domingo, 31 de outubro de 2010

Uma notícia indesejada: Faleceu hoje, 31 de outubro, o poeta Ildásio Tavares

Acabo de receber a notícia por intermédio de Maria da Conceição Paranhos. Acompanhei o drama de Ildásio desde o lançamento de Silêncios, em Salvador, quando estive com Gil Vicente, seu filho, que me falou da sensível situação em que o poeta se encontrava.
Para mim é difícil imaginar a situação, pois em menos de um ano estive com Ildásio em três oportunidades, duas delas falando sobre sua poesia: uma na Academia de Letras da Bahia, a outra no evento em homenagem aos seus 70 anos, ambos em Salvador. Ainda em outra oportunidade, durante o colóquio Bahia de Todas as Letras, para o qual consegui trazê-lo a Ilhéus, onde fez uma conferência sobre literatura baiana. Em todas as oportunidades ele se mostrava bem e disposto, lúcido e falante como sempre.
Muito se falará no meio literário Brasileiro sobre sua importância e contribuições, sobretudo como poeta, ensaísta e tradutor. Para mim ficará, acima de tudo isso, a importância do homem, do mestre e do amigo, me auxiliando sempre nos estudos, pelo menos durante os últimos três anos.
Deixo para o leitor o artigo que escrevi para o Encontro Literário da Academia de Letras da Bahia sobre a poesia de Ildásio, provavelmente a figura mais importante da poesia baiana do século que passou.

Ildásio Tavares: existência consagrada à poesia

É impossível ater-se à história da literatura baiana no Século XX sem se dedicar demoradamente a Ildásio Tavares. É tão vasta a sua obra, sua formação e suas incursões literárias que seria inviável e extravagante, no curto espaço que temos, discorrer sobre essa questão.
Mas vale lembrar que aos nove anos de idade Ildásio já tinha lido toda a obra infantil de Monteiro Lobato, que antes do ginásio era fluente em latim, francês e inglês. Formado em Direito e Letras pela UFBA, tem Mestrado cursado na Southern Illinois University, USA, em 1971; Doutorado em Língua Portuguesa na UFRJ, em 1984; e Pós-Doutorado na Universidade de Lisboa, com bolsa do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1990.
Como literatura não se faz com nomes nem com títulos, ao seu agente sempre é exigido produção, renovação ou silêncio, como é o caso de muitos escritores que não passaram de um par de livros, ou até mesmo de um único, o que não o impede de ter a obra reconhecida e valorizada, como é o caso de Sosígenes Costa, grapiúna como Ildásio, falecido em 1968 com apenas um livro publicado.
Esse, certamente, não foi o caso de Ildásio Tavares que estreia na poesia no ano de 1967, com poemas inseridos na antologia “Moderna Poesia Bahiana”. Seu primeiro livro veio ao público em 1968, com “Somente Canto”, a esse seguem-se outros, entre os quais se destacam: “Tapete do Tempo”, 1980; “IX Sonetos da Inconfidência”, 1997; e o moderno “Odes Brasileiras”, de 1999.
Talvez o próprio vate não se dê conta, mas também podemos acrescentar à sua biografia a importante e valorosa contribuição que dá ao futuro da poesia brasileira ao abrir, generosamente, as portas da sua casa aos jovens escritores baianos que para lá marcham semanalmente em busca de um papo agradável e, principalmente, conselhos sobre seus escritos.
 Ali, na varanda da casa, na espaçosa sala de visitas ou no escritório repleto de livros e correspondências, tendo ao fundo o mar de Itapuã, muita gente ouviu Ildásio falar sobre a arte de escrever. Ali, sob sua pena severa, porque severa é a poesia, muita gente aprendeu a escandir um verso, muita gente ouviu falar pela primeira vez em soneto, redondilha, ode ou terça rima. Ali, muitos livros, poemas, poetas e críticos foram estudados à exaustão.

No dizer de Jorge Luis Borges um livro somente merece ser lido se for capaz de entreter. Foi dessa forma, me entretendo, dando inúmeras gargalhadas, literalmente, que li ainda no original o livro mais recente de Ildásio Tavares, “As Flores do Caos”, 2009, vencedor do prêmio literário do Pen Clube de Portugal em 2010, uma obra que reúne sonetos selecionados pelo autor, frutos de uma vida inteira dedica à arte, especialmente à poesia. Entre eles estão os IX Sonetos da Inconfidência, escolhidos para esse encontro.
Em meio a tão bons poemas, cada leitor acaba tendo o seu preferido. Certo mesmo é que tudo gira em torno de personagens importantes da Inconfidência Mineira. Esses personagens se transformam em símbolos, e as composições em versos decassílabos, com grande versatilidade e muita inventividade.
Sentia-me feliz ao descobrir em cada poema uma variação métrica própria, a forma como o poeta desloca a cesura dos versos sem perder a musicalidade. Aqui o de Arte Maior, ali o Sáfico, o Heróico. Vemos a estrutura do poema cedendo ao impulso da emoção.
O destaque maior fica por conta do poema III, O Alferes. Trata-se de um grito zombeteiro, apesar de angustiado, de Joaquim José da Silva Xavier, dentista e militar de baixa patente que ficou sendo o símbolo maior do movimento. Enforcado, teve seu corpo esquartejado e seus pedaços exibidos em lugares onde pregou ideais de liberdade. O alferes no primeiro quarteto: Meu coração é um arsenal de horrores/ e dores que atropelam meu país./ Gargalha, puta! Zomba, meretriz!/ O dia há de chegar dos teus senhores.
Fábio Lucas, um dos mais importantes críticos e conferencistas internacionais de literatura brasileira, unanimemente apontado como um dos críticos literários mais importantes do Brasil, reportou-se sobre estes poemas dizendo que O trabalho de Ildásio Tavares vai além do divertimento semântico. Sob pretexto de celebrar personagens de nossa história, constrói sonetos carregados de sentido, mensagens plurivocais, pejadas de palavras explosivas, pois, no curso da sonora abundância, se atiram além das idéias, como uma carruagem iluminada na escuridão da noite.

