Para dizer o mínimo, nossa entrevista do mês é polêmica, pois o entrevistado diz o que pensa não apenas sobre a poesia de alguns autores, mas, sobretudo, como vê o meio literário, que despreza, e no qual está inserido e ao mesmo tempo afastado, como se o aceitasse apenas por conta do grau de mistificação (para o bem e para o mal) que nele se faz presente.
Embora critique nessa entrevista algumas pessoas que me são caras, defenderei seu direito à opinião, pois percebo que se tivéssemos a coragem de olhar para as dúvidas que temos sobre nós mesmos, perceberíamos que somos todos impostores, sem excessão.
Gustavo Felicíssimo – Em que momento você percebeu o que pulsa na poesia e de que maneira se descobriu crítico de arte?
Henrique Wagner – A poesia como pulsão foi descoberta por mim quando já em compulsão. Eu fazia cerca de cinco poemas por dia. Naturalmente todos do tipo que só o pai gosta. A poesia apenas pulsava, e como sempre fui pálido e frágil, apesar de minha biografia, minhas veias, grossamente verdes, e que apareciam até na testa, mostravam com notória evidência que, em algum momento, o pulso iria ser cortado. Antes que a morte me invadisse, me apaixonei por diversas musas, lesei todas elas e finalmente me tornei um monstro. Uma vez monstro, estava realizada a pulsão como um todo, a negação da morte, de Ernest Becker. Em função da minha natureza eminentemente transida, de fauno, o da coreografia de Nijinsky, e o mesmo que aparece na paisagem de Dante Milano, comecei a esporrar por trás das bananeiras, mas agora com todo o direito a que se arroga uma criatura livre de impostos e do título de eleitor. Esse direito me acalmou um pouco, e, junto ao Rivotril de todo dia, passei a estudar Poética, a ler os clássicos e a ouvir os preceitos de Ildásio Tavares e Maria da Conceição Paranhos. Lendo o Eclesiastes fiquei, paradoxalmente, mais vaidoso ainda... As veleidades me excitavam mais que Sulamita. Mas aprendi com Conceição Paranhos a lavar o vaso sanitário, cada vez que me achasse gênio, e então, minha poesia rendeu muito mais, meu lixo aumentou – sem lixo não se faz boa poesia - e eu parei de publicar, em respeito a Ideiafix e a mim mesmo, que me tornei crítico. Agora entra a segunda parte de sua pergunta. O crítico precisa ser crítico de si mesmo, antes de ser crítico dos outros. Em verdade não precisa: é assim que acontece. O que equivale a dizer que, se todo poeta fosse crítico de si mesmo, teríamos menos poesia – ruim – e talvez mais silêncio. Ou crítica. Mas certamente mais silêncio, uma vez que a produção de poesia diminuiria e o crítico, conseqüentemente, iria rareando. Ao poeta cabe a posição de acurado leitor, pois está diante de uma sinuca de bico digna da Ode Triunfal: é preciso ser bom leitor para ler a si mesmo. Todo bom poeta é, inapelavelmente, um bom leitor. Do contrário, como decidir que seu poema está pronto para os outros? Alguém emprestaria um livro do qual não tenha gostado? Mas o que tenho visto é uma porção de livros ruins emprestados ao público. Mas não se deve confundir o bom leitor com o leitor contumaz. Não há pessoa que leia tanto quanto a Gerana Damulakis, que faz questão, assim como Mayrant Gallo, de provar a todo o planeta, que lê tanto os judeus quanto os palestinos, e isso em plena Faixa de Gaza. Mas que adianta, se essa leitura não é bem processada? (outra coisa muito curiosa é que ambos, Damulakis