Bagagem
foi o primeiro livro publicado de Adélia Prado. Isso ocorreu em 1976, por
indicação de Carlos Drummond de Andrade. Declaração da autora sobre a obra:
"Meu primeiro livro foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta
nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas,
muitas vezes, do sofrimento”. É curioso notar que nesse seu primeiro livro, o
primeiro poema, Com licença poética, é um bonito diálogo intertextual com
"Poema de Sete faces", também o primeiro poema do primeiro livro de
Drummond. Vamos, então, aos dois poemas inaugurais de ambos.
Poema de sete faces
Carlos Drummond de Andrade
Quando nasci, um anjo
torto
desses que vivem na
sombra
disse: Vai, Carlos! ser
gauche na vida.
As casas espiam os
homens
que correm atrás de
mulheres.
A tarde talvez fosse
azul,
não houvesse tantos
desejos.
O bonde passa cheio de
pernas:
pernas brancas pretas
amarelas.
Para que tanta perna,
meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e
forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros
amigos
o homem atrás dos
óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me
abandonaste
se sabias que eu não
era Deus,
se sabias que eu era
fraco.
Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse
Raimundo
seria uma rima, não
seria uma solução.
Mundo mundo vasto
mundo,
mais vasto é meu
coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido
como o diabo.
Com licença poética
Adélia Prado
Quando nasci um anjo
esbelto,
desses que tocam
trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra
mulher,
esta espécie ainda
envergonhada.
Aceito os subterfúgios
que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que
não possa casar,
acho o Rio de Janeiro
uma beleza e
ora sim, ora não, creio
em parto sem dor.
Mas o que sinto
escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens,
fundo reinos
-- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem
pedigree,
já a minha vontade de
alegria,
sua raiz vai ao meu mil
avô.
Vai ser coxo na vida é
maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.
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