Ildásio Tavares
Quando eu era menino em Salvador, a Semana Santa tinha um outro cariz, era mesmo um período solene, de contrição, de recolhimento. As atividades lúdicas eram suspensas, as rádios tiravam seus programas do ar e no lugar botavam música clássica. Em tudo havia uma atmosfera de religiosidade compulsiva e até do receio do pecado por um gesto desabrido ou uma palavra pesada. A gente falava por sussurros e evitava quaisquer conversas que pudessem ter uma interpretação pecaminosa. Conversa de sexo, imagine, nem pensar.
O comércio fechava na quinta. Até as prostitutas fechavam o balaio, como se dizia. Havia uma atmosfera geral de solenidade e respeito, a religião pesava sobre todos, a cidade aguardava em suas ilhargas silenciosas que viesse o estrépito do sábado de aleluia, com todo seu entusiasmo profano, a queima de Judas que até hoje há, mas com características diferentes da época. Ficávamos aguardando a hora que era no sábado mesmo e aí a garotada aproveitava pra desabafar fazendo barulho, batendo em latas, descontando a pasmaceira forçada dos dias anteriores.
Lembro-me bem que havia umas meninas sapecas numa casa vizinha que tiravam esses dias pra me provocar. Mulher é bicho do cão, eu pensava e procurava me afastar delas que não me davam bola, mas nesse dias ficavam no maior frete. Tudo quieto. Não se ouvia um barulho. As famílias recolhidas, rezando. Era mesmo uma semana de devoção, de fé até a catarse do Sábado de Aleluia. Até os cinemas só passavam a vida de Cristo. O prazer era proibido.
Uma coisa perdura daquele tempo, muito mais pelo espírito hedonista do baiano do que por sua fé – a ceia da Semana Santa.
Na quinta já se tinha mesa farta e vinho. Havia quem tomasse vinho branco na quinta e vinho tinto na sexta em alusão ao sangue de Cristo. Mas todos, todos de todas as classes não passavam a Semana Santa sem uma mesa farta em iguarias do cardápio afro-baiano, seu vatapá, seu caruru, seu efó, sua moqueca de peixe e de bacalhau, xinxim de galinha, fritada de marisco, feijão de leite e por aí lá vai. A paixão de Cristo servindo de pretexto pra se comer bem.
Isto é uma profanização do sagrado que está bem na raiz do barroco. Num momento em que a Igreja recomenda jejum, ou ao menos abstinência de carne vermelha, o baiano aproveita pra beber vinho e se empanturrar de todo tipo de carne branca ao tempero requintado da culinária de santo, outro paradoxo. É com comida de orixá que se reverencia a memória do sacrifício de Jesus Cristo.
Mais nada quase permanece da unção da Semana Santa do passado. O comércio abre direto. As rádios tocam toda música, principalmente de carnaval. As pessoas se agitam, vão ao cinema, ao teatro, às boates, aos barzinhos, aos motéis. As prostitutas trabalham regularmente. Dentro do quadro geral de decadência de valores em nossa sociedade, vemos uma Semana Santa leiga, reduzida a uma efeméride turística - mais uma semana de carnaval – com todo respeito e veneração, é claro. Sem trio elétrico.
Quando eu era menino em Salvador, a Semana Santa tinha um outro cariz, era mesmo um período solene, de contrição, de recolhimento. As atividades lúdicas eram suspensas, as rádios tiravam seus programas do ar e no lugar botavam música clássica. Em tudo havia uma atmosfera de religiosidade compulsiva e até do receio do pecado por um gesto desabrido ou uma palavra pesada. A gente falava por sussurros e evitava quaisquer conversas que pudessem ter uma interpretação pecaminosa. Conversa de sexo, imagine, nem pensar.
O comércio fechava na quinta. Até as prostitutas fechavam o balaio, como se dizia. Havia uma atmosfera geral de solenidade e respeito, a religião pesava sobre todos, a cidade aguardava em suas ilhargas silenciosas que viesse o estrépito do sábado de aleluia, com todo seu entusiasmo profano, a queima de Judas que até hoje há, mas com características diferentes da época. Ficávamos aguardando a hora que era no sábado mesmo e aí a garotada aproveitava pra desabafar fazendo barulho, batendo em latas, descontando a pasmaceira forçada dos dias anteriores.
Lembro-me bem que havia umas meninas sapecas numa casa vizinha que tiravam esses dias pra me provocar. Mulher é bicho do cão, eu pensava e procurava me afastar delas que não me davam bola, mas nesse dias ficavam no maior frete. Tudo quieto. Não se ouvia um barulho. As famílias recolhidas, rezando. Era mesmo uma semana de devoção, de fé até a catarse do Sábado de Aleluia. Até os cinemas só passavam a vida de Cristo. O prazer era proibido.
Uma coisa perdura daquele tempo, muito mais pelo espírito hedonista do baiano do que por sua fé – a ceia da Semana Santa.
Na quinta já se tinha mesa farta e vinho. Havia quem tomasse vinho branco na quinta e vinho tinto na sexta em alusão ao sangue de Cristo. Mas todos, todos de todas as classes não passavam a Semana Santa sem uma mesa farta em iguarias do cardápio afro-baiano, seu vatapá, seu caruru, seu efó, sua moqueca de peixe e de bacalhau, xinxim de galinha, fritada de marisco, feijão de leite e por aí lá vai. A paixão de Cristo servindo de pretexto pra se comer bem.
Isto é uma profanização do sagrado que está bem na raiz do barroco. Num momento em que a Igreja recomenda jejum, ou ao menos abstinência de carne vermelha, o baiano aproveita pra beber vinho e se empanturrar de todo tipo de carne branca ao tempero requintado da culinária de santo, outro paradoxo. É com comida de orixá que se reverencia a memória do sacrifício de Jesus Cristo.
Mais nada quase permanece da unção da Semana Santa do passado. O comércio abre direto. As rádios tocam toda música, principalmente de carnaval. As pessoas se agitam, vão ao cinema, ao teatro, às boates, aos barzinhos, aos motéis. As prostitutas trabalham regularmente. Dentro do quadro geral de decadência de valores em nossa sociedade, vemos uma Semana Santa leiga, reduzida a uma efeméride turística - mais uma semana de carnaval – com todo respeito e veneração, é claro. Sem trio elétrico.
Um comentário:
Grande crônica do nosso Ildásio.
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