e Gallo, sempre citam autores incomuns com uma familiaridade, com uma intimidade que nos faz pensar em noites perdidas, conversando com russos, estonianos, húngaros, suecos e japoneses, e tudo em português mesmo, é claro – ou em grego. Quando citam um autor da Chechênia, é num tom de que leram o sujeito na infância, quando o sujeito ainda nem escrevia!). Aprendi, em Fisiculturismo, que o músculo só cresce no descanso, de modo que não adianta malhar quatro horas por dia, todos os dias. Portanto, não adianta ler muito. Poucos têm a cegueira visionária de Borges, para quem os livros lidos eram motivo de maior orgulho que os livros escritos por ele. É preciso educar sua leitura, e talvez um bom começo seja pelo Didascalicon – Da arte de ler, do Padre Hugo de São Vítor. Apenas José Guilherme Merquior me impressionou pela equação “muita leitura X grande aproveitamento”. Há um exemplo significativo: um rapaz chamado Cleberton Santos. Lendo o livro dele, de poemas bastante magros e insípidos, percebi que todo capítulo era iniciado por uma citação poética, um verso ou conjunto pequeno de versos. Mas o que mais percebi é que todos os versos escolhidos pelo autor eram péssimos! Então ficou mais fácil entender a qualidade da poesia do Cleberton, com seus memoráveis calangos e sua mania de criptografar o nada. Aqueles versos que parecem dizer algo muito profundo, de tão estranho, e que fazem com que nossa vergonha procure algum sentido – no poema e na vida – para não desacreditar completamente da poesia baiana. Tenho a impressão de que esse rapaz escreve em latim: não há artigos em sua poesia. Tudo é tão moderno... Parece o Francisco Alvim de Lagarto. Pois bem, assim como o homem sábio é seu próprio médico, o poeta deve ser seu próprio crítico, e para isso, a leitura e a honestidade cultural são fundamentais. O poeta é o primeiro leitor de si mesmo e, por conta disso, toma para si uma enorme responsabilidade como crítico de poesia. Eu me tornei crítico porque aprendi a ler. E decidi compartilhar minhas leituras, mais que meus poemas.
Gustavo Felicíssimo – Existe a possibilidade de em algum momento a crítica e a poesia se amalgamarem?
Henrique Wagner – Não só existe como já se deu essa possibilidade. Indo mais longe ainda, vejo muito mais poesia nos ensaios e conferências de Eliot do que em toda a poesia feita nos dias de hoje, no ocidente. Posso dizer o mesmo em relação aos textos de Gaetan Picön, I.A. Richards e Terry Eagleton, dentre outros. Mas voltando ao cerne da pergunta, o encontro entre a crítica de Antonio Carlos Secchin e a poesia de João Cabral de Melo Neto é dos mais amistosos. A leitura que Ildásio Tavares fez, e faz, da poesia de Machado de Assis, razoavelmente estudada por Claudio Murilo Leal, em livro publicado pela Biblioteca Nacional, é brilhante, notadamente acerca do famigerado soneto a Carolina, essa mulher que é, antes de tudo, soneto. O mesmo pode ser dito do encontro entre a crítica de Tania Franco Carvalhal e a poesia de Augusto Meyer – Tania melhora, consideravelmente, a poesia folclórica desse gaúcho um tanto enfadonho -, e ainda se pode citar o trabalho de Ivan Junqueira acerca de Baudelaire, Dylan Thomas, Eliot e Dante Milano. Encontros felizes. Mas não gosto de pensar em amálgama. Que sejam encontros, no máximo. Bifásicos.
Gustavo Felicíssimo – Por fim, em que medida a poesia perde ou ganha com tais questões?
