Por André Rosa
Descasei pela terceira vez. Soube-se pela internet. Um amigo em comum sentenciou: “olha, no Orkut dela consta a mudança de relacionamento”. Solteira dizia lá. Me senti anacronicamente desinformado sobre a minha própria vida, midiaticamente escancarada na rede. Um ultrapassado filho de outro milênio em meio às modernidades. Constrangido pela notícia inesperada, olhei alternadamente para os amigos cabisbaixos em volta da mesa de bar e aliança de ouro barato que ainda usava na mão esquerda. Disfarcei o mal-estar trazido pela contemporaneidade. De certa forma, refleti, havia talvez inaugurado uma nova forma de separação entre casais: simples, direta, asséptica, pública e irremediável. Entre tapinhas nas costas e frases feitas a rapaziada se mostrou solidária e a noite terminou como sempre: garrafas vazias, “valeu aí, depois se vê” e a certeza das ressacas: a etílica e a moral.
Logo encontraria a dona do fatídico Orkut. Reunião com pauta surreal, tratando de sonhos infalíveis. Cheguei mais cedo disfarçando a ansiedade que antecede as nossas próprias tempestades. Me recebe como sempre outro amigo, sócio de noites e casas abertas: “e aí brouzer?” Dessa maneira denominava os mais chegados. Pergunto por todos e inicio a retirada dos meus pertences que ainda teimavam no lugar. Olhando os objetos comentei um pouco melancólico: “fica apenas o inevitável”. Eram de uma exposição falando de sons e linguagens: um rádio cinqüentão, capas velhas de vinis, alguns instrumentos musicais há muito em desuso e uma radiola quebrada de data imprecisa. A sensação era o de ser o mais velho da coleção.
O amigo, solícito senhor das brejas, imperava no balcão do barzinho no andar térreo. Ali discutia-se muito de tudo. Cabeças rolavam e abriam-se. Ouvido atento ele anunciou: “chegaram os outros sonhadores”. Bebida quente, noite fria e ela com um chalé colorido sobre os ombros. O vestido e a sandália eram brancos. Aberta a pauta, os sonhos desfilaram na boca de quase todos. Mais uma vez estaríamos em campos opostos. Eu, em meu papel tão clichê de sustentar a racionalidade. Ela, ameaçando rasgar os papéis em que diligentemente anotava o futuro, me mandou embora. Agora dispensaria a benção eletrônica dos computadores. Os demais sonhadores olharam-se mudos, pareciam aprovar a decisão. Me dirigi ao balcão onde o senhor das brejas atendia um desavisado: “aí man, dessa vez o para sempre é chegado”. Era janeiro de 2010 e acabava-se um roteiro desproporcional mesclado de afetos e raivas, de abortos e orgasmos. Caminhei rápido para a saída sem olhar os outros sonhadores e a dona do Orkut. Ainda ouvi alguém se despedir, não reconheci a voz, pareceu-me distante, absurdamente distante.
A noite ameaçava desabar dentro de mim.
André Rosa
Descasei pela terceira vez. Soube-se pela internet. Um amigo em comum sentenciou: “olha, no Orkut dela consta a mudança de relacionamento”. Solteira dizia lá. Me senti anacronicamente desinformado sobre a minha própria vida, midiaticamente escancarada na rede. Um ultrapassado filho de outro milênio em meio às modernidades. Constrangido pela notícia inesperada, olhei alternadamente para os amigos cabisbaixos em volta da mesa de bar e aliança de ouro barato que ainda usava na mão esquerda. Disfarcei o mal-estar trazido pela contemporaneidade. De certa forma, refleti, havia talvez inaugurado uma nova forma de separação entre casais: simples, direta, asséptica, pública e irremediável. Entre tapinhas nas costas e frases feitas a rapaziada se mostrou solidária e a noite terminou como sempre: garrafas vazias, “valeu aí, depois se vê” e a certeza das ressacas: a etílica e a moral.
Logo encontraria a dona do fatídico Orkut. Reunião com pauta surreal, tratando de sonhos infalíveis. Cheguei mais cedo disfarçando a ansiedade que antecede as nossas próprias tempestades. Me recebe como sempre outro amigo, sócio de noites e casas abertas: “e aí brouzer?” Dessa maneira denominava os mais chegados. Pergunto por todos e inicio a retirada dos meus pertences que ainda teimavam no lugar. Olhando os objetos comentei um pouco melancólico: “fica apenas o inevitável”. Eram de uma exposição falando de sons e linguagens: um rádio cinqüentão, capas velhas de vinis, alguns instrumentos musicais há muito em desuso e uma radiola quebrada de data imprecisa. A sensação era o de ser o mais velho da coleção.
O amigo, solícito senhor das brejas, imperava no balcão do barzinho no andar térreo. Ali discutia-se muito de tudo. Cabeças rolavam e abriam-se. Ouvido atento ele anunciou: “chegaram os outros sonhadores”. Bebida quente, noite fria e ela com um chalé colorido sobre os ombros. O vestido e a sandália eram brancos. Aberta a pauta, os sonhos desfilaram na boca de quase todos. Mais uma vez estaríamos em campos opostos. Eu, em meu papel tão clichê de sustentar a racionalidade. Ela, ameaçando rasgar os papéis em que diligentemente anotava o futuro, me mandou embora. Agora dispensaria a benção eletrônica dos computadores. Os demais sonhadores olharam-se mudos, pareciam aprovar a decisão. Me dirigi ao balcão onde o senhor das brejas atendia um desavisado: “aí man, dessa vez o para sempre é chegado”. Era janeiro de 2010 e acabava-se um roteiro desproporcional mesclado de afetos e raivas, de abortos e orgasmos. Caminhei rápido para a saída sem olhar os outros sonhadores e a dona do Orkut. Ainda ouvi alguém se despedir, não reconheci a voz, pareceu-me distante, absurdamente distante.
A noite ameaçava desabar dentro de mim.
André Rosa
é historiador e professor universitário. tem mestrado e doutorado pela UFBA
Um comentário:
Bem interessante e atual.
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