domingo, 30 de maio de 2010

ARTES PLÁSTICAS: O MESTRE SANTE SCALDAFERRI É O ENTREVISTADO DO MÊS

Sante Scaldaferri é uma legenda das artes plásticas no Brasil. Baiano de Salvador, fez exposições individuais e coletivas em diversos países do mundo. Passou por diversos momentos estéticos sem fazer concessões, senão ao seu modo próprio de fazer e enxergar a arte. Foi assistente de Lina Bo Bardi quando da implantação do Museu de Arte Moderna da Bahia. Aliás, o MAM baiano e a Secretaria de Cultura do Estado devem à sociedade uma grande exposição panorâmica da obra do artista.
Sante também participou do cinema novo, com Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, como ator e cenógrafo e faz parte de uma das mais frutíferas gerações de artistas baianos, a Geração MAPA.
Na presente entrevista ele mostra as diversas fases artísticas pela qual passou e nos brinda com imagens de obras que vão desde a sua fase colegial até os dias de hoje. É ler e conferir.

Gustavo Felicíssimo - Nesses mais de 80 anos de vida, quais foram as mudanças mais importantes pelas quais você viu a arte passar?
Sante -
Em todas as atividades da vida é constante o surgimento de coisas novas. É a evolução natural. Com a arte, não poderia ser de outra maneira. Daí o surgimento de novas linguagens, cada vez mais rápidas, devido aos atuais meios de comunicação ou as mídias.
Com esta certeza poderemos afirmar que todas as mudanças foram muito importantes, não só para a arte, como para o meu trabalho, devido que, à medida que as novas linguagens iam surgindo, eu as absorvia.
Melhor explicando. As grandes tendências da arte, mesmo antes dos clássicos gregos e romanos permaneceram, por muito tempo, quase intactas, com os mesmos conteúdos, características próprias, segundo a procedência nativa e os mesmos procedimentos técnicos. As mudanças foram muito lentas e duraram anos para se espalharem pelo mundo. Aos poucos, e naturalmente, foram recebendo novos elementos, mudanças, novas técnicas, transformações. Daí o surgimento de novas linguagens, inclusive algumas com rupturas consideráveis.
Em todas as expressões de arte, de todos os povos, e de todos os períodos, ficou, e vai ficar, naturalmente, o que de melhor foi realizado durante naquele período. E o que melhor foi realizado, com certeza, foi à inovação, foi quem inventou a coisa. Foram artista ou grupos de artistas que romperam e criaram novas formas de arte, hoje chamadas de linguagens. Portanto, querer destruir, não só o que foi implantado anteriormente, com diversos nomes, mas todos enquadrados como linguagem contemporânea de determinada época, e os artistas que adotaram estas linguagens, de nada adianta. Se o artista, de qualquer lugar do mundo, seguidor de alguma nova tendência contemporânea de alguma época, tiver ou deixar uma obra que possua as condições para ser considerada uma obra de arte, fica para a história. Por esta razão é que eu sempre digo. O que importa para mim é a minha obra. E eu, graças a Deus, queiram ou não, possuo uma obra já bem estudada por profissionais, gente do ramo. O resto é o resto.
Assim passaram-se os séculos e chegamos a Salvador , no princípio da década de cinquenta, quando entrei para a Escola de Belas Artes, ainda não pertencente a Universidade Federal da Bahia.
Será necessário um ligeiro retrospecto. Na década de trinta dominavam em Salvador os artistas acadêmicos, na maioria, professores da Escola de Belas Artes. Alguns, os mais conhecidos e importantes na época, foram estudar em Paris. No retorno, diziam-se impressionistas, que foi uma linguagem revolucionaria surgida na segunda metade do século XIX. Nos anos trinta, já existiam os Nabis, os Fouves, o Abstracionismo, o Cubismo, o Expressionismo, o Futurismo, o movimento Dada, o Surrealismo, para somente citar algumas das novas linguagens que não foram por eles absorvidas. Em 1922 acontece em São Paulo a Semana da Arte Moderna. Participou deste marco histórico da arte brasileira, o pintor pernambucano Vicente do Rego Monteiro e um pouco mais tarde, o seu conterrâneo Cícero Dias, em Recife, já adotara o surrealismo. Em 1932, volta de Paris, após ganhar uma bolsa de estudos, o pintor baiano José Tertuliano Guimarães. Ele, apesar de não absorver nenhuma das novas linguagens contemporâneas da época, conseguiu compreender a pintura de Cézanne que muito o influenciou, e com isso, foi o primeiro a dar um passo adiante do que aqui era chamado de impressionismo. José Guimarães, também inovou realizando pela primeira vez trabalhos recriados sobre a cultura afro-baiana, que ilustraram a edição nº 4 da revista SEIVA, de maio de 1939, toda ela dedicada ao negro. Esta diferença, e o rompimento com os procedimentos anteriores, lhe conferem a maior importância nas artes plásticas baianas. Assim ele se torna o primeiro artista que começa a diminuir a defasagem entre as novas linguagens e a arte anacrônica que era praticada na Bahia. O modernismo começou a surgir em Salvador, no meio da década de quarenta quando surgiu a primeira geração de artistas plásticos modernos da Bahia. Portanto, vinte anos depois da Semana de Arte Moderna de 22, que também começou com vinte anos de atraso.
Enquanto tudo isso acontecia, eu e a maioria dos que se interessavam pelo assunto, pouco ou nada sabíamos do que acontecia na arte contemporânea que se fazia na época. Dai a importância dos meios de comunicação, principalmente os jornais e revistas que começavam a publicar reportagens, textos de críticos de arte, a divulgarem as novas linguagens. Atualmente, e infelizmente, na maioria dos jornais brasileiros, foram eliminadas as colunas de crítica de arte. Daí em diante várias linguagens foram surgindo em espaço de tempo cada vez menores. E como todas eram importantes, eu as absorvia, mudando a forma de minha pintura, porém conservando o mesmo conteúdo.
Nunca fui, e não sou um artista comercial, interessado em pintar coisas agradáveis à vista, elaborando trabalhos de fácil leitura, exclusivamente para vender. Ou tecnicamente, nunca fui seguidor da “Estética da Norma”. Em todos os sentidos, nunca folclorizei minha pintura. Sei muito bem distinguir o que é popular do que é folclore. Nunca repeti durante anos a mesma forma de minha pintura. Nunca tirei constantemente “xerox” do meu trabalho. Adotando o procedimento de absorver as várias linguagens contemporâneas de cada época, assim que iam surgindo, surgiram também as várias fases de meu trabalho. Assim, é conveniente, para uma maior compreensão, mostrar imagens de algumas destas fases:

Fase ESCOLAR – 1952 a 1957



1ª Fase POPULAR – 1958 a 1960
Foram os literatos os primeiros a trabalhar para, no campo da arte, criar uma identidade cultural brasileira. Ela começou através da transfiguração da cultura popular do Nordeste. José Américo de Almeida foi o primeiro com A BAGACEIRA, de 1928. Depois vieram muitos, e entre eles Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Mario Sette, Gilberto Freire, entre outros. Gilberto Freire, no livro NORDESTE, usa pela primeira vez o termo ECOLOGIA, e, com chamada de página explicando o seu significado. Ele denunciava o escoamento na natureza pelas Usinas de Açúcar, do Vinhoto, que é um elemento venenoso. Esta minha fase é o inicio da mesma preocupação dos literatos. Ela tem, sobretudo, uma influência muito grande nos escritos de Mario de Andrade, também no meu trabalho, como nos de minha geração, hoje chamada de “Geração MAPA”.


Fase ABSTRATA – 1960 A 1964
Nesta fase houve dois momentos. O AEROFOTOGRAMÉTRICO e o CÓSMICO.


2ª.Fase POPULAR – 1964 a 1980
Esta fase é uma retomada, mais elaborada da primeira fase POPULAR.



Fase ANTROPOMÓRFICA -1980 a 2000
Em princípios de 1980, houve uma mudança brusca na forma em minha pintura. Continuando com o mesmo conteúdo, adotei a TRANSVANGUARDA que é uma linguagem mais contemporânea do expressionismo. Ela foi liderada pelo crítico italiano Achille Bonito Oliva, e, seguida na época, por importantes artistas. Entretanto também adotei, em alguns trabalhos, o NEO-EXPRESSIONISMO, que também pode ser sinônimo da TRANSVANGUARDA, e a POP ART. Neste mesmo rumo surgiram várias outras, que chamaria de sub-fases, sem serem um compartimento estanque e com características de “Pop”, “Monocromáticas”, “Linhas marcadas”, “Sem linhas”, “Coloridas” e “As fraquezas do caráter humano”. Porém tudo isso se enquadra numa fase geral que a chamo ANTROPOMÓRFICA.
Naquela época, um repórter argentino, que não me lembro o nome e nem qual o meio de comunicação trabalhava, me solicitou uma visita/entrevista dizendo que estava muito interessado na transfiguração da arte e cultura popular do Nordeste brasileiro. Quando ele chegou a minha casa e viu os novos trabalhos, se espantou, não sabia o que havia acontecido. Ai eu expliquei a ele que:

ANTES ERA EX-VOTOS COM CARA DE GENTE, E AGORA SÃO GENTE COM CARA DE EX-VOTOS

Não é gorda, gordinha, gorduchinha, fofinha ou fortinha. É uma arte muito seria e forte, possuindo um conteúdo profundo. São os ex-votos assumindo a condição humana para expressarem suas dores, angústias, invejas, ódios, ressentimentos, ciúmes, paixões, amores, mentiras, poder, alegria, medo, pavor, terror, corrupção de todo tipo, violência, assassinatos, enfim, tudo inerente ao ser humano. É a verificação plástica/visual entre o bem e o mal. Como a anterior, a forma desta fase é que a distingue de outros pintores. É a minha “escrita” pessoal, porém o conteúdo, não é um fato inédito. Ele remonta uns dois mil anos.



Fase atual
Por exaustão e o surgimento de novas linguagens dei por encerrada a fase ANTROPOMÓRFICA. Entretanto digo: O Homem-Porco e a Mulher-Porca são Anjos Exterminadores que cumpriram sua missão na terra. O que não impede deles retornarem a qualquer momento, caso seja necessário.
Acho que respondi com pequenos textos e imagens a sua pergunta sobre quais as mudanças mais importantes que vi passar na arte durante estes aos anos todos que a Graça de Deus me abençoou. Só falta agora falar sobre a absorção das atuais linguagens da arte contemporânea. Ela tem vários segmentos como Instalações, Performances, Vídeos, Arte Digital em muitas formas, Fotografia, Arte Conceitual, etc. Não sou absolutamente contra nenhumas delas. Ao contrario, as acho todas legitimas. Inclusive em todas elas posso adaptar o mesmo conteúdo que sempre usei na minha obra. Entretanto, por absoluta incompetência de minha parte, não sei captar recursos para a elaboração da maioria destas novas linguagens. Daí ter escolhido, dentro da arte digital, realizar a INFORGRAVURA.
Sempre existiu, uma maioria, que, mesmo com a publicação de inúmeros textos da crítica elogiando o meu trabalho e exaustivas explicações minhas, persiste até hoje uma incompreensão a respeito de meu trabalho da década de oitenta. Não só incompreensões, mas terríveis agressões, que às vezes sou capaz de distinguir quando é ignorância ou maldade.
Agora, os baianos, evidente, não todos, quando adotei a INFORGRAVURA, e com muito sucesso, já tendo participado de exposições em diversos de nossos estados, e por duas vezes seguida, participado da coletiva MUESTRA DE GRABADOS Y ARTE IMPRESSO MERCOSUR, de gravadores latinos americanos em Buenos Ayres, Argentina, ao verem os trabalhos, dizem maldosamente, é PHOTOSHOP. Assim querem desvalorizar, insinuando que é um trabalho exclusivamente técnico do computador. Aí aparecem novamente os elementos maldade e ignorância. Devido a estas novas incompreensões ou maldades, e mesmo sem ser perguntado, peço licença, para dar uma sucinta explicação.
PHOTOSHOP – Superposição ou composição de imagens geradas no próprio computador, ou colocadas nele. Pode ser com arte, como brincadeira, ironia, humor, etc. É exclusivamente usado o computador.
COMPUTAÇÃO GRÁFICA – Muito importante. Exige conhecimentos profundos de computação. É muito usado em Televisão, Cinema, Publicidade e proporciona os mais variados efeitos.
INFORGRAVURAS - Realizadas com inúmeros elementos ou imagens, tanto existentes no computador ou a ele acrescentadas. Pode haver superposição de imagens ou composição. Porém o mais importantes é que na INFORGRAVURA, tem de haver necessariamente a intervenção manual do artista. Não é só computador. Não é Photoshop, como pensam os desavisados. É Arte Gráfica. As gravuras são assinadas em serie, como qualquer outro tipo de gravura. Seguem algumas imagens de minhas INFORGRAVURAS.