Henrique Wagner – A poesia em si não perde nada. Perde o poeta, que vai se tornando suprematista sem querer. A guerra biológica, o antrax da crítica de poesia está nos jornais. Mais, muito mais que nos livros, sobretudo num país de analfabetos e com um presidente sem regência – sou monarquista. A imprensa tem o poder de criar uma legenda e destruir um grande artista, ou pelo menos a carreira desse artista. Se esse grande artista for também um sábio, menos mal, ele saberá fazer bom uso da arte-fátua. Mas há um Picasso, de século em século... Enquanto Modigliani vende uma tela para comprar carne. Vejamos o caso Alberto Korda, que imortalizou a figura do serial killer Che Guevara, com seu Guerrilheiro Heróico, que só engana Maradona e Carlos Pronzato, argentinos, é claro. Aquela foto tirada em 1968 é quase tão famosa quanto a marca da Coca-cola, e fez com que jovens do mundo todo usassem camisetas, bottons e boinas sem ter o mínimo de conhecimento da história. Falo da história real, a caixa-preta, e não das cartas de Frei Beto. Che Guevara foi considerado por Sartre o único homem completo do mundo. Sartre foi aquele filósofo pop que ficou famoso por ter uma relação aberta com Simone de Beauvoir, por ter negado o Nobel em função de Pasternak ter vencido anos antes, e que panfletou a favor de Stalin. Pois bem, inventaram um líder até mesmo amoroso, lírico etc. Estou falando da imprensa – que não trabalha sozinha, é claro. Aqui na Bahia vem acontecendo algo muito grave. Há um cartel, um trabalho conspiratório, digno dos Protocolos dos Sábios de Sião, abrindo as portas para a maçonaria liderada por Aleilton Fonseca e seu simpático ex-bigode. De lado, preguiçosamente porque confiante, há um Carlos Ribeiro, jornalista, esperando as benesses de sua generosidade aprés-midi, ainda que chegue às bancas de manhã cedo. Serpenteando em campanha, e tricotando com Glaucia Lemos as platitudes mais afetadas, Luis Antonio Cajazeira Ramos vai fazendo amizade com Kátia Borges, articulista do jornal A TARDE, no caderno de cultura. Aliás, essa moça sofre um verdadeiro assédio moral. É a musa de todos os poetas baianos, mesmo não sendo encantadora – para quê? E assim não há crítica, porque não se fala mal de quem o elogia, nessa profícua troca de elogios. Kátia Borges, em menos de um semestre, foi convidada a participar de três eventos na Academia de Letras da Bahia! E não há um texto sequer, até hoje, questionando as deficiências de sua poesia – porque as há, embora ela escreva bem. Fico pensando em Márcia Tude, poeta inspiradíssima e com uma técnica admirável, fazendo belos sonetos, versos cheios de uma cadência envolvente etc. Pois bem, a vencedora do Prêmio Braskem 2008 jamais foi convidada a mesas redondas desse ninho. Bom é que a Márcia não queima as pestanas com vida literária. A essa hora deve estar queimando a pele, ao sol, numa praia próxima de Santo Amaro de Ipitanga. E há ainda o caso da Fabrícia Miranda, também vencedora do Braskem, de 2002. Quem quiser ler boa poesia que vá ao blog da moça. Cajazeira Ramos inventou um ciclo de encontro entre escritores – é assim mesmo, entre escritores, porque quase não há outro tipo de pessoa nesses eventos, que existem mais para serem registrados, historicamente, pela imprensa - na Academia de Letras da Bahia porque pensa numa cadeira para descansar suas varizes. As saturnálias e lupercálias se tornaram tão importantes aqui na Bahia que hoje só o invejoso diz que não gostou de algo. Eu, portanto, sou um eterno invejoso. Invejo até mesmo a poesia de José Inácio Vieira Melo, com seu ânus cheio de rosas (eu me refiro a seus recentes poemas anais) e uma leitura tão pobre da Bíblia, do Cântico dos Cânticos – clichê, quando se quer mexer com certa polêmica erótica, a partir do sagrado – e do corpo da mulher. Aliás, é curioso que sempre que essa turma faz poesia erótica, fala apenas em ânus. Cleberton Santos escreveu Aroma de Fêmea, livro de um mau cheiro terrível, pura flatulência. É aquela velha estratégia de aparecer pelo choque, como se cu ainda chocasse. O da galinha choca... Ainda pensando na Kátia Borges, lembro que, quando ela estreou, com seu De volta à caixa de abelhas, apareceu na