo a natureza inspiradora
O jovem baiano Oldegar
Vieira escreveu, ainda na juventude, dos 18 aos 22 anos, o quarto livro de
haikai no Brasil (“Folhas de Chá”, concluído
em 1937, mas que só veio a lume em 1940).
Sua iniciação no haikai, juntamente com o colega de estudos
ginasianos Gil Nunesmaia
(1913-1993), deveu-se à leitura dos haikais de Afrânio Peixoto, publicados na Revista
Exselsior (jan. 1928), mais tarde reeditados no livro “Missangas” (1931).
[Estes mesmos haikais motivariam e inspirariam também outro
ginasiano, paulista, Waldomiro Siqueira
Jr., autor do segundo livro brasileiro de haikais, justamente assim
denominado: “Haikais” (1933).
Voltaremos a essa história em tomo adiante.]
No
seu ensaio com um livro embutido, o bandeirante intelectual baiano Afrânio Peixoto buscava incentivar a
produção brasileira de haikais:
“E
não são alguns japões que os fazem, senão todos, com mais ou menos facilidade.”
“O haikai é uma sensação lírica que
todos sentem e podem exprimir. Por isso do homem do povo mais humilde ao
letrado mais culto, todos têm as suas trovas, ingênuas, sutis, simples ou
profundas”, escrevia Afrânio
Peixoto.
E complementava, numa
menção recorrente ao eufemismo “epigrama
lírico”, que usara desde o ensaio pioneiro de 1919 ("O haikai japonês ou epigrama lírico"):
“Mas todos os que
são poetas - e poeta é apenas, e é tudo, sentir intimamente e exprimir
sinceramente. Todo o mundo, em suma, será capaz de epigramas líricos."
Ora, tais palavras
incentivadoras logo motivariam os primeiros haikaistas brasileiros a meterem
mãos à obra.
A partir daquela leitura
inicial provocadora, os jovens Oldegar
Vieira e Gil Nunesmaia, estimulados
também pelo latinista e professor de Português, Deraldo Dias de Moraes, do Instituto Bahiano de Ensino, começaram a
escrever seus primeiros haikais.
Passaram
a publicá-los no jornal A Tarde (a
partir de 27 de outubro de 1932), denominando-os, ainda timidamente, como
fora sugerido por Afrânio: “epigramas líricos”.
[Vale registrar: A Tarde, ao longo da sua história, ora
teve suplementos literários, ora não; mas sempre procurou incentivar, em suas
páginas, a literatura baiana e o surgimento de novos valores. Esse é um
diferencial bacana desse jornal quase centenário.]
Bem, nomes em letra impressa de jornal e a repercussão positiva daquelas
primeiras publicações deram visibilidade e motivaram os dois ginasianos a
continuarem produzindo haikais.
O próprio Oldegar Vieira,
em depoimento para o ensaio “Presença do
haikai na poesia brasileira” (in “Oku”,
p. 323-487; gravação em 28 de julho de 1995),
contou-me como foi essa iniciação no haikai. Revelou que o professor Deraldo
Dias entusiasmou-se ao ler os cada vez mais inspirados haikais dos dois
alunos e propôs:
“Ah! muito bem, muito bem. Me dêem
isso que eu vou mandar para o Afrânio
Peixoto.”
Na hora, Oldegar
ficou meio preocupado:
“Ah, professor, espera aí: isso não é
coisa para se mandar para o Afrânio” [já
célebre, àquela época, médico e escritor, membro da Academia Brasileira de
Letras].
Mas o professor Deraldo
foi categórico:
“Não se preocupem, tenham paciência, que
eu vou mandar pra ele. E mandou, com nossos endereços”, lembra
Oldegar.
E qual não foi a surpresa, tamanha, pois, dias depois, recebia
uma carta com o timbre da Academia Brasileira de Letras, de Afrânio Peixoto.
O baiano famoso não apenas tinha se iluminado d’immenso com os haikais dos jovens
poetas conterrâneos, mas ainda destacava aqueles que mais lhe impressionaram.
“Gostei da sua ousadia. Você o disse.
Gostei ainda mais dos seus versos. Têm poesia, o que é raro. Alguns são admiráveis”,
escreveu Afrânio Peixoto.
“Você, num punhado de versinhos tem
toda uma primavera!” prosseguia,
e, a
seguir, transcrevia um haikai de Oldegar
que muito o impressionara:
Apita o comboio:
um lenço vai se agitando
como uma asa cativa…
“Bashô
ou Kikaku ficariam contentes de ter feito este. Eu, este e os outros”,
complementava.
Ao reler aquela carta, passados
mais de 60 anos, Oldegar Vieira
ainda se emocionava:
"Imagine você: um homem que já era
célebre, figuraz, estrelar, no meio social e literário do Brasil, escrevendo a
dois garotos. Nós ficamos abafados!”
Mas o escritor ainda trazia um recado no final da carta:
“Escrevam mais, e vão mandando.”