GF - Sua obra já influenciou poetas. Eu gostaria de saber como a obra dos poetas influenciam a sua obra...
Sante
– Diretamente e intencionalmente, talvez não houvesse nenhuma influência considerável. Mas, sinceramente, não posso negar que, com certeza, houve. Houve devido à leitura, quando muito jovem, principalmente de Castro Alves, e mais tarde de Augusto dos Anjos. Outros poetas lidos com muito carinho foram meus contemporâneos e grandes amigos/companheiros. Por exemplo, da força dos poemas de Florisvaldo Mattos, “robei” os títulos de seus poemas e os coloquei nos quadros da minha fase abstrata. Wilson Rocha, Fernando da Rocha Peres, Frederico José de Souza Castro, João Carlos Teixeira Gomes, Albérico Mota, Lina Gadelha, José da Silva Dultra, Myrian Fraga, Carlos Anísio Melhor, Ildásio Tavares, lidos com o mesmo carinho, mesmo sem querer, devem ter influído.
Porém a minha maior influência desde 1957, ano em que me formei em Pintura, foi uma cadeira, hoje extinta na Escola de Belas Artes, chamada “Estudos Brasileiros”, onde comecei a elaborar o conteúdo da minha pintura. Esta cadeira dava uma visão do Brasil, não com profundidade, mas abrangendo todos os campos de nossa cultura. O catedrático era o psiquiatra e poeta Hélio Simões. Ele dava a aula inicial e poucas outras, mas durante o ano letivo as aulas eram proferidas por Carlos Eduardo da Rocha e Cid Teixeira. Pertencente a esta cadeira e em anexo, havia um pequeno museu onde constavam materiais de artesanato, de antropologia, etnologia, fotografias, santos barrocos, etc. E, sobretudo, uma bela coleção de ex-votos. Daí surgiu a minha paixão.
É muito importante a preservação das manifestações espontâneas da nossa cultura popular. Principalmente as do Nordeste, de uma riqueza imensa. De todas as manifestações populares do povo do Nordeste, como artesanato, arte e cultura, messianismo, religiosidade, as represento através da apropriação do ex-voto, que, no meu trabalho, é um signo/símbolo para expressar toda esta riqueza, todo o meu pensamento, e todo o meu sentimento. Desde o inicio da minha carreira que penso assim. O surgimento da obra de arte na minha pintura é decorrente da transfiguração de uma temática abrangente da cultura e arte do Nordeste brasileiro, associada a uma linguagem contemporânea internacional vigente na época. A forma muda conforme o aparecimento de novas linguagens, mas o conteúdo permanece o mesmo. É uma busca incessante de uma identidade cultural brasileira. Isto acontece até hoje, sempre coerente com o meu pensamento, sem fazer qualquer tipo de concessão.

GF – A essa altura da vida continua difícil explicar aquele movimento interior que nos orienta, inspira e nos motiva a criar?
Sante
- Como sou homem de muita Fé, não é difícil explicar. Ao contrario, é muito fácil. Quando somos batizados, recebemos doados pelo Divino Espírito Santo, um ou mais carismas. Isto é que explica a sua pergunta, e não a inspiração. Repetindo o que comumente é dito, não se trata de inspiração e sim de transpiração.
O que ocorre é que, devemos, através, de inúmeros processos aprimorar estes carismas. No caso da pintura, por exemplo, não adianta ter visões inspiradíssimas, se você não conhece a técnica de transpor o que sentiu para a tela. Com o carisma recebido, com certeza, você tem todas as condições de adquirir todos os conhecimentos teóricos e práticos para realizar ao que se propôs. E por ai vai.

3 comentários:

Anônimo disse...

Sante é um dos últimos moicanos da grande geração de gênios da Bahia, ao lado de Vivaldo da Costa Lima, Ildásio Tavares (mais jovem, em verdade), Joca, Fernando da Rocha Peres, dentre outros. Se perdemos um Wilson Rocha, um Waldeloir Rego, um Pierre Verger - mais baiano dos franceses, assim como Caribé, mais baiano dos argentinos -, temos ainda os ex-votos de Sante, e ainda o belo livro "Os primórdios da arte moderna na Bahia", pelo pintor publicado, em 1997, obra capital para entender o modernismo baiano e para (re)descobrir a figura pioneira do pintor José Tertuliano Guimarães, mais um dos nossos desterrados, tal qual o maravilhoso Raimundo Oliveira, pobre suicida...
É preciso registrar a maturidade do entrevistador, ao escolher perguntas que estimulam algo além de uma resposta linear. A entrevista é uma arte. E quando o entrevistador é poeta e o entrevistado é um artista plástico... H.

Gustavo Felicíssimo disse...

Grande Henrique Wagner! Esse, sim, sabe tudo.

Zene Ferreira disse...

Sante, meu Gurú!
Compreender e entender a metafísica da sua arte é entender pelas partes. É entender os gregos, os romanos e a arte clássica. Sante é único e eterno. Parabéns pela rica entrevista Gustavo.

Zene Ferreira - Designer de Interiores.