capa do Caderno 2, ocupando página inteira, uma foto imensa e entrevista. Eu jamais vi um estreante obter tanto espaço na imprensa... E não era um livro premiado, nada disso, não havia furo jornalístico algum. Tratava-se apenas do lançamento de um livro! Quantos livros de poesia são lançados na Bahia, por mês? Só o Claudius Portugal vem enchendo estantes... E as edições do autor? Ou seja, é a Rede Globo divulgando suas novelas por meio do Vídeo Show. Bem, essa crítica vem comprometendo seriamente o trabalho de poetas grapiúnas excelentes, por exemplo, reunidos por você em uma bela antologia, sem resenhas em Salvador, salvo engano, chamada, muito justamente, Diálogos. O fato é que eles resenham pessoas, não livros. Para ter resenha por aqui, ou o poeta é aluno de Aleilton Fonseca ou é um dos 101 dálmatas-poetas descobertos por Inácio, sabe-se lá em que olho d’água, todos jovens e pobres leitores de seus livros lançados pelo erário público – leia-se Fundação Cultural do Estado, via Lúcia Carneiro, publicada por Inácio na revista Iararana. O jornal A TARDE, ainda o mais lido da Bahia, mesmo caindo das pernas, é funcionário da ALB. Mas é um círculo vicioso, pois foi o jornal quem ajudou a eleger Aleilton Fonseca acadêmico. E assim vão-se construindo teiados. Aleilton põe o Carlos Ribeiro para dentro e Ildásio Tavares e Maria da Conceição Paranhos, pasmem, ficam do lado de fora da quadrilha de Drummond, porque não são mesmo de fazer parte de quadrilha. Ainda quero pensar que a turma que está no poder, ou seja, com a mídia na mão, não tem idéia da responsabilidade que cai sobre si, quando se encontra na posição de definir toda uma história da literatura em movimento. Há muito tempo não se faz poesia, e isso o Benedito Nunes já havia falado há anos, afirmando que passou o tempo da arte contemplativa, que não vivemos em tempos de poesia, mas de cinema, de tecnologia. O que se faz hoje? Relações públicas. Não por acaso o poeta se tornou produtor cultural. É o que chamam agitador cultural. Até o Elizeu Moreira é agitador cultural, mesmo falando javanês. Essa profissão consiste em fazer o mesmo de sempre: encontro entre poetas e o público. Esse meio é ótimo para fazer amigos e influenciar pessoas, e assim Kátia Borges vai fazendo parte de mesas cada vez mais redondas. Um poeta, quando convidado, sente-se o plural majéstico, oficial, sente-se hebreu, o escolhido. E, cheio de comoção, quer, de todo jeito, retribuir. Assim começa a feira, o fisiologismo. Isso não vai acabar nunca, embora possa melhorar. Fui banido de todos os jornais e revistas de Salvador por ter honestidade cultural – é apenas essa a honestidade que tenho. Não se separa, de jeito algum, a pessoa da obra. Genet seria boicotado por aqui. Villon também, e mesmo Rimbaud, todos criminosos. Imagine, a Bahia se dando ao luxo de boicotar um Marquês de Sade, ou o obscuro John Cleland, autor de Fanny Hill... Salieri deixaria Mozart para trás, por conta de seu beatismo. Ou seja, apenas os medianos seriam contemplados pela imprensa. Quando lancei o livro As horas do mundo, pelo Selo Letras da Bahia, passei a ser convidado para tudo quanto era evento. Não imaginavam que eu tinha vida própria e não pretendia memorizar poemas enormes do Ruy Espinheira Filho para sair recitando diante dele, em troca de prefácio e algo mais. Eu não tenho amigos no meio literário porque não gosto dos livros dos escritores baianos, em sua maioria. É preciso gostar da obra para comprar geladinho na casa do poeta. Mesa de bar, então, nem pensar. Há ainda os laquês e pós dos coquetéis, quando as socialites literárias da Bahia dão seus beijinhos suspensos no ar. Isso é a literatura na Bahia do século XXI. E com essa literatura, e com essa imprensa, perde o poeta. Mas não perde a poesia, que é a alma desse negócio.
Henrique Wagner
Embora critique nessa entrevista algumas pessoas que me são caras, defenderei seu direito à opinião, pois percebo que se tivéssemos a coragem de olhar para as dúvidas que temos sobre nós mesmos, perceberíamos que somos todos impostores, sem excessão.
Gustavo Felicíssimo – Em que momento você percebeu o que pulsa na poesia e de que maneira se descobriu crítico de arte?