Em “O canto do homem cotidiano”, 1977, a poesia de Ildásio Tavares estabelece uma lírica que quer se esquivar da realidade opressora do nosso tempo, sem, contudo, deixar de reconhecê-la, como faz no poema que dá título ao livro: Eu canto o homem vulgar, desconhecido/ Da imprensa, do sucesso, da evidência/ O herói da rotina,/ O rei do pijama,/ O magnata/ Do décimo terceiro mês,/ O play-boy das mariposas/ O imperador da contabilidade.” (...) “Mas que, na frustração cotidiana,/ Vai encontrando aos poucos sua glória/ Por isso eu canto a luta sem memória/ Desse homem que perde, e não se ufana/ De no rosário de derrotas várias/ E de omissões, e condições precárias/ Poder contar com uma só vitória/ Que não se exprime nas mentiras tantas/ Espirradas sem medo das gargantas/ Mas sim no que ele vence sem saber/ E não se orgulha, campeão na história/ Da eterna luta de sobreviver.

Este é o homem que encontramos nas ruas, nos bares, nas praças, nos bancos. Homens que jogam bola, capoeira, dama, dominó. São profissionais autônomos, empregados no comércio, na indústria e funcionários públicos. Todos estes, matéria prima para a lírica moderna, onde o poeta canta a própria existência em confronto à realidade opressora do nosso tempo. Perguntado sobre essa questão em uma entrevista que nos concedeu o poeta responde que sempre foi assim. Contudo, em nossa época, o poeta sofre uma crise tão forte de identidade ante um sistema esmagador que, às vezes, cantar sabe a um grito no escuro.
Ciente que o tempo do artista difere do tempo do homem comum, o poeta abre mão das cronologias para privilegiar o seu tempo interior e mostra-nos uma alma que difere do mundo circunstante. Alheia às necessidades humanas, a poesia insiste em colocar o inexistente acima do existente. No poema O meu tempo (infelizmente fora do rol que nos foi passado), do qual trazemos aqui apenas um fragmento, ele nos mostra tal implicação com clareza:

Não existe hora certa, existe o meu relógio,
Lembrando sempre com seu tic-tac
Que há vida
Para ser vivida,
Que houve a vida
Que não se viveu.
Não importa que o rádio renitente ruja
São tal hora e tal minuto,
Hora oficial,
Afinal,
Que há de oficial em minha vida?

Se O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada, como afiança Cora Coralina, então, povoada de momentos de uma história construída pelos trajetos que vem percorrendo, de análises teóricas dos autores, de poetas, de músicos, enfim, o cotidiano presente, da religiosidade, ilustrando o acadêmico, o conhecimento e as ideias, o cognitivo e o afetivo, o singular no plural, o universal no particular, com inventividade e ironia, a obra de Ildásio Tavares, pode-se dizer, tem as qualidades necessárias para, por certo, ser considerada uma obra importante.
Podemos afirmar que o substrato da sua poesia está em uma determinada concepção onde o criador se constrói ao se relacionar com o mundo concreto, como observamos também no poema Restos, onde ao estabelecer relações e interações com outros homens, se apropria dos dados da cultura através das mediações simbólicas que estabelece e que se configura por sua totalidade, causando a estranheza necessária para tirar o leitor da sua inércia e levá-lo à reflexão.

Para concluir, compartilhamos as palavras do crítico literário e historiador Nelson Werneck Sodré sobre o poder de criação de Ildásio Tavares, considerações com as quais nos alinhamos totalmente. Diz ele: É fácil compreender a alta qualidade do poeta. Em primeiro lugar pelo domínio da arte poética na linguagem de síntese que é sua essência. E ainda pela capacidade, nessa linguagem, praticar aquilo que Brecht ensinou, as diferentes maneiras de dizer a verdade.

3 comentários:

Gil Vicente Tavares disse...

Gustavo,

Havia comentado com meu pai sobre sua sensibilidade em perceber a grandeza de sua obra. E, mais que tudo, a grandeza do homem que nos uniu. Sigamos. Deixo aqui o link do meu texto e repassarei o seu.

abração!

http://teatronu.blogspot.com/2010/10/meu-pai-subiu-no-telhado.html

Anônimo disse...

Gil Vicente Tavares e Família:

Ele foi para mim o único gênio que conheci de perto e pude tocá-lo. Ele não subiu pro telhado ascendeu aos céus como é o lugar dos luminosos. Estará na companhia de seu irmão Olney São Paulo. Meu profundo snetimento de pesar e desculpe-me a ausência na cerimônia, devido a meu estado não posso comparecer-me, desculpe-me. Fica a Bahia seu seu bardo maior, cada vez mais medíocre!Miguel Carneiro.

Gerana Damulakis disse...

O dia do Encontro Literário na ALB foi muito bacana. Ele estava feliz. Ildásio não passou pela vida em brancas nuvens (como disse o outro poeta), ele marcou, seja com sua poesia, seja com sua prosa, seja com sua personalidade forte. Garanto que ensinou alguma coisa a cada um de nós. Era gratificante aprender com ele, portador de uma inteligência radiante e uma erudição sem par.