sexta-feira, 23 de abril de 2010

Os Haikais de Jorge Araújo

Jorge Araújo (1947) é baiano de Baixa Grande e Ilheense por adoção. Mestre e Doutor em Literatura Brasileira pela UFRJ é ensaísta premiado diversas vezes e possui vários livros publicados, principalmente na área do ensaio, como o recente “Floração de Imaginários: O romance baiano no Século XX[1]”, e na poesia, com “Os Becos do Homem[2]”, seu livro de estréia, onde transita com versatilidade por várias formas poéticas, inclusive o haikai, ao qual dedica um capítulo inteiro, Munição & Víveres, composto por trinta haikais alinhados ao modelo utilizado pelos poetas da contracultura, como só assim poderia ser, pois esse livro foi gestado durante todo um período de ditadura no Brasil (desde o início dos anos 1970) e publicado em 1982, onde o poeta nos oferece haikais densos e reflexivos:

pra quem confia
a espera
é vera luz do dia

Como afirma Antônio Houaiss no prefácio do livro, Os Becos do Homem “se funda em duas direções políticas, a da inutilidade de certa ordem e a da incapacidade dos homens dessa ordem”. É o que nos revela o seguinte haikai:

tempo, espaço, memória
o homem
será isca da história?

Jorge Araújo possui um dos instrumentos essenciais para o poeta na modernidade: dizer densamente aquilo que pretende trafegando pelo indizível, mas sabendo sempre o que dizer. E diz colocando o homem no centro do seu discurso:

A fome
antes do nome
é o homem

E diz mais:

o ponto final
do sonho final
é o sono final?

Fulgurante, seu verso é valioso, quase inesgotável, e convida o leitor a voltar inúmeras vezes, pois é feito de inquietação; poesia que consegue estabelecer uma ligação orgânica de suas vivências e crenças pessoais com os anseios coletivos de grande complexidade. Por isso não se pode pensá-la como destinada a ser lida apenas em silêncio. Os poemas de “Os Becos do Homem” foram feitos para serem ditos em voz alta, nas praças, a plenos pulmões, inclusive os haikais, para que todos possam conhecer uma obra que vai fundo no sentimento humano, pois como diz José Maurício Gomes de Almeida em um artigo publicado no jornal O GLOBO[3], a poesia de Jorge Araújo “assume integralmente esta marca suja da vida”:

cega esta certeza
que desarma o olho
da cama e da mesa

o sussurro
próximo do grito
arde na língua

E lá se vão quase 30 anos do fim da ditadura, durante esse tempo, Jorge Araújo acabou se tornando um ensaísta e crítico dos mais premiados do país, entretanto, “Os Becos do Homem”, por sua vez, não perde o frescor, pois se durante o tempo em que tal obra foi escrita, o poeta tinha, além das questões existencialistas, um inimigo em particular, declarado, hoje este inimigo está em toda parte, porém oculto; domina o capital, os grandes conglomerados empresariais e a informação, manipulando-a de acordo com as suas conveniências.
Mas o poeta não é apenas um escritor engajado, ele ri da hipocrisia reinante:

ai ai caralho
como viver
dá trabalho

Ele é irrequieto:

não desvenda, nem deslinda
o poeta
inquieta-se ainda

Jorge Araújo pensa a própria poesia a partir dos instrumentos que possui e através do haikai questiona a condição ontológica do ser em um espaço que privilegia cada vez mais o valor utilitário das coisas. “Os Becos do Homem” é um livro para se guardar e para voltar a ele com certa regularidade.

OBS:
1) Esse texto é um excerto de um ensaio a ser publicado em “Dendê no Haikai”, conjunto de ensaios que escrevi sobre o haikai na Bahia, obra a ser lançada em breve pela Via Litterarum.

2) Os Becos do Homem pode ser adquirido pelo site da Via Litterarum: http://www.vleditora.com.br/

[1] Via Litterarum, 2008. Prêmio Nacional O Romance Baiano no Século XX, promovido pela Academia de Letras da Bahia em parceria com a Braskem
[2] Via Litterarum, 2006, 2ª Edição.
[3] Edição de 24/10/1982, pág. 5, Domingo.

4 comentários:

BAR DO BARDO disse...

Bom conhecer. Obrigado!

Gerana Damulakis disse...

Adorei, são ótimos.

jorginho da hora disse...

Gostei muito aí dos haikais do meu xará. Sou cartunista e de vez em quando faço uns haikais humoristicos,procurando não fugir às regras tradicionais dessa arte maravilhosa, embora não faça isso de maneira tão rigida. Percebi que alguns desses haikais mostrados aqui têm até rimas. Nada contra, acho até que ficaram jeniais.

Raymundo Luiz Lopes disse...

Jorge, o colega, grande amigo, excelente escritor. Admiro muito a obra do 'velhomaroto'. Possibilitou-me, a leitura do texto, lembrar os nossos papos sobre Anibal Machado, Godofredo Filho, a contracultura e a nossa rebeldia e indignação face às botinas de 64 e mais e mais...
Quanto aos haicais, muito bons.Enfim, o Gustavo já falou e disse o essencial, numa interessante contextualização dos haicais de Jorginho. Valeu!! AXÉ!!