Henrique Wagner – A poesia como pulsão foi descoberta por mim quando já em compulsão. Eu fazia cerca de cinco poemas por dia. Naturalmente todos do tipo que só o pai gosta. A poesia apenas pulsava, e como sempre fui pálido e frágil, apesar de minha biografia, minhas veias, grossamente verdes, e que apareciam até na testa, mostravam com notória evidência que, em algum momento, o pulso iria ser cortado. Antes que a morte me invadisse, me apaixonei por diversas musas, lesei todas elas e finalmente me tornei um monstro. Uma vez monstro, estava realizada a pulsão como um todo, a negação da morte, de Ernest Becker. Em função da minha natureza eminentemente transida, de fauno, o da coreografia de Nijinsky, e o mesmo que aparece na paisagem de Dante Milano, comecei a esporrar por trás das bananeiras, mas agora com todo o direito a que se arroga uma criatura livre de impostos e do título de eleitor. Esse direito me acalmou um pouco, e, junto ao Rivotril de todo dia, passei a estudar Poética, a ler os clássicos e a ouvir os preceitos de Ildásio Tavares e Maria da Conceição Paranhos. Lendo o Eclesiastes fiquei, paradoxalmente, mais vaidoso ainda... As veleidades me excitavam mais que Sulamita. Mas aprendi com Conceição Paranhos a lavar o vaso sanitário, cada vez que me achasse gênio, e então, minha poesia rendeu muito mais, meu lixo aumentou – sem lixo não se faz boa poesia - e eu parei de publicar, em respeito a Ideiafix e a mim mesmo, que me tornei crítico. Agora entra a segunda parte de sua pergunta. O crítico precisa ser crítico de si mesmo, antes de ser crítico dos outros. Em verdade não precisa: é assim que acontece. O que equivale a dizer que, se todo poeta fosse crítico de si mesmo, teríamos menos poesia – ruim – e talvez mais silêncio. Ou crítica. Mas certamente mais silêncio, uma vez que a produção de poesia diminuiria e o crítico, conseqüentemente, iria rareando. Ao poeta cabe a posição de acurado leitor, pois está diante de uma sinuca de bico digna da Ode Triunfal: é preciso ser bom leitor para ler a si mesmo. Todo bom poeta é, inapelavelmente, um bom leitor. Do contrário, como decidir que seu poema está pronto para os outros? Alguém emprestaria um livro do qual não tenha gostado? Mas o que tenho visto é uma porção de livros ruins emprestados ao público. Mas não se deve confundir o bom leitor com o leitor contumaz. Não há pessoa que leia tanto quanto a Gerana Damulakis, que faz questão, assim como Mayrant Gallo, de provar a todo o planeta, que lê tanto os judeus quanto os palestinos, e isso em plena Faixa de Gaza. Mas que adianta, se essa leitura não é bem processada? (outra coisa muito curiosa é que ambos, Damulakis e Gallo, sempre citam autores incomuns com uma familiaridade, com uma intimidade que nos faz pensar em noites perdidas, conversando com russos, estonianos, húngaros, suecos e japoneses, e tudo em português mesmo, é claro – ou em grego. Quando citam um autor da Chechênia, é num tom de que leram o sujeito na infância, quando o sujeito ainda nem escrevia!). Aprendi, em Fisiculturismo, que o músculo só cresce no descanso, de modo que não adianta malhar quatro horas por dia, todos os dias. Portanto, não adianta ler muito. Poucos têm a cegueira visionária de Borges, para quem os livros lidos eram motivo de maior orgulho que os livros escritos por ele. É preciso educar sua leitura, e talvez um bom começo seja pelo Didascalicon – Da arte de ler, do Padre Hugo de São Vítor. Apenas José Guilherme Merquior me impressionou pela equação “muita leitura X grande aproveitamento”. Há um exemplo significativo: um rapaz chamado Cleberton Santos. Lendo o livro dele, de poemas bastante magros e insípidos, percebi que todo capítulo era iniciado por uma citação poética, um verso ou conjunto pequeno de versos. Mas o que mais percebi é que todos os versos escolhidos pelo autor eram péssimos! Então ficou mais fácil entender a qualidade da poesia do Cleberton, com seus memoráveis calangos e sua mania de criptografar o nada. Aqueles versos que parecem dizer algo muito profundo, de tão estranho, e que fazem com que nossa vergonha procure algum sentido – no poema e na vida – para não desacreditar completamente da poesia baiana. Tenho a impressão de que esse rapaz escreve em latim: não há artigos em sua poesia. Tudo é tão moderno... Parece o Francisco Alvim de Lagarto. Pois bem, assim como o homem sábio é seu próprio médico, o poeta deve ser seu próprio crítico, e para isso, a leitura e a honestidade cultural são fundamentais. O poeta é o primeiro leitor de si mesmo e, por conta disso, toma para si uma enorme responsabilidade como crítico de poesia. Eu me tornei crítico porque aprendi a ler. E decidi compartilhar minhas leituras, mais que meus poemas.
