domingo, 25 de outubro de 2009

Villa-Lobos x Eurico Alves

Ontem à tardinha, por uma dessas grandes coincidências, ouvia “Bachianas brasileiras”, do Villa-Lobos, ao passo em que lia confortavelmente um livro de Eurico Alves, baiano de Feira de Santana, brasileiríssimo, quando, ao começar a leitura de um poema intitulado “Asa Negra”, a toccata “O trenzinho caipira” me faz parar a leitura e mergulhar no mar das minhas lembranças, quando ia de Marília para Panorama, sempre de trem, passar parte das minhas férias, na casa de minha Tia Preta. Ao retomar a leitura, voltando os olhos para o livro, qual não foi meu espanto, ao perceber que o poema também versa sobre o mesmo tema do nosso grande músico erudito. Espanto!
Saudade, reminiscências... Tudo isso me fez preparar essa postagem. Espero que gostem, que ouçam o poema, que leiam a música...

ASA NEGRA
Eurico Alves

No côncavo azul da tarde morna,
um sopro cansado, cansado...

E a preguiça sem fim dos lustrosos trilhos luminosos,
flabelando luzentes e lentamente lambendo , lânguidos,
a limpa língua longa da larga lista de limosa lama...

Sob o crespo céu onduloso, a locomotiva que arfa,
que arfa e arfa, suflando e ruflando fogosa o
(fôlego de fogo da fornalha
furiosa, aflando fanhosa e fina...

Rodam rascantes rodas raivosas roendo ruidosamente a terra...
E, depois,
velozes, velozes,
vertiginosas, vertiginosas, vertiginosas,
como largo vôo negro de um pedaço da noite
(que tivesse baixado...

Ah! os meus sentidos mordidos de volúpia!
E os meus nervos e os meus gestos bêbedos, bêbedos de infinito!...

Estas rodas que giravolteiam, estas alavancas
(velocíssimas que alucinam,
são pedaços dos meus músculos, dos meus nervos!...
este vôo doido, um grito de fogo do meu cérebro cantando
e esta vertigem e esta loucura e esta alegria, o ardor
(do meu sangue,
do meu pensamento!

Rolam flácidos fumos fugazes flamulando fartamente
(pelo ar escampo
– estrelas negras, sonoras, imponderáveis –
coroando o misticismo e a melancolia desta tarde minha,
neste fecundo êxtase do meu delíirio, dos meus sentidos, do meu sonho!

E essa grinalda morena de chispas histéricas, no ar,
que desce para a glória moça da minha fronte jovem,
para o tormento super-humano da alucinação
(de não poder voar!...

Como sinto nos meus nervos e nos meus sentidos
(o sonho desta máquina!

Como sinto no meu cérebro a volúpia deste vôo!
(Contorce-se toda no mórbido espasmo metálico desta vertigem
(esta máquina humanizada.)

E, no côncavo roxo da tarde que entorpece,
morre no horizonte broslado de sangue e fogo,
esta volúpia metálica de locomotiva divinamente imensa!

Ligação externa: Artigo do poeta e ensaísta Silvério Duque sobre a obra de Eurico Alves: http://poetasilverioduque.blogspot.com/2009/07/centenario-de-eurico-alves-boaventura.html


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