segunda-feira, 23 de maio de 2011

Zé Rodrix do tamanho da Paz


Dia 21, sábado, fez dois anos que Zé Rodrix faleceu. Lembro-me claramente que a notícia – indesejada – pegou muita gente de surpresa, pois foi a morte precoce de um grande intéprete, compositor, publicitário e romancista tão querido, um homem de grande sensibilidade e com o qual tive a oportunidade de mater um relacionamento fraterno. Talvez essa entrevista, datada de 20 de novembro de 2008, tenha sido a última que Zé Rodrix concedeu por escrito.

Gustavo Felicíssimo – Zé, em que momento você acredita que suas atividades como compositor, publicitário e romancista se amalgamam?
Zé Rodrix O tempo todo. Não vejo nenhuma diferença essencial entre nenhum processo de criação, porque a criação é um ambiente contínuo no qual eu me movo de modos diferentes, adequando minhas ferramentas criativas para o objetivo desejado. A meu ver, nenhuma atividade criativa pode ser considerada mais elevada ou menos importante que a outra, por mais que exista preconceito de quem as observa, na maior parte das vezes sem saber do que se trata. Estar em pleno exercício criativo é a minha regularidade diária, sem a qual eu não seria eu mesmo: criar como forma de sobrevivência do corpo, da mente e do espírito, evoluindo, crescendo e me modificando a cada instante, tornando-me finalmente o objeto que surge da minha própria criação, através daquilo que eu realizo. Meus romances, minhas canções e meus jingles são facetas diversas de minha própria capacidade criativa, assim como meus desenhos, pinturas, peças teatrais e até poemas, cada um ocupando o seu espaço específico no mundo real, mas todos partindo de uma mesma fonte original, eu mesmo.

GF – Há quem diga que a música popular foi quem tomou o espaço já diminuto da poesia. O que você acha dessa afirmação?
ZRO equívoco, a meu ver, é dos poetas, que de maneira geral têm tido inveja do aparente sucesso popular dos músicos, e se dispuseram a enfiar a sua poesia de maneira artificial na seara musical, prejudicando tanto a poesia quanto a música. Não creio que exista nenhuma semelhança entre poesia e letras de música, por exemplo: são objetos artísticos perfeitamente diversos e diferentes, apesar de partilharem algumas semelhanças no uso da língua e dos truques criativos. A partir de determinado momento, quando letristas passaram a ser chamados de poetas, (equivocadamente, a meu ver) os poetas se sentiram à vontade para se transformarem em roqueiros, usando a música popular como veículo para sua poesia que, de maneira geral, funciona muito mal quando cantada, mas seria excelente se permanecesse nos limites reais da poesia escrita.  Agora, vai ser preciso muita coragem da parte dos poetas para romper este vício da popularidade e retomarem seu processo poético original, de forma a recuperar o verdadeiro valor da poesia, pois, como disse Fernando Pessoa, “a popularidade é um plebeísmo”. Insuportável para a tão necessária verdade e permanência poética.

GF – Você acredita em um processo de alienação das massas provocado por uma possível e anunciada “ditadura midiática”? Essas questões chegam a te incomodar?
ZRDe forma geral, esta “ditadura midiática” é papo muito velho, herdado do Manifesto do CPC da UNE em 1962, que já era cópia quase fiel do Manifesto por Um Realismo Socialista, de Jdanov, escrito na URSS em 1947. Nela se estabelecem como inimigos todos os processos de abrangência comercial da arte tanto burguesa quanto popular, descartando tanto a “arte burguesa’ quando a “arte popular” com sendo veículos de alienação, e pregando a necessidade de uma “arte popular revolucionária”, que nunca existiu realmente, a não ser como as experiências artificialíssimas da MPB,  seguindo os passos de uma “brasilidade” estabelecida pela outra ditadura, a de Getúlio Vargas.
            A tentativa de estabelecer um “padrão popular” de música feita no Brasil, por exemplo,  já tinha sido intentada por Lourival Fontes, diretor do DIP durante o Estado Novo, e este padrão de “brasilidade”  é uma barreira que permanece ainda vigente como parâmetro dos artistas nacionais, porque foi assumido como sendo “real” pelo manifesto da UNE, que preferiu a ditadura de Vargas à Ditadura Militar, pretendendo que a primeira fosse melhor que a segunda, no que se equivocaram profundamente.
             O sistema de comunicação midiática mundial já pretendeu ser dono das vontades de todos, menos de quem o critica, ainda que quem o critique também esteja sob a égide de uma mídia específica e tão daninha quanto a que verbera. Acusar a mídia por todas as mazelas do mundo, menos as próprias, indica apenas um desconhecimento profundo das possibilidades humanas de livre-arbítrio, escolha, e capacidade de decisão. Tudo está, a meu ver, nos limites da consciência e responsabilidade pessoais,  e para entender isto seria preciso estudar com atenção o momento em que Sartre, tendo durante algum tempo proposto como ideal a figura do “artista engajado”, a substituiu pela do “artista consciente”, já no fim de sua vida.
             A Arte não está sob o controle de nenhuma mídia, se verdadeiramente for Arte, e nem os usuários desta mídia se tornam escravos dela, principalmente agora que a revolução tecnológica permite a livre expressão das individualidades através da escolha pessoal. Há inúmeros artistas que, filiando-se a esta ou aquela escola, se consideram mais artistas que outros de outras escolas, ao mesmo tempo em que partilham de práticas e usos que condenam em seus desafetos, aplaudindo-os em si mesmos como “exemplo de pragmatismo ideológico”. Dois pesos, duas medidas, infelizmente valorizados e divulgados como sendo ideais pelos que chamo de Perpetuadores dos Dogmas e Defensores dos Mitos, estes que, sendo parte da mídia, se especializaram em expor seu gosto pessoal ou filiação ideológica como sendo a Única Verdade, tornando-se divulgadores de seu próprio e equivocado Evangelho, tentando convencer a quem os ouve de que a Arte de que gostam nos foi doada diretamente por Deus e que todas as outras são imitações diabólicas desta.
             Os seres humanos, atualmente, e a cada dia mais, têm infinitas formas de fazerem suas próprias escolhas, através das liberdades individuais, deixando-se envolver por aquilo que os agrada e rejeitando aquilo que os desagrada, por mais que as teorias vigentes ainda  insistam em nos impor o gosto por aquilo de que não gostamos, como necessidade de sobrevivência da “kultura”. Neste sentido, as classes populares são muito mais livres, porque em seu território possível, selecionam e elegem como sendo SUAS as formas de Arte que lhes tocam mais de perto, em vez de seguirem, obedientemente, os parâmetros que algum evangelista lhes imponha como sendo os únicos possíveis, da maneira como a classe média tem feito.

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