Gustavo Felicíssimo – Existe a possibilidade de em algum momento a crítica e a poesia se amalgamarem?
Henrique Wagner – Não só existe como já se deu essa possibilidade. Indo mais longe ainda, vejo muito mais poesia nos ensaios e conferências de Eliot do que em toda a poesia feita nos dias de hoje, no ocidente. Posso dizer o mesmo em relação aos textos de Gaetan Picön, I.A. Richards e Terry Eagleton, dentre outros. Mas voltando ao cerne da pergunta, o encontro entre a crítica de Antonio Carlos Secchin e a poesia de João Cabral de Melo Neto é dos mais amistosos. A leitura que Ildásio Tavares fez, e faz, da poesia de Machado de Assis, razoavelmente estudada por Claudio Murilo Leal, em livro publicado pela Biblioteca Nacional, é brilhante, notadamente acerca do famigerado soneto a Carolina, essa mulher que é, antes de tudo, soneto. O mesmo pode ser dito do encontro entre a crítica de Tania Franco Carvalhal e a poesia de Augusto Meyer – Tania melhora, consideravelmente, a poesia folclórica desse gaúcho um tanto enfadonho -, e ainda se pode citar o trabalho de Ivan Junqueira acerca de Baudelaire, Dylan Thomas, Eliot e Dante Milano. Encontros felizes. Mas não gosto de pensar em amálgama. Que sejam encontros, no máximo. Bifásicos.
Gustavo Felicíssimo – Por fim, em que medida a poesia perde ou ganha com tais questões?
Henrique Wagner – A poesia em si não perde nada. Perde o poeta, que vai se tornando suprematista sem querer. A guerra biológica, o antrax da crítica de poesia está nos jornais. Mais, muito mais que nos livros, sobretudo num país de analfabetos e com um presidente sem regência – sou monarquista. A imprensa tem o poder de criar uma legenda e destruir um grande artista, ou pelo menos a carreira desse artista. Se esse grande artista for também um sábio, menos mal, ele saberá fazer bom uso da arte-fátua. Mas há um Picasso, de século em século... Enquanto Modigliani vende uma tela para comprar carne. Vejamos o caso Alberto Korda, que imortalizou a figura do serial killer Che Guevara, com seu Guerrilheiro Heróico, que só engana Maradona e Carlos Pronzato, argentinos, é claro. Aquela foto tirada em 1968 é quase tão famosa quanto a marca da Coca-cola, e fez com que jovens do mundo todo usassem camisetas, bottons e boinas sem ter o mínimo de conhecimento da história. Falo da história real, a caixa-preta, e não das cartas de Frei Beto. Che Guevara foi considerado por Sartre o único homem completo do mundo. Sartre foi aquele filósofo pop que ficou famoso por ter uma relação aberta com Simone de Beauvoir, por ter negado o Nobel em função de Pasternak ter vencido anos antes, e que panfletou a favor de Stalin. Pois bem, inventaram um líder até mesmo amoroso, lírico etc. Estou falando da imprensa – que não trabalha sozinha, é claro. Aqui na Bahia vem acontecendo algo muito grave. Há um cartel, um trabalho conspiratório, digno dos Protocolos dos Sábios de Sião, abrindo as portas para a maçonaria liderada por Aleilton Fonseca e seu simpático ex-bigode. De lado, preguiçosamente porque confiante, há um Carlos Ribeiro, jornalista, esperando as benesses de sua generosidade aprés-midi, ainda que chegue às bancas de manhã cedo. Serpenteando em campanha, e tricotando com Glaucia Lemos as platitudes mais afetadas, Luis Antonio Cajazeira Ramos vai fazendo amizade com Kátia Borges, articulista do jornal A TARDE, no caderno de cultura. Aliás, essa moça sofre um verdadeiro assédio moral. É a musa de todos os poetas baianos, mesmo não sendo encantadora – para quê? E assim não há crítica, porque não se fala mal de quem o elogia, nessa profícua troca de elogios. Kátia Borges, em menos de um semestre, foi convidada a participar de três eventos na Academia de Letras da Bahia! E não há um texto sequer, até hoje, questionando as deficiências de sua poesia – porque as há, embora ela escreva