Dia 21, sábado, fez dois anos que Zé Rodrix
faleceu. Lembro-me claramente que a notícia – indesejada – pegou muita gente de
surpresa, pois foi a morte precoce de um grande intéprete, compositor,
publicitário e romancista tão querido, um homem de grande sensibilidade e com o
qual tive a oportunidade de mater um relacionamento fraterno. Talvez essa
entrevista, datada de 20 de novembro de 2008, tenha sido a última que Zé Rodrix
concedeu por escrito.
Gustavo Felicíssimo – Zé, em que momento você acredita que suas atividades como compositor,
publicitário e romancista se amalgamam?
Zé Rodrix – O tempo todo. Não vejo nenhuma
diferença essencial entre nenhum processo de criação, porque a criação é um
ambiente contínuo no qual eu me movo de modos diferentes, adequando minhas
ferramentas criativas para o objetivo desejado. A meu ver, nenhuma atividade
criativa pode ser considerada mais elevada ou menos importante que a outra, por
mais que exista preconceito de quem as observa, na maior parte das vezes sem
saber do que se trata. Estar em pleno exercício criativo é a minha regularidade
diária, sem a qual eu não seria eu mesmo: criar como forma de sobrevivência do
corpo, da mente e do espírito, evoluindo, crescendo e me modificando a cada
instante, tornando-me finalmente o objeto que surge da minha própria criação,
através daquilo que eu realizo. Meus romances, minhas canções e meus jingles
são facetas diversas de minha própria capacidade criativa, assim como meus
desenhos, pinturas, peças teatrais e até poemas, cada um ocupando o seu espaço
específico no mundo real, mas todos partindo de uma mesma fonte original, eu
mesmo.
GF – Há quem diga que a música popular foi quem tomou o espaço já diminuto
da poesia. O que você acha dessa afirmação?
ZR – O equívoco,
a meu ver, é dos poetas, que de maneira geral têm tido inveja do aparente
sucesso popular dos músicos, e se dispuseram a enfiar a sua poesia de maneira
artificial na seara musical, prejudicando tanto a poesia quanto a música. Não
creio que exista nenhuma semelhança entre poesia e letras de música, por
exemplo: são objetos artísticos perfeitamente diversos e diferentes, apesar de
partilharem algumas semelhanças no uso da língua e dos truques criativos. A
partir de determinado momento, quando letristas passaram a ser chamados de
poetas, (equivocadamente, a meu ver) os poetas se sentiram à vontade para se transformarem
em roqueiros, usando a música popular como veículo para sua poesia que, de
maneira geral, funciona muito mal quando cantada, mas seria excelente se
permanecesse nos limites reais da poesia escrita. Agora, vai ser preciso
muita coragem da parte dos poetas para romper este vício da popularidade e
retomarem seu processo poético original, de forma a recuperar o verdadeiro
valor da poesia, pois, como disse Fernando Pessoa, “a popularidade é um
plebeísmo”. Insuportável para a tão necessária verdade e permanência poética.
GF – Você acredita em um processo de alienação das massas provocado por
uma possível e anunciada “ditadura midiática”? Essas questões chegam a te
incomodar?
ZR – De forma
geral, esta “ditadura midiática” é papo muito velho, herdado do Manifesto do
CPC da UNE em 1962, que já era cópia quase fiel do Manifesto por Um Realismo
Socialista, de Jdanov, escrito na URSS em 1947. Nela se estabelecem como inimigos
todos os processos de abrangência comercial da arte tanto burguesa quanto
popular, descartando tanto a “arte burguesa’ quando a “arte popular” com sendo
veículos de alienação, e pregando a necessidade de uma “arte popular revolucionária”,
que nunca existiu realmente, a não ser como as experiências artificialíssimas
da MPB, seguindo os passos de uma “brasilidade” estabelecida pela outra
ditadura, a de Getúlio Vargas.
A tentativa de estabelecer um “padrão popular” de música feita no Brasil, por
exemplo, já tinha sido intentada por Lourival Fontes, diretor do DIP
durante o Estado Novo, e este padrão de “brasilidade” é uma barreira que
permanece ainda vigente como parâmetro dos artistas nacionais, porque foi
assumido como sendo “real” pelo manifesto da UNE, que preferiu a ditadura de
Vargas à Ditadura Militar, pretendendo que a primeira fosse melhor que a
segunda, no que se equivocaram profundamente.
O sistema de comunicação midiática mundial já pretendeu ser dono das
vontades de todos, menos de quem o critica, ainda que quem o critique também
esteja sob a égide de uma mídia específica e tão daninha quanto a que verbera.
Acusar a mídia por todas as mazelas do mundo, menos as próprias, indica apenas
um desconhecimento profundo das possibilidades humanas de livre-arbítrio,
escolha, e capacidade de decisão. Tudo está, a meu ver, nos limites da consciência
e responsabilidade pessoais, e para entender isto seria preciso estudar
com atenção o momento em que Sartre, tendo durante algum tempo proposto como
ideal a figura do “artista engajado”, a substituiu pela do “artista
consciente”, já no fim de sua vida.
A Arte não está sob o controle de nenhuma mídia, se verdadeiramente for
Arte, e nem os usuários desta mídia se tornam escravos dela, principalmente
agora que a revolução tecnológica permite a livre expressão das
individualidades através da escolha pessoal. Há inúmeros artistas que,
filiando-se a esta ou aquela escola, se consideram mais artistas que outros de
outras escolas, ao mesmo tempo em que partilham de práticas e usos que condenam
em seus desafetos, aplaudindo-os em si mesmos como “exemplo de pragmatismo
ideológico”. Dois pesos, duas medidas, infelizmente valorizados e divulgados
como sendo ideais pelos que chamo de Perpetuadores dos Dogmas e Defensores dos
Mitos, estes que, sendo parte da mídia, se especializaram em expor seu gosto pessoal
ou filiação ideológica como sendo a Única Verdade, tornando-se divulgadores de
seu próprio e equivocado Evangelho, tentando convencer a quem os ouve de que a
Arte de que gostam nos foi doada diretamente por Deus e que todas as outras são
imitações diabólicas desta.
Os seres humanos, atualmente, e a cada dia mais, têm infinitas formas de
fazerem suas próprias escolhas, através das liberdades individuais, deixando-se
envolver por aquilo que os agrada e rejeitando aquilo que os desagrada, por
mais que as teorias vigentes ainda insistam em nos impor o gosto por
aquilo de que não gostamos, como necessidade de sobrevivência da “kultura”.
Neste sentido, as classes populares são muito mais livres, porque em seu território
possível, selecionam e elegem como sendo SUAS as formas de Arte que lhes tocam
mais de perto, em vez de seguirem, obedientemente, os parâmetros que algum
evangelista lhes imponha como sendo os únicos possíveis, da maneira como a
classe média tem feito.
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