sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Letra de música x Poesia

Volto a esse tema tão polêmico aqui no blog, após me certificar que estudantes em fase de conclusão do curso de Letras na universidade onde estudo produziram e publicaram, sob os auspícios da universidade, um texto sobre literatura, baseados na letra de música de um compositor local, o que para mim não é um bom sintoma. Apesar disso, preservarei nomes para não gerar  incômodos maiores.

Apesar de muita letra de música ser altamente poética, como as de Vinicius de Morais, por exemplo, elas não podem ser consideradas um poema em si, pois a letra de música, embora possua literariedade, está sempre associada automaticamente a uma melodia para a qual é escrita, por isso não possui um corpo autônomo. Já os poemas são entidades verbais inteiras e completas que, mesmo quando musicados, não deixam de ser poema para tornarem-se letra de música.
Em países como a França e a Inglaterra, para citar apenas dois exemplos, robustas tradições da forma musical, de um lado, e da poesia, de outro, fazem com que tal discussão, ou inexista, ou careça de qualquer relevância. Já no Brasil surpreende que um compositor como Chico Buarque, quando referido por um jornalista como “poeta”, o interrompa para corrigi-lo: “Não sou poeta, sou um compositor popular”. Tal intervenção se dá por conta da consciência estética literária e musical que tem o autor.
Uma das principais razões dessa discussão ter alguma relevância no Brasil é o fato de que, por vários motivos que não cabe aqui adentrar (um deles é o histórico analfabetismo da população e o não menos histórico beletrismo das elites), a canção popular adquiriu um status que não tem em muitos países, nos quais outras artes, como a própria poesia, mas também a música erudita e o teatro ocupam posição histórica e cultural proeminente.
Mas se a canção popular é “a grande expressão” nacional, e se é a poesia o nome que carrega, em função da tradição ocidental, a aura da “grande arte”, dar à canção a chancela de ser poesia é dar-lhe o status maior que poderia ter, e, em contrapartida, negar-lhe o “título” é ser, então, antipopular, antimoderno, preconceituoso, elitista, conservador. Tudo isso e muito mais.
           No entanto, não se discute aqui o fato de um gênero ser superior a outro, apenas de defender a idéia de que letra de música e poesia, apesar de se utilizarem da mesma matéria, a palavra, são elementos distintos, pois, um serve à estética literária, o outro à musical, portanto diferentes. Ademais, são muito diversos os elementos que compõem um e outro estilo; enquanto ao poema pede-se um texto espirálico, circular, metafórico, à letra de música pede-se, hoje mais que nunca, um texto linear, onde a seleção lexical é completamente diferente. A poesia é muito mais flexível em relação às palavras diferentes das de uso comum no nível da fala; a letra raramente exige um léxico que seja fruto de uma escolarização além do primário, e até mesmo os melhores letristas pouco se arriscam em levar o ouvinte ao dicionário, coisa sobre a qual o poeta não tem o menos pudor.
            Polemista, e não sem razão, o poeta Bruno Tolentino, único escritor a vencer três vezes o Jabuti, prêmio mais importante da literatura brasileira, em 1996, depois de morar 30 anos fora do Brasil, manifestou em entrevista à revista Veja sua preocupação por ver o filho mais novo estudando em escolas que ensinavam as obras de letristas da MPB - como Caetano Veloso - ao lado de Machado de Assis, Camões e Fernando Pessoa. Já o poeta e compositor Ildásio Tavares, disse-nos que “ao se interpor letras de música toma-se o lugar já diminuto da verdadeira poesia tradicional do país. Isso é um absurdo porque a música popular é obsessiva e onipresente. Trata-se da hipertrofia de um gênero usurpando o lugar do outro”.
         Todavia, nesses tempos de arrocha e pagode, pisadinha, dança da bundinha e outros demônios, onde a indústria do entretenimento dita as regras da atividade cultural, onde a universidade vem perdendo  cada vez mais a sua função crítica e o homem, pobre de reais valores, já não sabe a importância de ser e estar no mundo, é perfeitamente entendível que em muitos casos se faça tal confusão.
         Mas por sorte, temos em nossa tradição um conjunto de autores que além de letristas populares geniais são também poetas completamente diferenciados (vide os já citados Vinícius de Morais e Ildásio Tavares, como também o Paulo César Pinheiro, Capinan, Bernardo Vilhena, Antônio Cícero, Chico César, entre outros) que nos salvam de uma pobreza maior.

5 comentários:

Anônimo disse...

Tem razão.

Já tivemos esse tipo de discussão em sala aqui na Unesp tbm...

Gostei do modo como defendeu o ponto de vista sem apelar ou deixar a emoção tomar conta.

Texto pé-no-chão. Lúcido.

Abraço!

OFICINA DE CORDEL disse...

Muito bem! O texto é ótimo e você, elegantemente, não ofende ninguém. Sabemos que muitas canções populares tem uma aura poética pela formação intelctual de seus autores, mas a poesia é outra coisa, e evidentemente, pode virar canção popular. Taí Fagner que faz muito bem esta performance.
Jotacê

Anônimo disse...

Gostaria de, educadamente, discordar desse argumento:

"Ademais, são muito diversos os elementos que compõem um e outro estilo; enquanto ao poema pede-se um texto espirálico, circular, metafórico, à letra de música pede-se, hoje mais que nunca, um texto linear, onde a seleção lexical é completamente diferente. A poesia é muito mais flexível em relação às palavras diferentes das de uso comum no nível da fala; a letra raramente exige um léxico que seja fruto de uma escolarização além do primário, e até mesmo os melhores letristas pouco se arriscam em levar o ouvinte ao dicionário, coisa sobre a qual o poeta não tem o menos pudor."

Isso é um argumento válido para dizer que letra de música não é poesia? Então ficam excluídos "A arca de Noé", inspirada obra de Vinícius de Moraes e todas as poesias infantis, "Quadras ao gosto popular" do Fernando Pessoa e todas as quadras portuguesas e trovas literárias brasileiras, "Romance do Pavão Misterioso" e todas as obras da Literatura de Cordel, que embora se perceba nelas um cunho regional nordestino, não chegam a exigir conhecimento dessa linguagem regional específica, “365 haicais de sol e chuva” de Cloves Marques e toda a obra dos haikaístas, sem falar de várias poesias concretas... E já temos exemplos suficientes pra mostrar que o argumento não vinga, sendo apenas um comentário sobre estilos diferentes de se fazer poesia, pois é muito bom quando um letrista tem verdadeira SENSIBILIDADE POÉTICA.

Gustavo Felicíssimo disse...

o colega anônimo poderia se identificar, assim ficaria mais entusiasmado o debate. cordel é prosa metrificada; poucos alcançam a poesia. haikai tá mais pra subgênero. e olha que sou haikaísta e cordelista. premiado em ambos os casos.

Gustavo Felicíssimo disse...

A questão, meu caro, está ligada a autonomia do poema em relação a letra de música. Serem ambos da mesma natureza não descarta a identidade de um e de outro. O caso dos antigos é mais complexo.