bem. Fico pensando em Márcia Tude, poeta inspiradíssima e com uma técnica admirável, fazendo belos sonetos, versos cheios de uma cadência envolvente etc. Pois bem, a vencedora do Prêmio Braskem 2008 jamais foi convidada a mesas redondas desse ninho. Bom é que a Márcia não queima as pestanas com vida literária. A essa hora deve estar queimando a pele, ao sol, numa praia próxima de Santo Amaro de Ipitanga. E há ainda o caso da Fabrícia Miranda, também vencedora do Braskem, de 2002. Quem quiser ler boa poesia que vá ao blog da moça. Cajazeira Ramos inventou um ciclo de encontro entre escritores – é assim mesmo, entre escritores, porque quase não há outro tipo de pessoa nesses eventos, que existem mais para serem registrados, historicamente, pela imprensa - na Academia de Letras da Bahia porque pensa numa cadeira para descansar suas varizes. As saturnálias e lupercálias se tornaram tão importantes aqui na Bahia que hoje só o invejoso diz que não gostou de algo. Eu, portanto, sou um eterno invejoso. Invejo até mesmo a poesia de José Inácio Vieira Melo, com seu ânus cheio de rosas (eu me refiro a seus recentes poemas anais) e uma leitura tão pobre da Bíblia, do Cântico dos Cânticos – clichê, quando se quer mexer com certa polêmica erótica, a partir do sagrado – e do corpo da mulher. Aliás, é curioso que sempre que essa turma faz poesia erótica, fala apenas em ânus. Cleberton Santos escreveu Aroma de Fêmea, livro de um mau cheiro terrível, pura flatulência. É aquela velha estratégia de aparecer pelo choque, como se cu ainda chocasse. O da galinha choca... Ainda pensando na Kátia Borges, lembro que, quando ela estreou, com seu De volta à caixa de abelhas, apareceu na capa do Caderno 2, ocupando página inteira, uma foto imensa e entrevista. Eu jamais vi um estreante obter tanto espaço na imprensa... E não era um livro premiado, nada disso, não havia furo jornalístico algum. Tratava-se apenas do lançamento de um livro! Quantos livros de poesia são lançados na Bahia, por mês? Só o Claudius Portugal vem enchendo estantes... E as edições do autor? Ou seja, é a Rede Globo divulgando suas novelas por meio do Vídeo Show. Bem, essa crítica vem comprometendo seriamente o trabalho de poetas grapiúnas excelentes, por exemplo, reunidos por você em uma bela antologia, sem resenhas em Salvador, salvo engano, chamada, muito justamente, Diálogos. O fato é que eles resenham pessoas, não livros. Para ter resenha por aqui, ou o poeta é aluno de Aleilton Fonseca ou é um dos 101 dálmatas-poetas descobertos por Inácio, sabe-se lá em que olho d’água, todos jovens e pobres leitores de seus livros lançados pelo erário público – leia-se Fundação Cultural do Estado, via Lúcia Carneiro, publicada por Inácio na revista Iararana. O jornal A TARDE, ainda o mais lido da Bahia, mesmo caindo das pernas, é funcionário da ALB. Mas é um círculo vicioso, pois foi o jornal quem ajudou a eleger Aleilton Fonseca acadêmico. E assim vão-se construindo teiados. Aleilton põe o Carlos Ribeiro para dentro e Ildásio Tavares e Maria da Conceição Paranhos, pasmem, ficam do lado de fora da quadrilha de Drummond, porque não são mesmo de fazer parte de quadrilha. Ainda quero pensar que a turma que está no poder, ou seja, com a mídia na mão, não tem idéia da responsabilidade que cai sobre si, quando se encontra na posição de definir toda uma história da literatura em movimento. Há muito tempo não se faz poesia, e isso o Benedito Nunes já havia falado há anos, afirmando que passou o tempo da arte contemplativa, que não vivemos em tempos de poesia, mas de cinema, de tecnologia. O que se faz hoje? Relações públicas. Não por acaso o poeta se tornou produtor cultural. É o que chamam agitador cultural. Até o Elizeu Moreira é agitador cultural, mesmo falando javanês. Essa profissão consiste em fazer o mesmo de sempre: encontro