sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Morte do Poeta

Talvez eu morra de tanto existir,
talvez um verso me socorra.

E quando passar, é certo,
não seja como um ser abjeto.

Quando eu morrer, à beira mar,
que seja ouvindo o bramido das ondas.

Assim, entre os versos de uma vida
alguma verdade quem sabe se afira.

Quem sabe um poema perdure
e perfure a pele do tempo.

Quem sabe na hora exata o poema
perfeito que não poderei anotar.

Talvez seja um haikai divino,
talvez um soneto fescenino.

O vento deixando no tempo
as palavras trazidas do mar.

Se buscando paz encontrei paisagens,
deixarei uma prece na última tarde.

E montado no dorso do ocaso
levarei, companheira, a saudade.

À filha que tive e muito tenho amado
ficarão os passarinhos nos telhados.

E à mulher que me foi destinada,
um concerto de orquídeas no jardim.

Ficarão as cinzas do que fui
junto aos coqueiros de Olivença.

E junto aos sonhos irrealizados,
aforismos à próxima existência.

Sem que pelas palavras seja revelada,
de mim apenas a natureza restará.

Lembrarão da minha voz grave
contra a sujeira do nosso tempo.

Lembrarão dos passos embriagados
atravessando noites enluaradas.

Se for durante a primavera
terei ouvido a Valsa das Flores.

Terei visto pela última vez
um beija-flor na minha varanda.

Mas se for ao verão, que pena;
não mais as meninas douradas de sol.

Alguns amigos ficarão
como sementes que plantei.

A face leve, embora vivida,
dirá sobre o tempo decorrido.

Em forma etérea olharei meu corpo
confortavelmente estendido na areia.

Direi para mim e para os céus:
como foi bom ter vivido em Ilhéus!

(Gustavo Felicíssimo)

12 comentários:

Anônimo disse...

Uau... Que beleza Gustavo! Um poema com as características de quem vive perto do mar e respira sua energia e inspiração.

Grane abraço
Benedita Azevedo

Chris Herrmann disse...

Parabéns, Gustavo, pelo belíssimo poema. Encontrei nele um fino lirismo. Foi um prazer lê-lo!!
Grande abraço,
Chris Herrmann

Gerana Damulakis disse...

Excelente! Versos memoráveis, como estes: "Quem sabe um poema perdure
e perfure a pele do tempo".

José Carlos Brandão disse...

"Terei visto pela última vez
um beija-flor na minha varanda. "

Que beleza de estrofe! Que beleza de poema! Gostei demais.

Um abraço amigo.

Anônimo disse...

Olhando daqui para dentro do sudeste, avisei, por via de eletrões, um amigo poeta. A Lua te aguarda, mas vem tempestade. Achei que já não ía. Esse poeta disse-me que eu fosse ler uma coisa. Li. E decidi: vou sim, vou para o mar ver a Lua. Mesmo que chova e eu não a veja. Não é a Lua. É outra coisa. Que está aqui, neste maravilhoso poema do Gustavo.

Marcantonio disse...

Belo.

"E montado no dorso do ocaso
levarei, companheira, a saudade."

Abraço.

Evandro L. Mezadri disse...

Belíssima poesia Gustavo, muito reflexiva e com imagens vivas.
Grande abraço e sucesso!

Raphael Coutinho disse...

opa, concordo, ótimo poema! fiquei curioso para ler a Salomé citada na quinta cultural... rd
até, abs

Anônimo disse...

Desconfio que as fotos feitas no seguimento da leitura do teu poema.. desconfio que te vão agradar. Reli depois da noite e gostei ainda mais. O meu pessoal já também leu. Ganhaste mais admiradores, caro poeta. Pedro

Jorge Elias disse...

"Quem sabe um poema perdure
e perfure a pele do tempo."

Esse verso ...

Abraço.

Genny Xavier disse...

Caro poeta,
Morrer brandamente ao aconchego do lugar querido e na companhia dos que amanos realiza nossa poética existência na terra...
É fortemente belo dizer: "Talvez eu morra de tanto existir"...que seja esta máxima de todo poeta...
Beijos,
Genny

Anônimo disse...

Poema comovente, Gustavo. Abraços.