Aí, pronto: mãos à obra. Mandaram logo novos haikais escritos
para Afrânio Peixoto.
Novo estímulo:
“Muito bem, muito bem! Olha, vocês
continuem fazendo haikais e, quem sabe, daí não vai sair um livro?”,
dizia já na segunda carta.
Na terceira carta, Afrânio
Peixoto propõe:
“Olha, eu tive uma idéia: publicar os
haikais de vocês na revista da Academia Brasileira de Letras. Eu ponho um
prefaciozinho, se vocês permitirem...”
Oldegar
ri quando se lembra da expressão final que ele usou:
“Imaginem, vocês jovens na velha
revista dos velhos...”
E prossegue:
“Foi motivo de deslumbramento para
nós. Diante disso, é claro, tivemos que concordar, né? Não podíamos discordar, seria uma falta de
gentileza e até uma falta de vaidade, que não se podia permitir num jovem. Então,
selecionamos os haikais que nos pareceram os melhores e logo mandamos.”
Dito e feito. Na edição de maio de 1933 lá estavam os dois
jovens poetas baianos, acontecendo nas páginas prestigiadas da Revista da ABL.
“Foi um escândalo!” –
me resumiu Oldegar Vieira. “Para nós, meninos que nem 20 anos tínhamos,
era uma coisa espantosa.”
Ele conta também que houve uma pequena confusão na paginação da
revista:
"Saíram uns haikais meus como sendo de
Gil Nunesmaia, mas tudo bem. Nos
jornais daqui saiu corrigido.”
Aconteceu, porém, que o jornal A Tarde ‘furou’ a Revista da Academia,
publicando antes os haikais e a carta. Oldegar
conta como foi essa história:
“Quando nós começamos a receber a
correspondência do Afrânio, nós já
estávamos publicando os haikais na página literária do jornal A Tarde, que era
muito apreciada.
"Então, quando recebemos aquele convite
para publicar também na Revista, resolvemos mostrar para o jornalista Florêncio Santos, que era o editor.”
Ele se entusiasmou e disse logo:
“Ah, então vamos fazer um escândalo
com esse negócio!”
E assim, A Tarde saiu na frente, “publicando a notícia e transcrevendo a carta do Afrânio antes da Academia”, revela Oldegar Vieira.
Ele comenta ainda o quanto ficaram “provincianamente orgulhosos” com aqueles acontecimentos:
“Nós ficamos numa notoriedade fabulosa
aqui na Bahia. Éramos tolos, né? Dois jovens publicados pela Revista da
Academia e pelo jornal A Tarde...”
A partir daí, ele passou a se interessar cada vez mais pelo
haikai e pela literatura japonesa:
“Depois disso, passei a importar
livros estrangeiros e a ler tudo sobre o Japão”,
conta. Passou também a publicar cada vez mais novos haikais, que - num
total de 191 - iriam compor o seu primeiro livro, concluído em 1937.
Foi baseado justamente numa frase de Afrânio Peixoto, em que ele comentava que os poemas japoneses eram “tão curtos que poderiam ser pintados numa
folha de chá?” (talvez a considerar, acertadamente, que o japonês pinta, ao
invés de escrever), que Oldegar Vieira
se inspirou para dar nome ao seu livro.
Mas o perfume das suas “Folhas
de Chá” só foi realmente percebido a partir de 1940, quando finalmente o
livro veio a lume numa edição caprichada dos Cadernos da Hora Presente.
Boa acolhida da crítica e
muitas manifestações de apreço passaram a ser colecionadas pelo autor, mas
nenhuma delas o sensibilizou tanto quanto o cartão que recebeu de Afrânio Peixoto.
“Emoldurei e tenho comigo até hoje esse
cartão que o Afrânio me mandou
depois da publicação do livro. Ele vinha com um ramo florido e folhas de chá
coladas nele. Uma beleza de gesto!”, recorda Oldegar Vieira.
O cartão foi enviado de
Petrópolis [30 jan. 1941], com esta dedicatória de Afrânio Peixoto:
“Caro conterrâneo e amigo. Saibará
você que isso incluso são flor e folhas de chá. Tenho vários pés aqui na
chácara, plantados pelo Visconde de Mauá, de quem foi a casa. São efêmeras. As
suas Folhas de Chá durarão.”
Tinha razão na sua profecia. O livro permanece referência até
hoje na história do haikai no Brasil.
/// THE CHAPTER IS OVER ///
3 comentários:
Bom resgate. Brota amanhãs...
Oi, Gustavo!
Parabéns pela pubicação de tão emocionante resgate. Esse tipo de publicação dá luz aos jovens, tão carentes de exemplos hoje.
Feliz Natal!
Benedita Azevedo
Olá, Gustvo. Bom saber das histórias que constróem a trama histórica das Literaturas baianas. Muito interessante esse episódio dos haikais!
Abç
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