entre poetas e o público. Esse meio é ótimo para fazer amigos e influenciar pessoas, e assim Kátia Borges vai fazendo parte de mesas cada vez mais redondas. Um poeta, quando convidado, sente-se o plural majéstico, oficial, sente-se hebreu, o escolhido. E, cheio de comoção, quer, de todo jeito, retribuir. Assim começa a feira, o fisiologismo. Isso não vai acabar nunca, embora possa melhorar. Fui banido de todos os jornais e revistas de Salvador por ter honestidade cultural – é apenas essa a honestidade que tenho. Não se separa, de jeito algum, a pessoa da obra. Genet seria boicotado por aqui. Villon também, e mesmo Rimbaud, todos criminosos. Imagine, a Bahia se dando ao luxo de boicotar um Marquês de Sade, ou o obscuro John Cleland, autor de Fanny Hill... Salieri deixaria Mozart para trás, por conta de seu beatismo. Ou seja, apenas os medianos seriam contemplados pela imprensa. Quando lancei o livro As horas do mundo, pelo Selo Letras da Bahia, passei a ser convidado para tudo quanto era evento. Não imaginavam que eu tinha vida própria e não pretendia memorizar poemas enormes do Ruy Espinheira Filho para sair recitando diante dele, em troca de prefácio e algo mais. Eu não tenho amigos no meio literário porque não gosto dos livros dos escritores baianos, em sua maioria. É preciso gostar da obra para comprar geladinho na casa do poeta. Mesa de bar, então, nem pensar. Há ainda os laquês e pós dos coquetéis, quando as socialites literárias da Bahia dão seus beijinhos suspensos no ar. Isso é a literatura na Bahia do século XXI. E com essa literatura, e com essa imprensa, perde o poeta. Mas não perde a poesia, que é a alma desse negócio.
Henrique Wagner
é baiano de Salvador, onde reside. Nascido em 1977, é poeta, contista, ensaísta e crítico de cinema, teatro e literatura. Colaborou com os jornais A TARDE, Correio Brasiliense, Rascunho, entre outros. Publicou os livros de poemas O grande pássaro e As horas do mundo, e o livro de ensaio A linguagem como estética do pensamento.
Textos de Henrique Wagner no site: http://www.expoart.com.br
Textos de Henrique Wagner no site: http://www.expoart.com.br
5 comentários:
Essa entrevista é brilhante não só pelo pensamento crítico do Henrique Wagner, mas também pela sua coragem em desnudar-se. Sugiro que ele compartilhe mais da sua criação poética e ficcional. Assim, poderemos de fato separar "a pessoa da obra".
Esse rapaz acerta muitas coisas, e as figuras ditas literárias citadas mantêm o círculo vicioso mesmo. Apesar do tom pedante, pois parece o calcanhar do Bruno Tolentino falando (rs rs). O único "pecado" é o alarmante provincianismo, como se dissesse: eles não prestam, e o bom sou eu! Mas acerta bastante.
Poucas pessoas no mundo eu consigo ter tanta identidade. Sou fã de tudo que o Henrique escreve. Mais uma vez, palavras ácidas e coerentes.
Este é o H. Wagner que eu sempre admiro.
entrevsita para tirar a estre revelações da literatura baiana da sua atual postura de punhetar
Não sou baiana. Sou paulistana, radicada em Blumnau/SC. Conheci H. Wagner "por acaso" (ou não, destino?),
busquei umas coisas aqui, outras ali e o menino sempre prestativo, "querido" mesmo - termo usado aqui no sul. Eu, vez por outra traço um poema, umas poucas linhas de trocadilhos. Uns gostam, outros odeiam e tem gente que chega a invejar. Faz um tempo me deram uma cadeira num cademia de SC, mas não pude levar pra casa (aliás, nem vi a tal). Hoje, recebo o convite pra ler essa entrevista do então Sr. H. Wagner e fico de boca e pernas abertas com tamamnha CORAGEM, REALISMO, CONHECIMENTO E FALA MÉTRICA sobre as verdades da literatura local. Vontade de trazer o menino pro sul, mostrar a nossa cultura e ignirância acentuada e bancar um outdoor com a frase: CULTURA PRA QUÊ? SE NINGUÉM LÊ ESSA PORRA?
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